sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Mística e Matemática: A vida de Srinivasa Ramanujan


Srinivāsa Aiyangār Rāmānujan (em tâmil: ஸ்ரீனிவாஸ ஐயங்கார் ராமானுஜன்) (Erode, 22 de dezembro de 1887 — Kumbakonam, 26 de abril de 1920), foi um matemático indiano. Sem formação acadêmica, realizou contribuições substanciais nas áreas da análise matemática, teoria dos números, séries infinitas, frações continuadas, etc.

Biografia

Nasceu em Erode, pequena localidade a 400 km a sudoeste de Madras (hoje Chennai), Tamil Nadu , na Índia) em 1887. Sua mãe era filha de um brâmane e era estéril. O brâmane teria rogado à deusa Namagiri e foi atendido. Na véspera do nascimento de Ramanujan a mesma deusa apareceu para sua mãe e anunciou que o menino seria um homem extraordinário.

Aos cinco anos vai para a escola e impressiona todos por sua excepcional inteligência, parece já saber tudo o que é ensinado. Ganha uma bolsa para o Liceu de Kumbakonam, onde desperta admiração nos colegas e mestres. Na adolescência começou a estudar sozinho séries aritméticas e séries geométricas e com 15 anos pode achar soluções de polinômios de terceiro e quarto grau.

Nessa idade, seus colegas conseguiram que a biblioteca lhe emprestasse um livro que foi essencial ao seu desenvolvimento e brilhantismo matemático. Tratava-se de "Synopsis of Elementary Results on Pure Mathematics", obra do autor George Shoobridge Carr (professor da Universidade de Cambridge). O livro apresentava cerca de 6.000 teoremas e fórmulas com poucas demonstrações, o que influenciou a maneira de Ramanujan interpretar a matemática. Demonstrou todas as fórmulas e teoremas, esgotou a geometria, passou a se dedicar à álgebra. Ele mais tarde diria que a Deusa Namagiri lhe aparecia para auxiliá-lo nos cálculos mais difíceis.

Aos 16 anos fracassou nos exames, por seu inglês ter sido considerado insuficiente, e perdeu a bolsa de estudos. Continuou seus estudos de matemática de forma autodidata, sem livro ou outras fontes documentais. Passou a conhecer tudo sobre essa ciência no seu estado da arte de 1880 e ultrapassa os trabalhos do Prof. G. Shoobridge Carr. Estudando e trabalhando e sozinho, recria tudo o que já fora feito em matemática e ultrapassou todo esforço da civilização nesse campo.

Depois de uma vida com privações e trabalho solitário, Ramanujam casou em 1909. A noiva tinha nove anos de idade e o casamento veio a se consumar quando ela chegou a 17, 18 anos. Ainda em 1910, desenvolveu uma hidrocele testicular e precisava ser operado. A família não tinha dinheiro para pagar a cirurgia, mas um médico local fez a cirurgia sem nada cobrar.

Procurou trabalho e lhe foi recomendado procurar um procurador de impostos que era um amador com muito interesse em matemática, Ramachandra Rao. Esse lhe oferece uma pensão, sem lhe exigir que trabalhasse, o que Ramanujan recusou por orgulho. Conseguiu por fim, por interferência de conhecidos um modesto emprego de contador no porto de Madras (hoje Chennai).

Ramanujan começou a frequentar uma universidade local (na Índia) como ouvinte. Os professores, percebendo suas qualidades, aconselharam-no a enviar os resultados dos seus trabalhos matemáticos, 120 teoremas demonstrados de geometria, para o grande matemático inglês Godfrey Harold Hardy. Impressionado com a inteligência do indiano, em 1913, Hardy o convidou para ir para Cambridge, porém a mãe de Ramanujam foi contra e o desaconselhou a sair da Índia. Somente com mais uma intercessão da deusa Namagiri, que em sonhos tranqüilizou a mãe do matemático acerca da vida do filho na Inglaterra, ele pode viajar.

Assim, foi para a Inglaterra nesse mesmo ano e em Cambridge trabalhou durante 5 anos se desenvolvendo mais ainda nas matemáticas. Foi agraciado com o ingresso na Royal Society de Ciências e se tornou professor no Trinity College (Cambridge). Adoeceu com tuberculose em 1919 e voltou à Índia onde morreu, em Kumbakonam, aos 32 anos. Sua viúva, S. Janaki Ammal , viveu em Chennai até sua morte em 1994.

Ramanujam vivia somente para a matemática e parecia não se interessar por outros assuntos, pouco se preocupava com artes e com literatura. Era atraído pelo extraordinário. Em Cambridge criara uma pequena biblioteca com informações sobre fenômenos que desafiavam a razão. Em suas descobertas havia os mais abstratos enigmas a respeito das noções de números, em especial sobre os números primos.

Anedota

Há uma conhecida anedota acerca de Ramanujan que bem mostra seu espírito dedicado à matemática. Estando hospitalizado em Londres, foi visitado por G.H. Hardy que viera de taxi e comentou que número do mesmo era 1729. Ramanujan disse que era um belo número, pois se tratava do menor número natural representado, de duas formas diferentes, pela soma de dois cubos: 1729 = 103 + 93 = 13 + 123.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

As Origens Espirituais do Patriarcado



As origens dos povos patriarcais remontam ao último período glacial onde o inverno era eterno, o ambiente era hostil, onde só os mais fortes sobreviviam e a caça era vital para alimentação e manter-se vivo por mais alguns dias.

O habitante da Era do Gelo se alimentava da carne, caçava para poder sobreviver, tornou-se espirituoso, cauteloso e acima de tudo um sobrevivente nato. Começou a forjar armas e a traçar estratégias para caçar suas presas.

Era uma época e lugar que não havia espaço para o descanso, a compaixão, a ociosidade senão a ação, movimento constante, a caça, apenas a vontade de viver em um clima hostil. Climas frios temperam o espírito, forjam um tipo de ser humano de caráter forte, em contraste com os que vivem em clima tropical que ajudam a forjar um indivíduo de índole egoísta, hedonista e um homem sem caráter.

A primeira migração de povos indo-europeus começa com o início do degelo seguindo o rebanho de renas rumo ao norte. Adriano Romualdi assinala que as primeiras migrações indo-europeias começam no início do Neolítico e consolida sua identidade na Era do Bronze.

As migrações indo-europeias ocorreram em épocas diferentes, a primeira podemos situá-la entre 2.200 e 2.000 a.C., e deram origem as civilizações do Irã, Índia védica e o império hitita.

Mais tarde, essa onda de migração deu origem aos povos gregos, latim, celtas e ibéricos.

Em todas essas migrações os povos indo-europeus conheceram e tiveram que enfrentar outros povos, de origem matriarcal como os povos danubianos, os pelasgos, etruscos e dravidianos que foram subsequentemente submetidos ou exterminados.

Como era a psicologia desses povos? Possuíam um forte senso de honra, uma hierarquia rígida, um senso de aventura e conquista. O sistema social era fundamentalmente patriarcal de onde se cultivavam valores como laços de sangue, de herança e seleção.

O chefe do clã, o pai, o líder eleito pelos seus pares era quem governava sua tribo. Um homem forte, caçador, disciplinado e líder virtuoso. É o típico homem cujo matriarcado moderno tanto repudia.
Uma característica fundamental foi a inventividade que permitiu o uso de metalurgia, do adestramento do cavalo e seu treinamento em combates para conquista do mundo.

Essas hordas de guerreiros e caçadores unidos por laços de sangue e uma forte disciplina militar estavam invadindo e conquistando civilizações decadentes regidas pelo matriarcado. Esta barbárie era a origem da aristocracia europeia. Foi a espada e o sangue que forjou os impérios posteriores.
Os arianos subjugando os dravidianos, os italianos os etruscos e os gregos sobre os Pelasgos foram o triunfo do patriarcado sobre o matriarcado.

A espiritualidade patriarcal é caracterizada pelo culto ao superior, ao sol, ao céu e a convicção em um reino mais elevado acessível apenas àqueles que lutam. Em contrapartida na espiritualidade matriarcal existe o culto da terra. Enquanto no patriarcado o homem é um filho do céu que retornar depois de sua morte, no matriarcado ele é um filho da terra, "da Terra és para a terra voltarás". É a premissa na qual os ritos fúnebres enterram-se os mortos devolvendo-os e amarrando-os à Mãe Terra, sem possibilidade de subir par ao alto.

Na espiritualidade patriarcal existe a adoração ao Deus pai, o rei dos deuses. Este é retratado como um guerreiro, outras vezes como um rebelde que derrubou os primeiros deuses para posicionar-se como governante. Seu símbolo é a força do raio e a lança. Odin-Wotan, Zeus-Júpiter, Indra e Perun, todos estes são deuses celestiais, patriarcas, pais de deuses e heróis. O culto da guerra e o heroísmo fazem parte desta visão de mundo.

Em todas as religiões indo-europeias existe uma luta entre poder patriarcal e o poder matriarcal, mitos de heróis que enfrentaram monstros de demônios com formas femininas como um reflexo das conquistas dos povos indo-europeus sobre os povos matriarcais. Temos como exemplos Hércules enfrentando Hera, Perseu contra Medusa, Beowulf contra Grendel e sua mãe maligna e o Rei Arturo contra sua irmã Morgana.

Nos mitos hebreus temos a história de Jacó, o favorito de sua mãe contra Esaú o favorito do pai. Esaú era um caçador, um homem barbudo um arquétipo do patriarcado e enquanto Jacó era um homem astuto, um agricultor afeito a ficar em sua tenda. Podemos ver como Jacó, aconselhado por sua mãe, consegue enganar Esaú para roubar-lhe sua herança. Essa é uma das maiores fraquezas dos povos patriarcais, sua ingenuidade. O guerreiro tem um código de honra que não consegue ver a malícia dos outros, enquanto a astúcia está associada ao arquétipo feminino.

O conflito entre patriarcado e matriarcado tem início com as invasões indo-europeias da Europa e Ásia. Os indo-europeus trouxe uma fé solar baseada na guerra, na alegria e na honra, enquanto os indivíduos matriarcais tinham fé na terra, nas trevas e na promiscuidade.

Os deuses patriarcais são viris, sábios, de temperamento agressivo, assim com a deusa do matriarcado representa a magia – em sua forma obscura -, o transbordamento da sexualidade, a escravidão, o medo.

Robert Graves, em seu livro OsMitos Gregos, diz que antes da chegada dos povos patriarcais, existia na Europa o culto da Grande Deusa a qual o homem temia e a paternidade não tinha nenhuma honra. A matriarca possuía várias amantes, mas não para a procriação, mas para o prazer e os filhos que nasciam, produto dessas orgias, não conheciam o pai.

No sistema matriarcal, as cavernas e cabanas - representações do útero -  eram lugares de veneração a deusa, onde a matriarca se reunia com seus filhos e amantes.

O sacrifício de homens a esta grande deusa era algo habitual nas culturas matriarcais. Reis e adolescentes foram sacrificados à deusa. Ela devorava a carne e o sangue deles regava os campos constituindo-se em uma forma mórbida de adoração.

Graves afirma que as invasões gregas do início do segundo milênio a.C., hordas de pastores que adoravam a trindade Ariana constituída pelas divindades Indra, Mitra e Varuna se estabeleceram pacificamente na Grécia central, foram aceitas como filhos da deusa. Assim, a aristocracia masculina se reconciliou com aristocracia feminina da Grécia e Creta.

Isso difere da maioria das versões em que os helenos arrasaram os habitantes nativos, os Pelasgianos. Entretanto, Graves está certo em apontar que a conquista indo-europeu foi uma conciliação entre o poder masculino e feminino.

Os próprios gregos incluíram as deusas do matriarcado em sua própria visão de mundo. Graves, sobre essa reconciliação, menciona que houve casamentos entre líderes gregos e sacerdotisas da deusa que determinou o sincretismo religioso entre aqueles povos.

Apesara da inclusão de deusas matriarcais, predominou o culto solar e de deuses do Olimpo. Não obstante estas conquistas, a influência matriarcal em larga escala terminou contaminando a visão aristocrática dos indo-europeus.

No entanto, em Esparta sempre prevaleceu o patriarcado em sua forma indo-européia. Uma civilização guerreira, com um culto a ação que fez dela a mais poderosa potência militar da Heliade.
Quando os gregos sucumbiram à influência do Oriente – propriamente feminino – entraram então em uma decadência que chegou ao fim com a conquista dos romanos.

A chegada do patriarcado foi a primeira grande revolução contra a paz perpétua do matriarcado. A chegada do culto à ação, da aventura contra o hedonismo e a promiscuidade que prevaleceu no mundo matriarcal.

As civilizações matriarcais eram sociedades envelhecidas, entregues ao hedonismo e a passividade, elas não conheceram o patriarcado. Estas civilizações pereceram lentamente. O patriarcado trouxe vida, trouxe uma nova cultura baseada no sangue e honra que fundaram as bases da Europa e do mundo ocidental.

Fonte: TRUJILLO, Fernando in El Poder del Patriarcado. Mexico, 2014
http://imaginacionalpoder77.blogspot.com.br/2014/04/el-poder-del-patriarcado-ii-origenes-y.html



domingo, 13 de setembro de 2015

A filosofia realista de São Tomás e o nominalismo do pensamento moderno

Descartes

Por José Arthur Rios, sociólogo.
Trecho da entrevista a Revista Nabuco - Ano 1: Nº4 (2015)

Precisamos entender a radical diferença entre a filosofia realista de São Tomás e o nominalismo típico do pensamento moderno. O nominalismo é um veneno filosófico que vem desde a Idade Média, atravessa os tempos modernos, resulta no idealismo alemão por exemplo, Kant e Hegel - e produz Marx. O suposto "realismo" de Marx, "realismo" entre aspas, é, na realidade, um "realismo" muito duvidoso baseado numa ideologia, embora ele obviamente negue isso.
Para ele, a ideologia é dos adversários, nunca dele próprio. Marx é um produto típico desta corrente nominalista que, como dizíamos, deu no idealismo moderno, com todos os seus frutos venenosos.
A ideia de uma sociologia realista, como fazia um pouco os jesuítas, deve se conhecer o outro: essa é a base. Para fazer sociologia com base numa filosofia realista, conhecer o outro é fundamental. Infelizmente Descartes e todo idealismo moderno liquidaram essa ideia de conhecer o outro. Passou a vigorar o "eu". O "eu" é que passou a ter suma prioridade. O outro é coisa secundária para o idealista: ele é que cria o outro, na cabeça dele.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

A língua de Kali


Nem todas as representações de Kali a mostram com a língua para fora, como Bhadra-Kali. A língua para fora remete ao episódio da luta dos devas contra os asuras, onde Kali enlouquece depois de ter lambido o sangue dos demônios: é ao mesmo tempo um símbolo de transcendência e vergonha feminina. Kali com a língua para fora está zombando de seus devotos, por conhecer os desejos íntimos escondidos por trás de fachadas sociais.

Rodolfo Souza.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O sentido Secreto – Isaac Asimov (1941)



“Os Marcianos não possuíam paladar e a sua audição não era das melhores; possuíam, no entanto, um sentido secreto que só a eles pertencia”.

A cadenciada melodia da valsa de Strauss preenchia o ambiente. A música seguia, aumentando e diminuindo, acompanhada pelos gestos ritmados dos dedos de Lincoln Fields que, através de seus olhos semicerrados, quase podia vislumbrar as silhuetas de elegantes dançarinos a rodopiar sobre o piso encerado de um luxuoso salão.

A música sempre o afetara daquela forma, enchendo a sua mente com sonhos da mais pura beleza e transformando sua sala num paraíso sonoro. Seus dedos habilidosos mais pareciam bailarinos a dançar sobre as teclas do piano, produzindo a mais saborosa combinação de tons e melodias. Até que por fim, relutantes, diminuíram seu ritmo, até se aquietarem por completo.

Ele suspirou e, por um curto período de tempo, permaneceu no mais absoluto silêncio, como se almejasse extrair a essência da beleza dos sons que ainda ecoavam no ar, desvanecendo pouco a pouco. Virou-se em seguida para o outro ocupante da sala, sorrindo-lhe levemente.

Garth Jan sorriu de volta, mas nenhuma palavra saiu de sua boca. Sustentava grande estima por Lincoln Fields, fato de sobremodo inexplicável. Eles pertenciam literalmente a mundos distintos, Garth vinha das gigantescas cidades subterrâneas de Marte, enquanto Fields era fruto do alastramento incontrolável da Nova York Terrestre.

“O que achou, Garth meu velho amigo?” perguntou Fields receoso.

Garth balançou a cabeça. Falou, então, da forma precisa e meticulosa que lhe era costumeira, “Ouvi atentamente e posso, verdadeiramente, assumir que não foi de todo desagradável. Possuía certo ritmo, era cadenciado, de fato, um tanto penetrante. Mas belo? Acredito que não!”

Havia compaixão nos olhos de Fields — uma compaixão quase dolorosa de tão intensa. O Marciano encontrou o olhar fixo e estupefato do Terráqueo e rapidamente compreendeu de todo o seu significado, contudo, não demonstrou inveja alguma diante da situação. Sua gigantesca estrutura óssea permaneceu acomodada na pequena cadeira, que claramente não fora projetada para comportar alguém com as suas dimensões, enquanto balançava a sua perna esguia para frente e para trás.

Levantando-se bruscamente, Fields arremeteu sobre seu colega e agarrou-o pelo braço. “Aqui! Sente você mesmo no banco.”

Garth obedeceu cordialmente. “Vejo que pretende realizar um pequeno experimento aqui.”

“Acertou. Li alguns trabalhos científicos que tentavam explicar as diferenças sensoriais entre os Terráqueos e os Marcianos, mas nunca fui capaz de compreendê-las completamente.”

Fields tocou as notas Dó e Fá, uma em seguida da outra numa mesma oitava e encarou o Marciano, cheio de expectativas.

“Se há alguma diferença”, arriscou Garth, incerto, “é quase insignificante. Se eu estivesse distraído e ouvisse ambas as notas ao acaso, certamente diria que você tocou a mesma tecla duas vezes.”

“Como assim?” Perguntou o Terráqueo descrente, pressionando em seguida um Dó e um Sol.

“Desta vez eu confesso que percebi alguma diferença,” Disse Garth.

“Bem, suponho, então, que tudo o que dizem a respeito do seu povo seja verdade. Compadeço-me de vocês por possuírem tão primitiva sensibilidade. Mal sabem o que estão perdendo.”

O Marciano deu de ombros, fatalista. “Não se pode perder o que nunca se possuiu.”

Garth Jan rompeu o curto silêncio que se seguiu. “Acaso não percebe que este é o primeiro período na história em que duas raças inteligentes são capazes de se comunicar entre si? A comparação entre as habilidades sensitivas de ambos é interessantíssima e pode, até mesmo, ampliar a nossa percepção sobre a vida.”

“Está certo,” concordou o Terráqueo, “entretanto, parece que temos toda a vantagem nessa comparação. No mês passado um biólogo Terrestre afirmou estar maravilhado com o fato de uma raça praticamente desprovida de habilidades perceptivas e sensoriais, ser capaz de desenvolver uma civilização tão grandiosa quanto à de vocês.”

“Tudo é relativo, Lincoln. O que temos nos é suficiente.”

Fields sentia a sua frustração crescendo. “Mas se você soubesse, Garth, se apenas soubesse o que está perdendo.”

“Você nunca viu a beleza do pôr do sol,” continuou o Terráqueo, “ou os campos, repletos de flores a dançar sob o vento. Você nunca admirou o azul do céu, o verde da grama, o amarelo do milho. Pra você o mundo consiste em tons escuridão e luz,” Lincoln estremeceu com o pensamento. “Você não pode sentir o cheiro de uma flor ou apreciar o seu delicado perfume. Nem mesmo uma coisa simples você pode fazer, como saborear uma refeição saudável. Você não sente, não cheira, tampouco diferencia as cores. Sinto pena pelo mundo enfadonho no qual você está condenado a viver.”

“O que você está dizendo é insignificante, Lincoln. Não gaste sua compaixão comigo, desejando que eu seja tão feliz quanto você.” Ele levantou e alcançou sua bengala, mais do que necessária no gigantesco campo gravitacional da Terra.

“Sabe, você não deveria nos julgar assumindo-se de sobremodo tão superior.” Aquilo soou como um algo que realmente o incomodava. “Nós não ostentamos certas habilidades da nossa raça, habilidades das quais vocês nada entendem.”

Então, como que profundamente arrependido de suas palavras, uma expressão deformada tomou conta do seu rosto e ele se pôs a caminhar rumo à porta.

Fields pareceu confuso e pensativo por um momento e então, pulando do seu acento, correu atrás do Marciano que já se punha em direção à saída. Agarrando-o pelo ombro, insistiu para que ele retornasse.

“O que quis dizer com a sua última observação?”

O Marciano virou o rosto, incapaz de encarar o seu inquisidor. “Esqueça, Lincoln. Foi apenas um momento de indiscrição quando a sua compaixão desnecessária me deu nos nervos.”

Fields dirigiu-lhe um olhar de esguelha. “É verdade, não é? É perfeitamente lógico que os Marcianos possuam sentidos que os Terráqueos não possuem, mas o que não consigo conceber é a razão pela qual seu povo deveria manter isso em segredo.”

“As coisas são como devem ser. Mas agora que você descobriu o segredo, graças a minha completa estupidez, talvez concorde em manter tudo isso entre nós.”

“Mas é claro! Minha boca é um túmulo. Que eu seja amaldiçoado se quebrar essa promessa. Mas me diga, qual seria a natureza desse sentido secreto que vocês possuem?”

Garth Jan deu de ombros. “Como posso explicar? Você seria capaz de definir uma cor para mim, alguém incapaz, tanto de conceber, quanto de compreender essa espécie de estímulo visual?”

“Não estou pedindo por uma definição. Fale-me sobre os seus usos, por favor,” ele agarrou os ombros do colega, “pode confiar em mim, eu te dei a minha palavra de que manteria tudo em segredo.”

O Marciano suspirou profundamente. “Isso não vai te fazer muito bem. Você ficaria satisfeito em saber que, se me mostrasse dois copos, ambos preenchidos com um líquido transparente, eu seria capaz de afirmar de uma só vez se algum deles fosse venenoso? Ou se me mostrasse um fio de cobre, eu poderia dizer instantaneamente se uma corrente elétrica estivesse passando por ele, mesmo se fosse mil vezes menor que um ampare. Ou eu poderia te dizer a temperatura de qualquer substância com três graus de margem de erro para seu o valor real, mesmo que você a mantivesse a cinco metros de mim. Ou então eu poderia, bem, acho que já falei demais.”

“Isso é tudo?” quis saber Fields, meio decepcionado.

“O que mais você queria?”

“Tudo o que você descreveu é realmente muito útil, mas onde esta a beleza? Seu estranho sentido não agrega valor ao espírito? Ou atende tão somente às necessidades do corpo?”

Garth Jan moveu-se, impaciente. “É sério, Lincoln, você está falando tolices. Eu apenas respondi à sua pergunta, dando-lhe as informações que me pediu, ou seja, os usos a que servem o meu sentido. Em momento algum me propus a explicar a sua natureza. Tomemos como exemplo, a sua habilidade em distinguir cores. Ao que me parece, seu único uso consiste em fazer algumas distinções das quais eu não sou capaz. Vocês conseguem identificar certas soluções químicas, por exemplo, graças a uma característica a qual chamam cor, enquanto eu seria obrigado a recorrer a uma análise química. Onde está à beleza nisso?”

Fields abriu sua boca para falar, mas o Marciano fez-lhe um sinal com irritação para que permanecesse em silêncio. “Eu sei, eu sei. Você estava prestes a balbuciar alguma bobagem sobre o por do sol, ou algo parecido. Mas o que você sabe sobre beleza? Acaso você já conheceu a beleza de um fio de cobre desencapado quando nele uma corrente AC é ligada? Você já sentiu a delicada graciosidade de correntes induzidas estabelecidas num solenoide quando um imã passa através dele? Você por acaso já assistiu a um portwem Marciano?”

Os olhos de Garth Jan se quedaram enevoados com os pensamentos que havia conjurado. Fields, imobilizado, o encarava estupefato, seu mundo estava no avesso e seu senso de superioridade havia desaparecido num piscar de olhos.

“Cada raça possui seus atributos,” murmurou Fields com um fatalismo mesclado a não muito mais que uma pequena dose de hipocrisia, “mas não vejo razão pela qual manter tamanho segredo sobre o assunto. Nós, os Terráqueos, por exemplo, não mantivemos nada em segredo diante da sua raça.”

“Não nos acuse de ingratidão,” exclamou Garth Jan veementemente. De acordo com o código de ética Marciano, a ingratidão era a falha suprema de caráter, de forma que, ao insinuar tais coisas, o Terráqueo fizera com que Garth perdesse de vez as estribeiras. “Nós, Marcianos, nunca agimos sem razão. E certamente não é para a nossa própria causa que escondemos a nossa habilidade magnífica.”

O Terráqueo sorriu zombeteiro. Ele estava na trilha de alguma coisa grande, podia sentir nos seus ossos, e a única maneira de descobrir do que se tratava, era provocando-o.

“Não tenho dúvidas de que haja nobreza por detrás das suas ações. É uma estranha qualidade da sua raça, que vocês sempre consigam encontrar razões altruístas para justificar seus atos.”

Garth Jan mordeu seus lábios, irritado. “Você não tem o direito de dizer isso.” Por um instante ele cogitou a sua preocupação com a futura paz de espírito de Fields como uma razão para manter silêncio, mas aquela última troça sobre altruísmo inviabilizou tal possibilidade. Um sentimento de raiva se alastrou progressivamente por todo o seu corpo, forçando a sua decisão.

Não havia como confundir o tom nada amigável que tomou conta da sua voz naquele momento. “Explicarei através de uma analogia.” O Marciano seguiu em frente, passando pelo colega conforme as palavras saiam de sua boca, os olhos semicerrados.

“Você me disse que vivo num mundo composto, simplesmente, de tons de escuridão e luz. Tentou, ainda, descrever o seu mundo, repleto de variedade e beleza. Eu ouvi a tudo isso sem, entretanto, me interessar muito. Nunca conheci algo assim e nunca conhecerei. Não se pode perder a posse de algo que nunca se possuiu.”

“Mas,” ele continuou, “e se você fosse capaz de, por alguns minutos, me conceder a habilidade de ver e perceber as cores? E se, durante cinco minutos, eu descobrisse todas as maravilhas e toda a beleza deste dom? E se depois destes cinco minutos eu fosse obrigado a abrir mão desta dádiva para sempre? Teriam estes cinco minutos de paraíso valido a pena diante de uma vida inteira de arrependimento, uma vida de insatisfação por causa da minha deficiência? Não teria sido um ato de gentileza nunca me falar sobre as cores em primeiro lugar e então, subitamente, me privar da sua beleza para sempre?”

Fields pôs-se de pé durante a última parte do discurso do Marciano e então os seus olhos arregalaram num desejo selvagem. “Você quer dizer que os Terráqueos podem possuir o sentido dos Marcianos se assim desejarem?”

“Por cinco minutos durante toda a sua vida,” os olhos de Garth Jan se tornaram turvos em seus devaneios, “e durante os cinco minutos o sentido…”

Parou de repente, confuso, e olhou para o seu companheiro, “Você já sabe mais do que deveria. Não se esqueça da sua promessa.”

Ele se levantou apressado e, apoiando-se pesadamente na bengala, dirigiu-se novamente em direção à saída. Lincoln Fields não fez menção de tentar impedi-lo. Ele simplesmente se sentou e pôs-se a pensar.



O teto distante da caverna permanecia envolto em névoas obscuras enquanto por lá, a intervalos regulares, flutuavam globos luminescentes de radiação. A brisa aquecida pelo extrato vulcânico subterrâneo soprava gentilmente e Lincoln, por sua vez, percorria uma extensa avenida pavimentada observando a paisagem da cidade mais importante de Marte desvanecer à distância em meio à neblina.

Postou-se, então, desajeitadamente diante da casa de Garth Jan. As solas de seis polegadas de chumbo presas aos seus pés, por sua vez, continuavam causando-lhe aborrecimento. Lincoln sabia, no entanto, que aquela ainda era a melhor forma de conviver com as limitações que a gravidade reduzida do planeta impunha aos seus músculos terrestres.

O Marciano ficou surpreso em ver seu amigo, mas não de todo feliz por fazê-lo. Fields não pôde deixar de notar a reação, mas limitou-se a sorrir para si mesmo. Uma vez concluídas as saudações e finalizadas as demais formalidades, sentaram-se ambos.

Fields esmagou o cigarro no cinzeiro e endireitou-se, sério, em seu acento. “Vim pedir-lhe que me dê aqueles cinco minutos que me prometeras. Poderei eu tê-los?”

“Trata-se de uma pergunta retórica? Pois, parece-me não necessitar de uma resposta.” Expôs Garth com desdém.

O Terráqueo refletiu sobre as palavras do amigo. “Você se importaria se eu expusesse o meu posicionamento em poucas palavras?”

“Saiba que não fará a menor diferença,” disse o Marciano sorrindo indiferente.

“Vou arriscar mesmo assim. A situação é a seguinte: Fui nascido e criado em meio ao luxo e fui repugnantemente mimado. Até hoje não tive desejo algum que, dentro das possibilidades, não me tenha sido saciado. Assim sendo, não sei como é não ter aquilo o que quero. Está vendo?”

Não houve resposta e ele continuou, “Eu encontrei a minha alegria em lindas paisagens, belas palavras e sons deslumbrantes. Criei um verdadeiro culto à beleza. Em uma palavra, sou um esteta.”

“Muito interessante,” a expressão austera do Marciano permaneceu inflexível, “mas o que exatamente tudo isso tem a ver com o problema que temos em mãos?”

“Apenas isso: Você fala sobre uma nova forma de beleza, uma forma desconhecida para mim, até mesmo inconcebível, mas que eu poderia experimentar, caso o desejasse. A ideia me atrai, estabelece em mim uma necessidade. Lembrando novamente, sempre que uma ideia cria em mim um desejo, eu cedo… E eu sempre consigo aquilo o que quero.”

“Neste caso você não está no controle da situação,” lembrou Garth Jan. “Sei que é cruel da minha parte lembrá-lo, mas você não pode me forçar a fazê-lo, sabe disso. Suas palavras, de fato, são quase ofensivas em suas implicações.”

“Estou feliz que tenha dito isso, pois, me permite ser também cruel sem ofender a minha consciência.”

Garth Jan respondeu com uma careta de autoconfiança.

“Eu exijo que me conceda aquilo o que desejo,” disse Fields vagarosamente, “em nome da gratidão”.

“Gratidão?” o Marciano exclamou violentamente.

Fields abriu um largo sorriso, “É um apelo ao qual nenhum Marciano honrado, segundo a sua própria ética, poderia recusar. Deve-me gratidão, pois foi através de mim que obteve acesso aos maiores e mais honoráveis homens da Terra.”

“Eu sei disso,” Garth Jan corou irritado. “É indelicado da sua parte lembrar-me desta dívida.”

“Eu não tive escolha. Você reconhece que me deve gratidão por tudo o que fiz. À vista disso, exijo que me dê a chance de possuir esse misterioso sentido que tanto mantém em segredo. É claro, em nome da gratidão que você mesmo reconhece ter para comigo. Poderia você recusar agora?”

“Você sabe que eu não posso,” foi uma resposta sombria. “Eu hesitei para o seu próprio bem.”

O Marciano se levantou e apertou a sua mão solenemente, “Você me tem em suas mãos, Lincoln. Está feito. Não lhe devo mais nada, no fim das contas. Isso tratará de quitar a minha divida de gratidão. Combinado?”

“Combinado!” Os dois apertaram as mãos e Lincoln Fields continuou num tom completamente diferente. “Continuamos amigos, certo? Esta pequena discussão não estragará as coisas entre nós, não é mesmo?”

“Eu espero que não. Vamos! Junte-se a mim hoje à noite para um jantar e então poderemos discutir o local e a hora para os seus… hum, cinco minutos.”

Lincoln Fields estava se esforçando ao máximo para conter a ansiedade e o nervosismo enquanto aguardava na sala de concertos particular de Garth Jan. Deu-se conta, de repente, de que estava se sentindo exatamente como costumava se sentir em uma sala de espera aguardando pela sua vez de ser atendido pelo dentista. Tal ideia trouxe-lhe um riso sincero aos lábios.

Ele acendeu o seu décimo cigarro, deu duas tragadas e jogou-o fora. “Você deve estar planejando algo complexo, Garth,” resmungou o Terráqueo.

O Marciano deu de ombros, “Você só tem cinco minutos, por isso prefiro ter certeza de que serão utilizados da melhor maneira possível. Você irá ‘ouvir’ parte de um portwem, algo que está para os nossos sentidos, assim como a Grande Sinfonia (é esse o nome, correto?) está para a sua audição.”

“Ainda falta muito tempo? Todo esse suspense está me matando.”

“Nós estamos esperando por Novi Lon, que ira tocar o portwen, e por Done Vol, meu físico particular. Eles já devem estar chegando.”

Fields observou com grande interesse o baixo estrado que repousava no centro da sala, logo acima da qual repousava um intrincado mecanismo. A parte da frente era revestida em alumínio reluzente, deixando expostas apenas sete níveis de teclas, além de cinco grandes pedais brancos logo abaixo. A parte de trás do objeto, por sua vez permanecia aberta, revelando um conjunto de fios que se cruzavam, iam e voltavam numa serie de intrincados padrões.

“Um objeto bastante curioso, este aqui,” comentou o Terráqueo.

O Marciano juntou-se a ele no estrado, “Trata-se de um instrumento caríssimo. Custou-me cerca de dez mil Créditos Marcianos.”

“E como ele funciona?”

“Não é tão diferente de um piano Terrestre. Cada uma das teclas superiores controla um circuito elétrico diferente. Manipulando-as nas mais diversas combinações, um portwen profissional poderia formar qualquer padrão concebível de correntes elétricas. Os pedais logo abaixo controlam a intensidade da corrente.”

Fields assentiu distraidamente correndo seus dedos aleatoriamente pelos teclas. Alheio, ele reparou que a seta do galvanômetro acomodado ao lado das chaves oscilava violentamente cada vez que pressionava uma tecla.

“Este instrumento está realmente tocando alguma coisa?”

O Marciano sorriu, “Sim, ele está. Temo, entretanto, que neste momento trate-se apenas de um conjunto de atrozes dissonâncias.

Ele sentou-se diante do instrumento com um murmúrio. “Veja como se faz!” Seus dedos deslizaram levemente sobre as teclas brilhantes.

Ouviu-se, então, o som de uma débil voz marciana a chamar por ele num sotaque estridente. Garth Jan parou de tocar imediatamente, constrangido. “Este é Novi Lon,” disse a Fields hesitante, “Como de costume ele não gosta de me ouvir tocar.”

Fields levantou-se para receber o visitante. Seus ombros encurvados testemunhavam a idade avançada juntamente com as rugas que lhe brotavam próximas aos olhos e à boca.

“Então este é o jovem Terráqueo,” exclamou o ancião em um inglês carregado de sotaque marciano. “Eu desaprovo a sua precipitação, mas simpatizo com o seu desejo de participar de um portwem. É uma pena que você não possa fruir do nosso sentido por mais de cinco minutos. Alguém que não possua este dom simplesmente não pode viver plenamente.”

Garth Jan riu, “Ele está exagerando, Lincoln. Ele é um dos maiores músicos de Marte e acredita que qualquer um que prefira respirar ao invés de participar de um portwem está condenado à danação eterna.” Ele abraçou o velho com carinho, “Ele foi meu professor durante a minha juventude e muitas foram as horas nas quais ele lutou para me ensinar devidamente as combinações de circuitos.”

“No fim das contas parece que falhei, não é mesmo seu cretino,” retrucou o velho Marciano. “Eu ouvi a sua tentativa de tocar enquanto eu entrava. Você ainda não aprendeu a realizar corretamente a combinação de fortgass. Assim você está profanando a alma do grande Bar Danin. Meu pupilo! Bah, isso é uma desgraça!”

A entrada de um terceiro Marciano, Done Vol, impediu que Novi Lon prosseguisse com o seu sermão. Garth, agradecido pela intervenção, aproximou-se do físico rapidamente.

“Está tudo pronto?”

“Sim,” rosnou Vol grosseiro, “e se quer saber, este é um experimento particularmente desinteressante. Nós todos já sabemos os resultados de antemão.” Voltou seus olhos para o Terráqueo, fitando-o com desdém. “É este o homem que deseja ser inoculado?”

Lincoln Fields assentiu avidamente sentindo a sua boca secar repentinamente. Ele olhou para o físico e sentiu-se subitamente desconfortável ao reparar num pequeno frasco com um líquido transparente e uma seringa que o Marciano acabara de tirar da bolsa que carregava consigo.

“O que você vai fazer?” ele quis saber.

“Você será inoculado, apenas isso. Não deve levar mais que um segundo,” Garth Jan assegurou. “Veja vem, os órgãos sensitivos, neste caso, são vários grupos de células localizados no córtex cerebral. Eles podem ser ativados por um determinado hormônio, um composto sintético utilizado para estimular as células dormentes em Marcianos que nascem… como posso dizer?… ‘cegos’. Você receberá o mesmo tratamento.”

“Oh! Então os Terráqueos possuem estas células no córtex?”

“Sim, mas em um estado muito rudimentar. O concentrado de hormônios irá ativá-las, mas apenas por cinco minutos. Passado esse tempo, elas irão literalmente explodir como resultado da sua atividade fora do comum. A partir daí elas não poderão ser reativadas sob quaisquer circunstâncias.”

Done Vol finalizou os preparativos e se aproximou de Fields que, sem dizer nada, estendeu o seu braço direito, recebendo logo em seguida a injeção com o composto hormonal.

Finalizada a operação, o Terráqueo esperou um momento ou dois e então constatou rindo, “Eu não sinto mudança alguma.”

“E você não irá, pelo menos nos próximos dez minutos,” explicou Garth. “Isso leva tempo. Apenas sente-se e relaxe. Novi Lon acaba de começar ‘Canais no Deserto’ de Bar Danin, a minha favorita. Assim que os hormônios começarem a fazer o seu trabalho você entenderá as coisas por conta própria.

Agora que não havia mais volta, Fields sentiu-se surpreendentemente calmo. Novi Lon tocou furiosamente a Garth Jan, à direita do Terráqueo, parecia perdido em êxtase. Até mesmo Done Vol, o doutor mal humorado, havia abandonado a sua petulância durante a performance.

Fields riu silenciosamente. Os Marcianos ouviam atentamente, mas para ele a sala permanecia mergulhada no mais profundo silêncio, isenta de qualquer tipo de sensação. Mas e se… Não, isso não era possível, é claro… Mas e se tudo aquilo não passasse de uma grande piada? Desconfortável, ele tratou de expulsar rapidamente a ideia da cabeça.

Dez minutos se passaram; os dedos de Novi Lon bailavam; a expressão de Garth Jan refletia o mais autêntico deleite.

Lincoln Fields piscou seus olhos rapidamente. Por um momento uma auréola de cores pareceu envolver o músico e o seu instrumento. Ele não sabia exatamente do que se tratava tudo aquilo, mas estava lá, diante dos seus olhos. Cresceu e se espalhou até preencher a sala toda. Outros matizes se juntaram aos primeiros e muitos outros surgiram na sequência. Eles teciam e oscilavam; expandiam e contraíam; transformavam-se na velocidade da luz enquanto permaneciam os mesmos. Intrincados padrões de matizes brilhantes se formavam e desapareciam, explodindo em erupções de cores diante dos olhos do Terráqueo.

Simultaneamente, veio a sensação de som. Cresceu de um sussurro até transformar-se em uma majestosa harmonia que oscilava, subia e descia na escala em trêmulos vibratos. Ele parecia ouvir cada instrumento, do pífano à viola da gamba ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, seus ouvidos nada podiam escutar.

Juntamente com os demais sentidos, veio a sensação de odor. Ele sentiu como se mergulhasse num campo de flores invisíveis. Aromas delicados e vistosos se seguiram uns aos outros, cada vez mais intensos, em gentis sopros de prazer.

Ainda assim, tudo aquilo não era nada. Fields sabia disso. De alguma forma ele sabia que o que ele estava vendo, ouvindo e sentindo eram apenas ilusões, miragens de um cérebro a tentar desesperadamente interpretar uma concepção completamente nova através dos artifícios que lhe são familiares.

Gradualmente as cores, os sons e os aromas se dissolveram por completo. Seu cérebro estava começando a assimilar a ideia de que se tratava de algo completamente inédito. Foi quando o efeito do hormônio atingiu o seu ponto máximo e, subitamente, numa explosão sensorial, Fields finalmente entendeu por completo o que estava sentindo.

Ele não via, nem ouvia, nem cheirava, nem saboreava, nem sentia. Ele sabia o que era, mas não conseguia pensar em uma palavra para descrever. E então, com certa dificuldade, ele compreendeu que não havia palavra alguma capaz de explicar o que estava sentindo. E com ainda mais esforço, ele se deu conta de que não havia sequer um conceito para aquilo.

Ainda assim, ele sabia perfeitamente o que era.

Seu cérebro estava sendo golpeado por ondas de satisfação, capazes de tirá-lo de dentro do seu próprio corpo, fazendo-o flutuar através de um universo até então desconhecido para ele. Era como se estivesse caindo através da interminável eternidade de… alguma coisa. Não era um som, não era luz, mas era… algo. Algo que o dobrava, moldava, tornando-o cego para o mundo ao seu redor, é isso o que era. Era interminável, infinito em sua variedade. A cada lufada de prazer que o atingia, ele vislumbrava um novo horizonte e o manto de sensações se tornava ainda mais expeço e macio e ainda mais belo.

Então veio a dissonância. A princípio como se fosse uma rachadura numa linda obra de arte. Ela se espalhou e cresceu até finalmente partir ao meio num grande estrondo sem, entretanto, emitir som algum.

Atordoado e estupefato, Lincoln Fields deu-se conta de que ainda estava na sala de concertos. Levantou-se de súbito e agarrou Garth Jan violentamente pelos braços. “Garth! Por que parou? Diga a ele para continuar! Vamos, diga!

“Ele ainda está tocando, Lincoln”, respondeu o Marciano com pena no olhar.

O Terráqueo encarou Novi Lon, confuso e incapaz de compreender a situação. Os dedos do Marciano bailavam através do teclado, ágeis como nunca enquanto seus olhos refletiam o êxtase que queimava dentro de si. Acometeu-lhe, então, a dura verdade, preenchendo os seus olhos vazios de horror.

Ele se sentou enquanto proferia um resmungo gutural, enterrando nas mãos a sua cabeça dolorida.

Os cinco minutos haviam se passado e agora não havia mais volta!

Garth Jan estava rindo, um sorriso terrível e repleto de malícia, “Eu estava com pena de você há poucos minutos atrás, Lincoln, mas agora estou feliz! Você me forçou, me obrigou a fazer isso. Eu espero que você esteja satisfeito, porque eu certamente estou. Para o resto da sua vida,” a sua voz agora não passava de um sussurro, “você se lembrara destes cinco minutos e saberá o que está perdendo, o que você nunca mais poderá ter de volta. Você está cego, Lincoln, cego!”

O Terráqueo ergueu o seu rosto desfigurado e sorriu em vão, pois tudo o que conseguiu foi mostrar os seus dentes de forma patética. Com cada centímetro de força de vontade que possuía dentro de si, conseguiu manter a sua compostura.

Ele não confiava em si mesmo para arriscar dizer algo. Com passos vacilantes ele marchou para fora da sala, de cabeça erguida até o final.

Enquanto isso, dentro da sua mente, uma pequena voz amarga repetia vez após vez, “Você entrou como um homem normal! Você saiu cego — cego — CEGO!”

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Estoicismo

Epictetus

O estoicismo (do grego Στωικισμός) é uma escola de filosofia helenística fundada em Atenas por Zenão de Cítio no início do século III a.C. Os estoicos ensinavam que as emoções destrutivas resultam de erros de julgamento, e que um sábio, ou pessoa com "perfeição moral e intelectual", não sofreria dessas emoções. O estoicismo afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estoicos tomam de Heráclito de Éfeso e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo grego que significa "harmonia").

O estoicismo propõe se viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio obedece à lei natural, reconhecendo-se como uma peça na grande ordem e propósito do universo, devendo, assim, manter a serenidade perante tanto as tragédias quanto as coisas boas. A partir disso, surgem duas consequências éticas: primeiro, deve-se "viver conforme a natureza". Mas, sendo a natureza essencialmente o logos, essa máxima é prescrição para se viver de acordo com a razão. Sendo a razão aquilo por meio do que o homem torna-se livre e feliz, o homem sábio não apreende o seu verdadeiro bem nos objetos externos, mas usando estes objetos através de uma sabedoria pela qual não se deixa escravizar pelas paixões e pelas coisas externas.

Os estoicos preocupavam-se com a relação ativa entre o determinismo cósmico e a liberdade humana, e com a crença de que é virtuoso manter uma vontade (denominada prohairesis) que esteja de acordo com a natureza. Por causa disso, os estoicos apresentaram a sua filosofia como um modo de vida, e pensavam que a melhor indicação da filosofia de uma pessoa não era o que teria dito mas como se teria comportado.

Estoicos mais tardios, como Séneca e Epicteto, enfatizaram que porque a "virtude é suficiente para a felicidade", um sábio era imune aos infortúnios. Esta crença é semelhante ao significado de "calma estoica", apesar de essa expressão não incluir as visões "éticas radicais" estoicas de que apenas um "sábio" pode ser verdadeiramente considerado livre, e que todas as corrupções morais são igualmente viciosas. O estoicismo floresceu na Grécia com Cleantes de Assos e Crisipo de Solis, sendo levado a Roma no ano 155 a.C. por Diógenes de Babilônia. Ali, seus continuadores foram Marco Aurélio, Séneca, Epiteto e Lucano.

O estoicismo foi uma doutrina que sobreviveu todo o período da Grécia Antiga, até o Império Romano, incluindo a época do imperador Marco Aurélio, até que todas as escolas filosóficas foram encerradas em 529 por ordem do imperador Justiniano I, que percepcionou as suas características pagãs, contrárias à fé cristã.

A escola estoica preconizava a indiferença à dor de ânimo causada pelos males e agruras da vida. Reunia seus discípulos sob pórticos ("stoa", em grego) situados em templos, mercados e ginásios. Foi bastante influenciada pelas doutrinas cínica e epicurista, além da influência de Sócrates.

Princípios Básicos

"A filosofia não visa a assegurar qualquer coisa externa ao homem. Isso seria admitir algo que está além de seu próprio objeto. Pois assim como o material do carpinteiro é a madeira, e o do estatuário é o bronze, a matéria-prima da arte de viver é a própria vida de cada pessoa."

Epíteto

Os estoicos apresentavam uma visão unificada do mundo consistindo de uma lógica formal, uma física não dualista e uma ética naturalista. Dentre estes, eles enfatizavam a ética como o foco principal do conhecimento humano, embora suas teorias lógicas fossem de mais interesse para os filósofos posteriores.
O estoicismo ensina o desenvolvimento do autocontrole e da firmeza como um meio de superar emoções destrutivas. Defende que tornar-se um pensador claro e imparcial permite compreender a razão universal (logos). Um aspecto fundamental do estoicismo envolve a melhoria da ética do indivíduo e de seu bem-estar moral: "A virtude consiste em um desejo que está de acordo com a natureza". Este princípio também se aplica ao contexto das relações interpessoais; "libertar-se da raiva, da inveja e do ciúme" e aceitar até mesmo os escravos como "iguais aos outros homens, porque todos os homens são igualmente produtos da natureza".
A ética estoica defende uma perspectiva determinista. Com relação àqueles que não têm a virtude estoica, Cleanto uma vez opinou que o homem ímpio é "como um cão amarrado a uma carroça, obrigado a ir para onde ela vai".
Já um estoico de virtude, por sua vez, alteraria a sua vontade para se adequar ao mundo e permanecer, nas palavras de Epiteto, "doente e ainda feliz, em perigo e ainda assim feliz, morrendo e ainda assim feliz, no exílio e feliz, na desgraça e feliz", assim afirmando um desejo individual "completamente autônomo" e, ao mesmo tempo, um universo que é "um todo rigidamente determinista".
O estoicismo tornou-se a filosofia mais popular entre as elites educadas do mundo helenístico e do Império Romano, a ponto de, nas palavras de Gilbert Murray, "quase todos os sucessores de Alexandre [...] declararem-se estoicos."

História

Por volta de 301 a.C., Zenão de Cítio ensinou filosofia no Pórtico Pintado, lugar a partir do qual o nome da filosofia se originou. Ao contrário de outras escolas de filosofia, como a dos epicuristas, Zenão escolheu ensinar a sua filosofia num espaço público, que era uma colunata com vista para o local central de manifestação da opinião pública, a Ágora de Atenas.

As ideias de Zenão desenvolveram-se a partir do cinismo, cujo fundador, Antístenes, foi um discípulo de Sócrates. O seguidor mais influente de Zenão foi Crisipo de Solis, responsável pela moldagem do que atualmente é denominado estoicismo. Estoicos posteriores, da época do Império Romano, focaram o aspecto da promoção de uma vida em harmonia com o universo, sobre o qual não se tem controle direto.

Os acadêmicos dividem, normalmente, a história de estoicismo em três fases:


  • A primeira (estoicismo antigo) desenvolveu-se no século III a.C., com Zenão de Cítio, Cleanto, Crisipo de Solis e Antíprato de Tarso, se preocupando com a lógica, a física, a metafísica e a moral.
  • Na segunda (estoicismo médio), o pensamento estoico combinou-se com o espírito romano. Foi representado por Panécio de Rodes (180 a.C. - 110 a.C.) e Possidónio (135 a.C. - 51 a.C.).
  • A terceira (estoicismo imperial ou novo estoicismo), com representantes como: Caio Musónio Rufo, Séneca (nascido no início da era cristã e falecido em 65 d.C., Epicteto (50 d.C. - 125 d.C.) e Marco Aurélio (121 d.C. - 180 d.C.), que foi imperador romano em 161 d.C. As obras de Séneca, Epicteto e Marco Aurélio propagaram o estoicismo no mundo ocidental. A última época do estoicismo, ou período romano, caracteriza-se pela sua tendência prática e religiosa, fortemente acentuada como se verifica nos "Discursos" e no "Enchiridion" de Epiteto e nos "Pensamentos" ou "Meditações" de Marco Aurélio.
Não sobreviveu, até a actualidade, qualquer obra completa de um filósofo estoico das duas primeiras fases. Apenas textos romanos da última fase nos chegaram completos.

Epistemologia

Os estoicos acreditavam que o conhecimento pode ser atingido através do uso da razão. A verdade pode ser distinguida da falácia, mesmo que, na prática, apenas uma aproximação possa ser efetuada. De acordo com os estoicos, os sentidos recebem constantemente sensações: pulsações que passam dos objetos através dos sentidos em direção à mente, onde deixam uma impressão na imaginação (phantasia). Uma impressão originária da mente era designada de phantasma.

A mente tem a capacidade de julgar (sunkatathesis) — aprovar ou rejeitar — uma impressão, permitindo que possa ser feita uma distinção entre uma verdadeira representação da realidade de uma falsa. Algumas impressões podem ter um assentimento imediato, enquanto que outras podem apenas atingir diferentes graus de aprovação hesitante, que podem ser chamadas de crenças ou opiniões (doxa). É apenas através da razão que podemos atingir uma clara compreensão e convicção (katalepsis). A certeza e o conhecimento verdadeiro (episteme), alcançável pelo sábio estoico, podem apenas ser atingidos pela verificação da convicção com a experiência dos pares e pelo julgamento coletivo da humanidade.

Produz para ti próprio uma definição ou descrição da coisa que te é apresentada, de modo a veres de maneira distintiva que tipo de coisa é na sua substância, na sua nudez, na sua completa totalidade, e diz a ti próprio é seu nome apropriado, e os nomes das coisas de que foi composta, e nas quais irá resultar. Pois nada é mais produtivo para a elevação da alma, como ser-se capaz de examinar metódica e verdadeiramente cada objeto que te é apresentado na tua vida, e sempre observar as coisas de modo a ver ao mesmo tempo que universo é este, e que tipo de uso tudo nele realiza, e que valor todas as coisas têm em relação com o todo.

Marco Aurélio

Filosofia Social


Uma característica distintiva do estoicismo é o seu cosmopolitismo: todas as pessoas seriam manifestações do espírito universal único e deveriam, de acordo com os estoicos, em amor fraternal, ajudarem-se uns ao outros de maneira eficaz. Nos Discursos, Epiteto comenta sobre a relação do ser humano com o mundo: "cada ser humano é, primeiro, um cidadão da sua comunidade; mas também é membro da grande cidade dos homens e deuses...".  Este sentimento ecoa o de Diógenes de Sínope, que disse "Eu não sou nem ateniense nem coríntio, mas um cidadão do mundo."

Apoiavam a ideia de que as diferenças externas, como status e riqueza, não são importantes nas relações sociais. Em vez disso, advogavam a irmandade da humanidade e a natural igualdade do ser humano. O estoicismo tornou-se a mais influente escola do mundo greco-romano. O estoicismo produziu uma grande quantidade de escritores e personalidades de renome, como Catão, o Jovem e Epicteto.

Em particular, os estoicos eram notados pela sua defesa à clemência aos escravos. Séneca exortava: "Lembra-te, com simpatia, de que aquele a quem chamas de escravo veio da mesma origem, os mesmos céus lhe sorriem, e, em iguais termos, contigo respira, vive e morre."





terça-feira, 4 de agosto de 2015

Exortação ao nada, por Martim Vasques da Cunha

Link do texto original


Welcome to the machine.
Pink Floyd

Um dos temas mais frequentes na literatura de ficção científica é sempre a previsão geralmente sombria de um futuro que se revelará distópico. Isso, na verdade, é tão comum que acabou se tornando um clichê cinematográfico e publicitário, como podemos ver nos celebrados comerciais da empresa de computadores Apple, em especial os que remetem a dois clássicos do gênero: o primeiro que cita o romance 1984 (1948), de George Orwell, e o segundo que homenageia explicitamente 2001 – Uma odisseia no espaço (1968), o filme enigmático de Stanley Kubrick.

            Nas duas peças publicitárias que tinham como meta prática de vender um objeto que parecia ter saído do próprio futuro – o computador pessoal Macintosh –, o principal criador da Apple, o famoso e temperamental Steve Jobs, pediu explicitamente que os comerciais fossem inspirados no imaginário visual criado por diretores como Kubrick e Ridley Scott – chegando ao ponto de, no caso do spot que remetia a 1984, contratar o próprio Scott por um cachê milionário porque ele queria a qualquer custo ter o mesmo visual futurista de Blade Runner – O caçador de androides (1982), o cultque, por sua vez, era também baseado em um romance de Philip K.Dick, outro mestre da ficção científica.

            Jobs sabia que o uso da iconografia já considerada célebre desse gênero literário e cinematográfico se devia ao fato de que, lá no fundo da nossa experiência em comum, o ser humano não consegue prever adequadamente o quão longe vai a nossa tendência de sermos perfeitos neste mundo – ou, para ser exato, de reconhecermos a nossa perfectibilidade em um universo que se apresentará a nossos olhos ora como sujo e perverso (caso do futuro imaginado por Ridley Scott), ora como asséptico, incapaz de erros, mas, mesmo assim, igualmente assustador (uma característica habitual em todos os filmes de Stanley Kubrick). O que a Apple se propunha nesses anúncios era que o verdadeiro futuro seria revelado com o lançamento do Macintosh – um futuro mais humano, que aproximasse as pessoas, sem a presença de um Big Brother que vigiasse cada um de nós em nossa privacidade, um futuro no qual seríamos capaz de prevermos imprevistos que não colocariam a civilização à beira de um colapso final. Em suma: a Apple seria nada mais nada menos a empresa que liquidaria com a possibilidade de surgirem as distopias futuristas.

            Bem, sabemos hoje que Steve Jobs poderia ser considerado um visionário, mas não era um vidente, pois agora temos conhecimento de como os computadores pessoais sabem de cada detalhe de nossas vidas, graças ao programa Prism, da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos – tudo isso revelado e divulgado pelo Kim Philby de nosso tempo, Edward Snowden, sempre em conluio com uma imprensa que, apesar de se mostrar aterrorizada com essas notícias, também alimentou esse mesmo comportamento entre os anônimos e as celebridades (alguém ainda se lembra do que aconteceu com Diana Spencer e com os donos da Escola Base?).

            Enfim, tudo leva a crer que, mesmo com as intenções mais otimistas, já vivemos no futuro distópico imaginado por Orwell, Philip K. Dick, Kubrick e Scott. E o que seria uma distopia, essa palavra que todos julgam saber o que é, mas mal conseguem explicar a qualquer um?

            As distopias são um gênero narrativo surgido no final do século XIX, mais especificamente na Inglaterra, em função do fato de que a visão de mundo utópica não tinha mais eficácia para capturar a imaginação da sociedade. Naquela época, a ideia de progresso, após ter sido alçada como um novo deus no Iluminismo francês e britânico, foi posta em dúvida devido à aceleração tecnológica promovida pela Revolução Industrial – e que desumanizou ainda mais os trabalhadores que já viviam em condições insalubres, miseráveis, próximas de serem vistas como uma nova escravidão. Além disso, o surgimento de duas Guerras Mundiais em um espaço de menos de trinta anos colaborou para o fortalecimento desse gênero na sensibilidade dos leitores, como mostra o sucesso de dois livros que marcaram o século XX: Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, e o já citado 1984, de Orwell.

            Para muitos, a distopia parece ser o oposto da utopia, já que esta quer descrever um mundo ideal que ainda pode ser alcançado enquanto o primeiro prevê um mundo onde todos nós queremos evitar que exista. Não é bem assim: o criador do termo utopia, Sir Thomas More, já avisava aos amigos, quando publicou o livrinho que tinha o mesmo nome em 1516, que o mundo criado especificamente para o relato das aventuras do navegador ficcional Raphael Hitlodeu era, de fato, uma descrição do que poderia se tornar a Inglaterra do século XVI. Para quem ainda não sabe,utopia é um neologismo com o advérbio grego ou – “não” – e o substantivo topos – “lugar”. O som resultante dá a impressão de ser uma palavra latina, utopia eutopia, que resulta em um outro trocadilho, desta vez significando lugar “feliz” ou “afortunado”. No próprio esboço inicial de More, a ilha se chamava Nusquama, outro trocadilho para “nenhures”.

Esta referência ambígua ao “estado de bem-aventurança” do mundo de Utopia como modelo de justiça para a Inglaterra é uma outra piscadela de More ao tratado de Santo Agostinho, A Cidade de Deus. Na lógica interna do seu texto, Utopia é a cidade divina que foi finalmente levada a cabo na Terra; contudo, o próprio nome da ilha indica que não existe em lugar nenhum e isto é a prova de que More sabia que a cidade de Deus, ordenada pelo amor Dei, jamais seria vislumbrada por qualquer criatura humana enquanto vivesse neste wretched world [mundo devastado]. A “cidade”, para Agostinho, existe em um sentido figurado, próximo do “místico”, que se divide em duas sociedades comandadas por dois tipos diferentes de amores. A primeira, como já foi dito, é o do amor de Deus que une todos os membros e os liga através de uma homonoia, uma comunhão; o segundo é o amor de si que chega ao desprezo de Deus, que Agostinho não hesita em identificar com o próprio Diabo. Em Utopia, a lógica é invertida – e More mantém o tempo todo a noção de que ela é uma sociedade das trevas, como mostra o nome de sua capital (Amaurot, capital da escuridão); a sua eutopia é uma distopia que, mais cedo ou mais tarde, será consumida pela entropia da morte. Desse último fato – a indesejada das gentes – ninguém escapará e tanto Agostinho como More tinham uma consciência aguda disso, mesmo se a cidade de Deus descesse dos céus.


A mesma noção trágica da existência humana ocupa a mente de Platão em sua A República– na verdade, o seu título é Politeia (algo como A Constituição ou O Paradigma), outra influência na obra de More. O desejo do aventureiro Hitlodeu de perdurar o “estado de bem-aventurança” de Utopia em outros países europeus é uma das referências moreanas ao diálogo platônico, em especial ao famoso conceito de que a cidade ideal imaginada por Sócrates e Glauco, em sua conversa sobre a justiça, não passa de um “modelo criado por pensamentos (logoi)”. Em grego, “pensamento” tem similaridade com “palavra” (logos) e também com “sentido”. Portanto, a república de Sócrates é uma sociedade que jamais existirá no mundo real porque seu “sentido” é formado apenas de “palavras” ou de “pensamentos”.

Aqui, Platão dá as mãos a Santo Agostinho – e, de certa forma, Thomas More concordava com eles por meio da criação em “palavras” de sua sátira utopiana. Para Platão, o paradigma da sociedade ideal sempre estará na tensão (metaxo) entre o que pode ser feito e o que deve ser feito, entre o ideal e o real, mas, sobretudo, entre a vida e a morte. Um bom estadista só terá domínio do seu “governo particular” se se espelhar no céu; mas, para isso, é necessário fazer como Sócrates: enfrentar a morte e o nada como condições primordiais de sua humanidade e descer às profundezas do Hades, do inferno e da destruição que habitam dentro de cada um de nós. Não por acaso, a palavra que abre A República é o verbo katebein, que, em grego, significa aproximadamente “desci”.

O que More acrescenta à tradição reflexiva de Platão e Agostinho sobre os rumos da sociedade ideal é a percepção aguçada da recusa deliberada da realidade. O filósofo grego e o santo africano aceitavam a morte como parte constituinte de nossas vidas; já More percebia uma nova tendência que depois seria a norma da modernidade, através da persona de Raphael Hitlodeu: o desejo de não aceitar a morte – mesmo que ela esteja presente em todos os lugares, principalmente naqueles que o mundo dos sonhos criou. E quando se imagina possível alcançar um mundo melhor através do caminho dos sonhos, a única coisa a se esperar é uma contínua exortação ao nada. Para quem não suporta a tensão implacável da existência, trata-se da escolha mais confortável, uma vez que suprime a vontade de reformar o cosmos e o substitui por um otimismo ou por um pessimismo que tenta imitar a negação do mundo. Assim, os sonhos podem ser voltados para um passado que já não existe mais ou então para um futuro que se insinua nos nossos anseios mais íntimos. Em ambos os casos, trata-se de uma nostalgia pelo paraíso que culminará na adoração por mundos imaginários – as utopias e as distopias literárias que contaminarão o nosso imaginário moderno.

Portanto, se a utopia era um reflexo distorcido do mundo real, podemos afirmar sem dúvida que, na verdade, o germe distópico sempre esteve presente no próprio gênero literário que supostamente se opunha a ele. A utopia é também uma distopia e vice-versa, mas, no caso desta última, ela leva ao extremo as consequências morais que implicam aceitar a perfectibilidade do homem não só como mera especulação ficcional, mas sobretudo levando em conta as verdadeiras implicações da mudança de eixo no modo como é analisada a natureza humana.

Com base nessas implicações, os escritores distópicos centram as suas críticas ao progresso perfectibilista em três pontos: (1) a impossibilidade na busca de uma linguagem perfeita que unifique a sociedade e que elimine as ambiguidades entre os relacionamentos (a novilingua de1984); (2) o perigo de ter todas as relações sociais matematizáveis completamente, expandindo-se em todos os estratos e castas (a eugenia de Admirável Mundo Novo); e (3) a manipulação tecnológica da vida íntima dos seres humanos, sempre tendo como desculpa a procura e a realização perpétua da felicidade (a razão principal para a destruição sistemática dos livros no Fahrenheit 451, de Ray Bradbury).

Esses três fatores convergem para a meta suprema que todos os distópicos reiteram quase obsessivamente: a busca pela perfeição humana enquanto nos encontramos nesse mundo precário e frágil, identificada tão somente com a perfeição técnica, excluindo outros estratos e outras complexidades da nossa própria natureza.

Agora, resta fazer a pergunta: mas tudo isso seria ruim para nós? Ninguém duvida de que o progresso tecnológico, se bem usado, traz benefícios a todos – é só vermos as vantagens da medicina no avanço de diagnósticos e tratamentos delicados e o próprio avanço nos meios de comunicação, seja a televisão, a Internet ou a telefonia celular, que possibilitam novas formas de interação e de rapidez na hora de transmitir qualquer espécie de informação. O problema é que a discussão sobre as benesses ou as desvantagens do progresso é, no fundo, uma discussão falsa porque, se insistirmos apenas nas vantagens evidentes de todo esse fenômeno que mal conseguimos explicar aos nossos contemporâneos, perderemos de vista de que o fundo do debate é algo intangível, quase impossível de ser visto por nossas sensibilidades materialistas. Trata-se da tensão que há entre aperfectibilidade e a maleabilidade do ser humano.

Como bem explica John Passmore em seu clássico A perfectibilidade do homem[1], nós podemos ser maleáveis, i.e., nos adaptarmos conforme certas circunstâncias exteriores, como históricas, sociais e biológicas, mas não podemos ser perfectíveis, ou seja, alterarmos aquilo que é a nossa “natureza humana”, o que nos caracteriza de forma estável e constante – os nossos “sentimentos morais”, segundo Adam Smith, nossas paixões, nossos vícios e nossas virtudes. A crença na ideia de progresso provoca uma confusão entre a maleabilidade e a perfectibilidade – e assim temos um vácuo ético alimentado em especial por cientistas e intelectuais que, geralmente atuando como “lacaios do poder”, pensam que podem nos educar como se fossemos “uma folha em branco”. Ao mesmo tempo, temos de tomar cuidado com a crítica ao progresso porque, por outro lado, ela é também uma espécie de perfectibilidade ao contrário, já que os distópicos não acreditam que o ser humano pode, de facto, adaptar-se às circunstâncias e alterar o seu destino que antes seria sombrio. O determinismo que nos paralisa a respeito de nossas próprias forças e fraquezas é também um reducionismo pueril que deve ser evitado a qualquer custo, até pela simples razão de que, segundo o alerta do escritor norte-americano Thomas Pynchon, a verdadeira eficácia de um profeta não é a validade de suas previsões, mas a sua capacidade de mergulhar e descobrir novas luzes no abismo da alma humana.

Dessa forma, não podemos manter a nossa ingenuidade em relação ao fascínio que temos com a ideia de progresso, seja em uma perspectiva positiva ou negativa. Esta fascinação foi dissecada brilhantemente por Marshall McLuhan em Understanding media: the extensions of man, livro que influenciou boa parte o estudo de tecnologia e cultura nos anos 1960 e 1970, mas que não foi bem compreendida por seus acólitos[2]. Para o canadense, os meios tecnológicos já afetavam a nossa vida, independente das intenções de cada um e provocavam o seguinte fenômeno – o do “Narciso como narcose” (Narcisius as narcosis), em que o objeto é uma extensão do homem que o detém justamente porque ele não percebe que se tornou o seu reflexo, vivendo naquele completo desconhecimento de si mesmo que René Girard chamaria de méconnaisance. Eles se tornaram um fato do qual não podemos mais retirá-los da realidade – e os meios tecnológicos alteraram a nossa percepção do real, justamente porque temos a maleabilidade necessária para isso acontecer sem sermos surpreendidos. Um exemplo disso é retratado por Nicholas Carr em seu best-seller Theshallows (2010), onde ele mostra detalhadamente como a Internet alterou a nossa forma de conhecer o mundo e o conhecimento em geral[3].

O resultado é que temos então uma idolatria da tecnologia, na qual o ser humano fica completamente dependente da Máquina (sim, assim mesmo, com M maiúsculo), descolando-se e distanciando-se da experiência concreta do real. No conto The Machine Stops (1923), de E.M. Forster, temos a descrição de como a História foi alterada para boa parte da população de um futuro distópico quando esta conhece o que aconteceu na Revolução Francesa a partir tão somente dos relatos de estudiosos que interpretaram o fato, nunca de depoimentos originais de pessoas que o vivenciaram no meio do turbilhão. O admirável mundo novo criado por Forster é um cosmionfechado, um pequeno mundo completamente mediado apenas por objetos e pessoas que se comportam como artífices, em que a Máquina – o nome dado para o misterioso sistema que organiza a vida de todos – força as pessoas a viverem em um lugar, conforme diz um dos personagens, onde a luz uniformiza as saudáveis habitações do subterrâneo e onde eles simplesmente perderam a noção do espaço como uma forma de se diferenciar do próprio corpo[4].

O comentário acima explicita algo que McLuhan afirmava que já existia no presente que vivemos: o de que, com o surgimento da eletricidade (talvez o meio tecnológico mais evidente e, ao mesmo tempo, mais próximo do ordinário – tanto até que só sentimos falta dele quando ele para de funcionar), a luz permitiu que não soubéssemos mais o que é o dia e o que é a noite. Vivemos em plena indiferenciação, em uma “aldeia global” onde, graças à “luz que brilha nas trevas”, aparentemente estamos em uma era repleta de inovação e de racionalidade, mas na verdade voltamos à época do mito, da tribo, do primitivismo que não se importa mais com a causa e com o efeito – e sim com o todo que podemos apreender por meio dos nossos sentidos, mas não conseguimos compreender por meio das nossas faculdades suprarracionais, entre elas a intuição, transformando a Era da Tecnologia em que estamos em uma pseudo-religião travestida de racionalismo, incapaz de compreender os corações e as mentes de todos nós.

Conseguiremos escapar desse impasse da indiferenciação, no qual todos são iguais a todos e que, em breve, provocará o início da “guerra de todos contra todos”? De acordo com Marshall McLuhan, a resposta é afirmativa – e quem pode nos ajudar a sair desse pântano seria o artista, aquele que, inspirado pelo poeta Wyndham Lewis, “está sempre empenhado em escrever a minuciosa história do futuro porque ele é a única pessoa consciente da natureza do presente”. McLuhan não hesita em afirmar que, em um mundo onde a violência tecnológica é cada vez mais sutil, disfarçada em uma espécie de servidão voluntária para cada um de nós, e que prova que o curso da História não passa nada além de “uma longa série de diretos no queixo” da raça humana, o artista é “o homem da consciência integral”. Ele é extremamente necessário para a sobrevivência humana, é o sujeito “que, em qualquer campo, científico ou humanístico, percebe as implicações de suas ações e do novo conhecimento de seu tempo”, corrige “as relações entre os sentidos antes que o golpe da nova tecnologia adormeça os procedimentos conscientes”, antes que se manifestam “o entorpecimento, o tateio subliminar e a reação”. O artista ensina a sociedade, se esta o compreender corretamente, a como se deve “desviar do golpe”, já que, no nosso presente repleto de racionalidade, a arte deve ser vista pelo o que é – a “informação exata para reordenação das mentes”, sempre pronta para antecipar o próximo golpe que a História nos dará e que será vibrado para “as nossas faculdades projetadas para fora”.

Todavia, nem sempre conseguimos escapar do “direto no queixo” – e, muitas vezes, quem faz isso para nós é justamente o mesmo artista que deveria nos ajudar a sair do impasse de sermos iguais em absolutamente tudo. Se insistirmos na importância da arte, em detrimento do princípio ético que fundamenta nossas ações, corremos cair no risco de uma nova distopia que se torna cada vez mais real: a da tirania do artista – e, com isso, vivermos integralmente em uma Segunda Realidade.

Porque quem se dedica ao daimon da arte vive o perigo de criar uma Segunda Realidade que substitua a Primeira Realidade, fundamentada no senso comum e na persuasão racional, para que a sua atitude de recusa seja aceita como algo completamente normal e factível[5]. A princípio, pode-se entender tal atitude como uma brincadeira, um mero jogo da imaginação, mas as conseqüências podem ser desastrosas para a psique do indivíduo que insiste nesse real alternativo e que, pouco a pouco, começa a acreditar que é a única realidade existente. Eric Voegelin explica com clareza o movimento interior de quem começa a confiar demais no mundo dos sonhos e entra em conflito com a “indesejada”:

“Tal conflito pode ser rastreado a partir da discrepância dos conteúdos entre as realidades imaginadas e experimentadas, através do ato de projetar uma realidade imaginária, até o homem que se permite tal ato. Em primeiro lugar, sobre a questão dos conteúdos, uma realidade projetada pela imaginação pode deformar ou omitir algumas áreas da realidade experimentada; podemos dizer que a realidade projetada esconde ou eclipsa a Primeira Realidade. Partindo dos conteúdos para o ato, logo podemos distinguir a intenção do homem que eclipsa a realidade. Esta intenção pode se manifestar numa variedade ampla de formas, indo da mentira sobre um fato à uma mentira mais sutil ao arranjar um contexto de tal maneira que a omissão do fato nunca será percebida; ou então da construção de um sistema que, por sua forma, sugere uma visão parcial do todo da realidade na recusa de seu autor em discutir as premissas do sistema em relação à realidade experimentada. Finalmente, além do ato, alcançamos o ator, isto é, o homem que cometeu o ato de deformar a sua humanidade a um self e agora deixa que o self reduzido eclipse toda a sua própria realidade. Ele negará a sua humanidade em insistir que não é nada senão o seu self reduzido; negará sempre que experimentou a realidade da experiência em comum com outras pessoas; negará que qualquer um pode ter uma percepção mais completa da realidade a não ser aquela que seu self permitir; em resumo, terá o seu self contraído como um modelo único para si mesmo assim como para todos os outros. Além disso, a sua insistência em conformar os outros à sua realidade chegará próxima da agressão – e nela ele trai a ansiedade e a alienação do homem que perdeu qualquer contato com a realidade”[6].

A tirania do artista é apenas mais uma das maneiras estratégicas da Segunda Realidade, dominada por uma pneumopatologia, impor-se sobre a realidade da razão e dos sentidos concretos. Existem, claro, outras variações, como as das ideologias políticas, as dos narcóticos e até mesmo do divertimento inconsequente, que invadem também o nosso cotidiano e que também provocam outros fatos sem volta. São as desilusões que ocorrem quando as pessoas que acreditam em seus mundos paralelos vêem que estes não passam de castelos construídos sobre a areia. Novamente, é Voegelin quem faz uma análise acurada desse fenômeno e como isso afeta a nossa vida nos mínimos detalhes:

“A desilusão com esta ou aquela ideologia, a conversão escapista de uma para outra, ou um cinismo em relação a qualquer uma são todos fenômenos comuns. Se, por um lado, um homem divorcia-se da realidade através de ‘opiniões’ e de experiências que seu self contraído não consegue suportar, por outro ele não consegue voltar à existência na verdade, porque está habituado a viver na existência desordenada e isso se tornou tão forte que sua energia espiritual não pode quebrar; ou porque até mesmo o acesso ao conhecimento da verdade está barrado pela pressão social que o envolve na autoridade da ignorância institucionalizada nos estabelecimentos educacionais, nos meios de comunicação e na opinião pública. O resultado é que ele deve se voltar às origens de sua vitalidade animal se quiser recuperar uma forma de vida que possa ser experimentada como real. A sua vida assumirá então certas formas comportamentais como libertinagem, hedonismo, o culto da violência, auto-destruição, vandalismo e até mesmo a mais explícita criminalidade. Se a sua vitalidade animal falhar, este homem descerá ainda mais – por exemplo, ao estupor de assistir televisão – ou ele poderá ter que tomar drogas para “atiçá-lo” numa existência que foi eliminada além de qualquer esperança, ou então encontrará o seu caminho numa neurose clínica. Esse fenômeno vislumbrado, muito comum em nossos tempos, deve ser compreendido como uma forma extrema de desintegração existencial sob a pressão de um ambiente social onde a verdade da realidade foi substituída com sucesso pela autoridade da ignorância”[7].

Estas desintegrações da alma são evidências empíricas que talvez há muita razão quando ouvimos um Roger Kimball afirmar que as utopias e as distopias não passam de “experimentos contra a realidade”[8]. Todas as tentativas de amputar a tensão que existe no real, o metaxo do qual Platão falava na sua Politeia, definido como a busca erótica pela sabedoria, só resultaram em uma intoxicação da modernidade que eclipsou a consciência humana, com resultados terríveis para a história do Ocidente: os campos de concentração nazistas, os gulags soviéticos, as experiências genéticas inspiradas por uma eugenia utópica e, last but not least, a bomba atômica.

O filósofo espanhol Ortega y Gasset tinha uma frase lapidar sobre essas atitudes: “A realidade é de um gênio tão atroz que não tolera o ideal nem mesmo quando ela própria é idealizada”. Queremos mudar o real porque desejamos evitar os “diretos no queixo”, mas isso nem sempre é possível. Por outro lado, ao criarmos nossas utopias e distopias, temos que ter plena consciência que estamos apenas fazendo nossas exortações ao nada ou dando boas vindas à uma máquina que nos triturará em um futuro próximo. Afinal, viver na verdade, no mundo concreto onde todos nós nos encontramos, é sempre muito mais interessante do que continuar no território da ficção – e este só tem validade quando este decide ser um reflexo elaborado do que acontece na nossa vida interior. Viver sob o efeito do nada pode ser divertido por algum tempo – mas saiba que, quando este tempo expira, a única coisa que nos resta é ver tudo sob a perspectiva de uma “escuridão visível” [darkness visible] da qual ninguém quer encarar no final da nossa trajetória.


[1] Cf. PASSMORE, John. A perfectibilidade do homemTopbooks, RJ, 2007.
[2] McLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man, MIT Press, 1994.
[3] CARR, Nicholas. The Shallows, Norton Press, 2010.
[4] FORSTER, E.M. The machine stops, Penguin Books, 2012.
[5] Os termos Primeira e Segunda Realidades, inspirados em Robert Musil, foram expostos por Eric Voegelin em seu ciclo de palestras chamado Hitler e os Alemães, publicado pela É Realizações em 2008, trad. Elpídio Dantas da Fonseca. Cf. págs.311-333.
[6] VOEGELIN, Eric. “The Eclipse of Reality”, in: What is History and other late unpublished writings, University of Missouri Press, 2005, pág. 112. Aqui, Voegelin usa o termo self no sentido da consciência imanente que se retrai a partir do momento em que o homem não consegue suportar o choque da tensão do real.
[7] VOEGELIN, Eric. “The Eclipse of Reality”, in: What is History and other unpublished and late writings, Missouri Press, 2005, págs. 155-156.
[8] Cf. KIMBALL, Roger. Experiments against reality – the fate of culture in the postmodern age. Ivan R. Dee Publisher, 2002, 358 páginas.       

[Este ensaio desenvolve vários temas já abordados em Crise e Utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e que serão desenvolvidos, sob a perspectiva nacional, no meu próximo livro, A Poeira da Glória - Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Editora Record, com previsão de lançamento entre Setembro e Outubro deste ano). Ele foi publicado à parte na edição especial do livro Sob o Efeito do Nada, de Andy Nowicki, editado por Rodrigo Simonsen e publicado recentemente pela Editora Realejo]

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