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domingo, 28 de agosto de 2011

O Islã e as Ciências Médicas

Hajji Sheikh Muhammad Ragip

1. - Origem do Islam

Historicamente, pode-se dizer que a religião islâmica surgiu a partir do ano 610 d.C., com o início da revelação do Sagrado Alcorão. O profeta Muhammad (saws) meditava, solitariamente, em uma gruta nas montanhas de Hira, distante alguns quilômetros da cidade de Meca, na hoje Arábia Saudita, quando, em uma experiência visionária, apareceu o Anjo Gabriel (as), ordenando-lhe ler as primeiras palavras do Livro Sagrado. Trêmulo e febril, o Profeta (saws) não compreendeu a experiência extraordinária pela qual passava e que mudaria o curso da história. Encontrou em sua fiel esposa Khadija apoio e suporte para assimilar os difíceis momentos iniciais da revelação. A partir de então, durante 23 anos, o anjo trouxe gradativamente, da Fonte infinita para a realidade humana, a palavra divina, na forma de um livro revelado.

Gravura otomana retratando o momento da revelação pelo anjo Gabriel do Alcorão para o profeta Maomé.
Nesta época, Meca era dominada pela idolatria e costumes selvagens. A mensagem trazida pelo Profeta Muhammad (saws) afirmando a existência de Deus Uno e Único, que ordenava justiça e tolerância, comportamento ético e humanitário, respeito aos direitos dos seres humanos, homens e mulheres, encontrou forte oposição. Os primeiros muçulmanos foram maltratados e humilhados enfrentando perseguições, torturas e assassinatos. Em 622 d.C., buscando melhores condições de sobrevivência, retiraram-se da cidade de Meca para a cidade de Medina, com apoio e suporte de seus habitantes. Este ano, 622 d.C., dá início ao calendário islâmico. A partir de Medina, a religião islâmica consolidou-se e iniciou sua expansão. Num período de menos de cem anos já estendia-se pelo norte da África, península ibérica na região do atual Portugal e Espanha, até o extremo oriente, chegando às fronteiras da Índia e China. Justiça, respeito à lei, tolerância e espírito democrático foram fatores que facilitaram esta expansão, levando os muçulmanos a serem bem recebidos nas regiões a que chegavam. Nos séculos que se seguiram o Islamismo contribuiu para o desenvolvimento do saber humano em diversas áreas como medicina, astronomia, álgebra, filosofia, resgatando a obra dos pensadores gregos do passado.

1.1 - Fontes do Islam

A fonte fundamental da qual derivou toda a civilização islâmica é o Sagrado Alcorão. Registros históricos comprovam, e pesquisadores (não islâmicos) reconhecem, que o Sagrado Alcorão não sofreu alterações e mantém-se até hoje na forma exata como foi revelado, sendo que foi registrado por escrito durante a vida do Profeta (saws) e não após sua morte. Ao lado deste situam-se as tradições proféticas, os hadith, que são as decisões, silêncios e exemplos do Profeta Muhammad (saws) face às situações e circunstâncias com que se deparou na vida cotidiana. Como o Profeta (saws) sempre se reportava à mensagem revelada, sendo considerado em suas ações como o Alcorão vivo, na verdade a fonte primária e essencial é o Livro Sagrado.

Além do Alcorão e dos hadith com o tempo desenvolveram-se as escolas de jurisprudência (fiqh) islâmica. Também são consideradas fontes do Islam. Tornaram-se necessárias pois, embora o Alcorão contenha prescrições específicas para o comportamento certo e errado, em muitas áreas da atividade humana, suas injunções não cobrem todas as situações particulares que surgem na vida prática. Adicionalmente, trata-se de um livro revelado para ser válido e atual até o final dos tempos, sendo assim, é específico apenas nas prescrições que devem se manter imutáveis, em qualquer época, e, nos demais casos, apresenta as diretrizes gerais.

Situações que não podem ser esclarecidas através do Sagrado Alcorão, nem através dos hadith, nem através das escolas de jurisprudência (fiqh), considerados nesta ordem, são definidas através do consenso da comunidade islâmica, buscado pelo estudo e análise dos juristas islâmicos. Este é um ponto importante a ser observado, pois os avanços da ciência em geral e da medicina em particular, têm disponibilizado recursos, como transplante de órgãos, engenharia genética, clonagem e outros, que envolvem questões éticas significativas. O posicionamento diante destas novas tecnologias, na comunidade muçulmana, se dá sempre a partir da Escritura Sagrada, dos hadiths e das escolas de jurisprudência, interpretados através da análise jurídica, quando não há clareza suficiente.

2. - Contribuições do Islam para o desenvolvimento das ciências médicas

Na era pré-islâmica, a Arábia, em sua maior parte desértica, era habitada por tribos nômades de beduínos, com algumas comunidades estabelecidas nos pontos de disponibilidade de água e nas intercessões das rotas comerciais. Esta população era caracteristicamente tribal, inculta, envolvida em freqüentes escaramuças, movidas pela disputas ou pela vingança contra seus inimigos. Possuíam um tipo de medicina elementar, oriunda basicamente da experiência prática, herdada dos ancestrais, sem qualquer tipo de elaboração sistemática.

Com o advento do Islam, o Sagrado Alcorão e as tradições proféticas estabeleceram princípios que valorizam o conhecimento, a busca da cura para as moléstias, diretrizes para o atendimento médico e diretrizes para o paciente buscar sua cura. Os hadith trouxeram também ditos e tradições que foram denominados "Medicina Profética", prescrevendo as virtudes da dieta, remédios naturais, o tratamento simples para dor de cabeça, febre, dor de garganta, conjuntivite e outras. Trouxeram também prescrições para evitar o contato com pessoas infectadas por doenças contagiosas como a lepra, instituindo controles para entrada e saída de áreas sujeitas a epidemia ou praga. Trouxeram também um grande número de tradições agrupadas sob o título "Medicina Espiritual", baseada em preces ou na recitação de versos do Sagrado Alcorão, para prover cura.

A expansão islâmica, e o contato com o saber acumulado em sociedades de cultura mais elaborada, inaugurou uma das eras áureas da humanidade em termos de desenvolvimento nas artes e nas ciências dando origem ao que pode ser considerado, do ponto de vista histórico, à "Medicina Islâmica". Este resultado é conseqüência direta de alguns princípios islâmicos que nortearam o contato dos muçulmanos com outros povos, como veremos a seguir.

2.1 - Princípios que nortearam o desenvolvimento da civilização islâmica

Importância fundamental atribuída à aquisição do conhecimento:
A primeira palavra do Sagrado Alcorão revelada ao profeta Muhammad (saws) foi

"Lê" (Surata 96:1).
Como seres humanos, conscientes, temos obrigação de ler e estudar. Em outra passagem do Alcorão lê-se:
"Poderão, acaso, equiparar-se os sábios com os insipientes?" (Surata 39:9).

Em uma tradição profética (hadith), o profeta (saws) aconselha:
"Busque o conhecimento mesmo que seja necessário ir tão longe quanto a China",

em outro hadith afirma:

"A busca de conhecimento é obrigatória para todo muçulmano", e ainda:

"A tinta dos eruditos tem maior valor que o sangue dos mártires".

Proibição da destruição:

Em caso de guerra é expressamente proibida a destruição desnecessária de plantações, rebanhos, edifícios, propriedades, ou o ataque a mulheres, crianças e velhos indefesos. O respeito a estes princípios permitiu a preservação da cultura dos povos conquistados.

Tolerância com outras religiões:

Os cristãos e os judeus são considerados, no Islam, como os povos do livro, isto é sua religião teve origem em uma mensagem revelada, um livro sagrado, como no caso dos muçulmanos. Estudos (não islâmicos) tendo como base a análise dos estilos literários e os registros históricos, demonstram que o texto original da Torah (Pentateuco do Velho Testamento) dos judeus, os Salmos de Davi, e outros livros do Velho Testamento, foram escritos por diferentes autores, em diferentes épocas. O Evangelho de Jesus Cristo ( as) foi registrado muitos anos após a revelação. Portanto, sofreram distorções, acréscimos e supressões introduzidas por seres humanos, ao longo dos séculos, isto é, não são mais retrato fiel da mensagem original revelada. Apesar disto, sua origem inicial é divina e portanto deve ser respeitada. Também as outras religiões devem ser respeitadas pois, segundo um hadith, desde Adão existiram 124.000 profetas mensageiros, portanto nunca se pode afirmar com certeza que determinada crença não teve origem divina em seu primórdio. Nunca houve conversão pela força no mundo islâmico, uma vez que isto está interditado no Sagrado Alcorão:

"Não há imposição quanto à religião" (Surata 2:256).

Respeito ao diferente:

No Alcorão é revelado que diversidade humana entre povos faz parte do esquema divino e tem um propósito:

"Ó Humanos, ..., vos dividimos em povos e tribos, para reconhecerdes uns aos outros." (Surata 49:13).

2.2 - Fases da civilização islâmica

Balizados por esses princípios, os conquistadores muçulmanos assimilaram as culturas dos povos com os quais entraram em contato, sendo que a influência da civilização islâmica pode ser categorizada em três grandes fases:

A renascença islâmica:

A grosso modo foi o período compreendido entre o início do Islam, no século 7 d.C. e o início do declínio da dinastia Abássida em meados do século 9 d.C. Caracterizou-se, na fase de expansão, entre os séculos 7 d.C. e 8 d.C., pelo contato com diferentes povos e culturas, desde o Oceano Atlântico, no lado ocidental, até as fronteiras da China no oriente. Neste período ocorreram as grandes traduções, para o árabe, do conhecimento de persas, romanos, gregos, sírios, nos mais diversos ramos de conhecimento como matemática, astronomia, astrologia, ética, mecânica, física, filosofia, arquitetura, geometria, e na medicina: oftalmologia, cirurgia, uso de drogas medicinais, ginecologia, psicoterapia e muitos outros. Foram traduzidas obras de Euclides, Aristóteles, Arquimedes, Pitágoras, Teodesius, Ptolomeu, e na medicina, as obras de Galeno, de Hipócrates, e outros. Esta reunião de conhecimento, de fontes culturais tão diversas, sob a tutela de uma única nação, trouxe uma nova dimensão para o saber humano, uma vez que conhecimentos dispersos em diferentes povos foram colocados sob uma única administração, permitindo sua apreciação em conjunto, e sua consolidação.

O período do apogeu:

Período do século 9 d.C. ao século 16 d.C., no qual todas as ciências, incluindo a medicina, atingiram o ápice de seu desenvolvimento. A partir das obras traduzidas, novos conhecimentos foram acrescentados, decorrentes das pesquisas e estudos de sábios como Rhazes, Abulcassis, Avicenna, Averroes, Al-Nafis, e muitos outros, em grandes centros como Córdoba na Andaluzia, Baghdad, Damasco, Cairo.

O declínio:

A partir do século 16 d.C., início da renascença européia, a civilização islâmica entrou em declínio, porém o conhecimento acumulado no mundo islâmico foi traduzido para os idiomas europeus e tornou-se fonte importante para os desenvolvimentos e descobertas que em última análise culminaram nas ciências e medicina modernas. Muitas obras, inclusive dos filósofos gregos, não estavam mais disponíveis nas versões originais, somente sendo possível recuperá-las a partir das traduções para o árabe.

2.3 - Nomes de destaque no desenvolvimento das ciências médicas

A seguir veremos alguns nomes de destaque que permitirão apreciar, mesmo que superficialmente, a extensão da contribuição da civilização islâmica para o desenvolvimento da medicina.


Rhazes:

Nome completo: Muhammad ibn-Zakariyya al-Razi. Nascido em 865 d.C. em Ray, subúrbio de Tehran, faleceu em 925 d.C. Iniciou seus estudos com música, tornando-se exímio tocador de alaúde, dedicando-se posteriormente à filosofia e à medicina, ciência na qual fez suas maiores contribuições. Recebeu também formação em física e química. Seu primeiro cargo de destaque foi o de médico da corte do príncipe Abu Saleh Al-Mansur, soberano de Khorasan. Posteriormente mudou-se para Baghdah, onde tornou-se médico chefe no hospital da cidade, e médico da corte do Califa. Designado para definir o local da construção do hospital, espalhou pedaços de carne pendurados em vários pontos da cidade, e depois examinou seu estado de putrefação, recomendando a construção do hospital no local onde a carne apresentou menor decaimento. Com este procedimento, pode ser considerado o primeiro médico a inferir a putrefação bacteriológica da carne, sugerindo o papel ambiental que o ar desempenha no desenvolvimento das infecções. Há registro de 56 trabalhos na área médica atribuídos à Rhazes, entre eles podem ser citados:

"Al-Hawi", que significa Texto Completo. Trata-se de uma enciclopédia de conhecimento médico, com 22 volumes, baseados em sua experiência e observações pessoais.

"Al-Mansuri", dedicado ao seu patrono o califa Al-Mansur, composto por dez tratados, incluindo todos os aspectos referentes à saúde e doença. Refere-se a três campos da medicina: Saúde pública, medicina preventiva e tratamento de doenças específicas, enunciando sete princípios para a preservação da saúde: 1. Moderação e equilíbrio no movimento e no repouso, 2. Moderação no comer e no beber, 3. Eliminação dos excessos, 4. Aperfeiçoamento e adequação dos locais de habitação, 5. Evitar ocorrências excessivamente nocivas antes que se tornem incontroláveis, 6. Manter a harmonia nas ambições e nas resoluções, 7. Aquisição de resistência através do cultivo de bons hábitos incluindo exercícios.

Rhazes descreveu os diferentes tipos de febre, afirmando que a febre pode ser um sintoma de doença ou uma doença em si mesma. Introduziu o mercúrio como droga terapêutica, pela primeira vez na história, o qual foi posteriormente adotado na Europa. Enfatizou que a vontade de curar-se, do paciente, é fator importante no processo de restabelecimento, sem o qual as mãos do médico estão atadas. Sua obra teve enorme impacto na Medicina Islâmica, e se tornou texto básico nas escolas médicas por muitos anos.

Ali ibnul-Abbas:

Al-Majusi, conhecido como Haly Abbas no ocidente, faleceu em 994 d.C., foi um renomado médico em Baghdah, diretor do hospital Adud-Dawlah. Sua obra, "Livro completo da arte médica" tornou-se texto básico no ensino da medicina, tratando de temas como: anatomia, classificação e causas das doenças, sintomas e diagnósticos, urina, catarro, saliva, pulso como auxiliares no diagnóstico, manifestações externas visíveis das doenças e doenças internas como febre, dor de cabeça, epilepsia, sinais indicativos de morte ou recuperação, higiene, dieta, terapia com drogas simples, terapias para febres, doenças da respiração, digestão, reprodução, cirurgia, ortopedia, tratamento com medicamentos compostos.

Abulcassis:

Abu al-Qasim Khalaf ibn al-Abbas al-Zahrawi, conhecido como Abulcassis no ocidente, nasceu em Córdoba, então capital da Andaluzia, em 930 d.C, falecendo em 1013 d.C. Foi eminente cirurgião, sendo que uma de suas obra Äl-Tastif, em trinta volumes, trata dos princípios gerais da medicina, os elementos e a fisiologia dos humores, tratamento sistemático das doenças, da cabeça aos pés, e um volume dedicado inteiramente a todos os aspectos da cirurgia. Foi o primeiro livro texto de cirurgia com ilustrações de instrumentos utilizados, até então publicado. Seu prestígio foi tal que foi utilizado em escolas de medicina na Europa até o século 17 d.C. Ele enfatizava a importância do conhecimento de anatomia e fisiologia como essenciais antes de levar adiante qualquer cirurgia:

"Antes de praticar cirurgia deve-se adquirir conhecimento de anatomia e das funções dos órgãos, de forma a compreender sua forma, conexões e limites. Deve-se estar familiarizado com nervos, músculos, ossos, artérias e veias. Se não se compreende anatomia e fisiologia pode-se cometer erros que resultarão na morte do paciente. Eu presenciei alguém fazendo uma incisão no pescoço de um paciente, pensando tratar-se de um abcesso, quando tratava-se de um aneurisma, levando o paciente à morte."

Algumas operações são realizadas hoje em dia da mesma maneira que ele descreveu quase 1000 anos atrás, como, por exemplo, varicose, redução de fraturas cranianas, retirada de feto morto com fórceps. Descreveu a ligadura das artérias, utilizou cauterização para estancar sangramento, descreveu e realizou traqueotomia em situação de emergência, escreveu sobre ortodontia, extração de dentes, fixação, reimplantação, dentes artificiais, descreveu 200 instrumentos cirúrgicos dentais.

Em sua época a cirurgia foi uma especialidade respeitável praticada por médicos renomados, enquanto que na Europa, menosprezada, era praticada por barbeiros e açougueiros, tendo sido banida das escolas de medicina (Conselho de Tours em 1163 d.C.)

Avicenna:

Abu-Ali Husayn ibn-Abdallah ibn-Sina, conhecido no mundo ocidental como Avicenna, aclamado por alguns historiadores com o maior médico de todos os tempos, nasceu em Bukhara, na Ásia Central, em 980 d. C, falecendo em 1073 d.C. Um prodígio, aos 10 anos já havia memorizado o Sagrado Alcorão, aos 16 dominava várias ciências como matemática, geometria, lei islâmica, lógica, filosofia e metafísica. Aos 18 já havia aprendido tudo que havia por saber em medicina, tornando-se, logo em seguida, primeiro ministro e médico da corte do governante de Bukhara. Escreveu seu primeiro livro aos 21 anos. Nos 30 anos que se seguiram escreveu mais de 100 livros, 16 deles em medicina. Sua obra "Kitab al-Qanun fi al-Tibb", conhecida como "O Canon da Medicina", composta por cinco volumes foi traduzida para o latim e foi utilizada como livro texto de medicina em escolas da Europa cristã até o século 16 d.C. Em seus cinco volumes trata de: Princípios gerais e teorias da medicina, drogas simples organizadas em ordem alfabética, doenças localizadas da cabeça aos pés, doenças generalizadas do corpo, drogas compostas. Foi também considerado um grande filósofo.

Averroes:

Ibn-Rushud, conhecido com Averroes, nasceu em Granada em 1126 d.C., falecendo em 1198 d.C. Estudou filosofia, medicina e lei, sendo profundamente influenciado pela obra de Aristóteles. Entre suas obras tem-se "Al-Kulliyat fi al-Tibb", um sumário da ciência médica em sua época, e "Al-Taisir", versando sobre medicina prática e descrições clínicas de doenças.

Al-Nafis:

Ala'el-din ibn-al-Nafis, nasceu no vilarejo de Kersh próximo a Damasco, falecendo em 1288 d.C. Aprendeu medicina e filosofia em Damasco e passou a maior parte de sua vida no Cairo. Foi médico, lingüista, filósofo e historiador. Foi o primeiro chefe do hospital Al-Mansuri no Cairo e decano da escola de medicina em 1284 d.C. Em sua obra escreveu 10 livros de medicina. Em "Sumário do Canon", baseado nos escritos de Avicena, revê e corrige alguns conceitos deste e de Galeno. Contrariando a escola de Alexandria (310 a.C - 250 b.C) e Galeno (131 d.C. -210 d.C.) afirmou que:

"...o sangue da câmara direita do coração deve chegar à câmara esquerda, mas não há caminho direto entre elas. O septo do coração não é perfurado e não há poros visíveis com pensam alguns, ou invisíveis como pensou Galeno. O sangue da câmara direita deve fluir através da artéria venosa (artéria pulmonar) para atingir a câmara esquerda do coração".

2.4 - Contribuições em áreas específicas

A seguir são sumariamente descritas algumas contribuições dos muçulmanos em ramos específicos da medicina.

Farmacologia - Química - Al-Quemia:

Ciência que recebeu grande ênfase na civilização islâmica, com o desenvolvimento de técnicas para refinamento de drogas, medicamentos e extratos, através da destilação, cristalização, solução, sublimação, redução, calcinação.

A farmacologia fixou suas bases no século 9 d.C., com Yuhanna ibn Masawayh (777-857 d.C.), que começou o estudo científico e sistemático das aplicações terapêuticas. Posteriormente, seus seguidores desenvolveram métodos de confirmar a efetividade das drogas através da experimentação com pessoas, bem como aprimoraram métodos de prognóstico e diagnóstico.

A proliferação de droguistas levou à regulamentação da profissão, instituindo-se a concessão de licenças para exercício da função, através de aprovação em um exame de proficiência. Farmácia tornou-se uma profissão independente e separada da medicina e da alquimia. Inspetores aplicavam penas severas aos boticários que adulteravam drogas. Médicos eram proibidos de comerciar medicamentos ou conservar estoques em farmácias.

Com as técnicas desenvolvidas foram introduzidas novas drogas como: Cânfora, sena, madeira de sândalo, ruibarbo, almíscar, mirra, cássia, tamarindo, noz-moscada, alume, babosa, cravo-da-índia, coco, noz-vômica, cubeba, acônito, âmbar cinzento, mercúrio e outras.

A influência dos muçulmanos no desenvolvimento da química e farmácia modernas está registrada no grande número de palavras e expressões derivadas do árabe, como: Droga, álcali, álcool, aldeído, alambique, elixir, xarope, e outras. Criaram extratos aromáticos de água de rosa, água de flor de laranjeira, casca de limão e laranja, alcatira, e outros ingredientes.

Bacteriologia:

Já na época do profeta Muhammad (saws), no início do século 7 d.C., hadith prescreviam instruções para evitar o contato com doenças infecciosas, como por exemplo a lepra, ou para evitar entrar ou sair de uma área assolada por uma epidemia ou praga, ajudando desta forma a minimizar a propagação da doença.

Já citamos anteriormente o procedimento de Rhazes ao espalhar carne fresca em Baghdah para, verificando seu decaimento, escolher o local mais apropriado para construção de um hospital. Rhazes foi também o primeiro a utilizar suturas de seda e álcool para hemostasia, bem como o primeiro a utilizar álcool como anti-séptico.

Avicenna sugeriu a natureza contagiosa da tuberculose. Também recomendou a aposição de vinho em feridas, o que tornou-se prática comum na Idade Média.

Anestesia:

Avicenna foi o introdutor da idéia do uso de anestésicos por via oral. Em seu Cânon de Medicina, Avicenna escreveu, relativamente a anestésicos:

"Se for necessário levar uma pessoa à inconsciência, rapidamente, de forma a tornar a dor suportável, no caso de procedimentos dolorosos em um membro, coloque água de joio em vinho, ou administre fumária, ópio, hioscíamo (doses de meio dracma de cada); noz-moscada, agáloco cru (quatro grãos de cada). Adicione isto ao vinho, e tome tanto quanto for necessário para a finalidade. Ou ferva hioscíamo negro em água, com casca de mandrágora, até tronar-se vermelha. Adicione isto ao vinho."

Os árabes foram os introdutores da "Esponja Soporífica", largamente utilizada como anestesia na Idade Média. A esponja era encharcada com aromáticos e narcóticos para ser sorvida e depois colocada sob as narinas do paciente, como anestésico antes de uma cirurgia.

O desenvolvimento e utilização dos anestésicos foi uma das razões que levou ao aperfeiçoamento da cirurgia como especialidade médica no mundo islâmico, enquanto que na Europa foi banida das escolas de medicina por ser rudimentar.

Instrumentos cirúrgicos
Cirurgia:

A cirurgia no Islam foi praticada em três modalidades: Vascular, geral e ortopédica. Abriam a cavidade abdominal e drenavam a cavidade peritoneal da mesma forma que o procedimento moderno. A primeira colostomia é atribuída a um cirurgião anônimo de Shiraz. Abcessos no fígado eram tratados com punctura e exploração.

Abulcassis (930-1013 d.C.) é considerado o mais renomado cirurgião da Medicina Islâmica. Foi o primeiro cirurgião na história a utilizar algodão nos curativos cirúrgicos para controle de hemorragia, como enchimento nas fendas das fraturas, como enchimento vaginal nas fraturas de púbis e em procedimentos dentários. Introduziu o método de remoção de pedras dos rins por incisões na bexiga urinária. Foi o primeiro a ensinar a posição litotômica em operações vaginais. Descreveu a extirpação de veias varicosas, de forma tão detalhada e precisa como na moderna cirurgia. Em cirurgia ortopédica introduziu o que hoje é denominado método Kocher de redução de deslocamento de ombro.

Avicenna descreveu o tratamento cirúrgico de câncer de forma bastante precisa mesmo para os padrões atuais. Afirmou que a extirpação deveria ser larga e vigorosa, todas as veias ao redor do tumor deveriam ser amputadas, se isto não fosse suficiente a área afetada deveria ser cauterizada.

Psicoterapia

Enquanto na Europa a doença mental era tratada como possessão demoníaca, na civilização islâmica foram feitos importantes avanços, antecipando, em muitos séculos, o desenvolvimento da saúde mental iniciada a partir do século 19 no mundo ocidental.

Najab ud din Muhammad, contemporâneo de Rhazes, através da observação cuidadosa de seus pacientes, elaborou a mais completa classificação de doenças mentais de sua época. Suas descrições incluíam: depressão, tipos de neurose obsessiva, priaprismo combinado com impotência sexual, psicose persecutória, mania, e outras.

Avicenna reconheceu o que denominou "psicologia fisiológica" no tratamento de doenças envolvendo emoções. Desenvolveu um sistema de associar mudanças na freqüência cardíaca, tomada no pulso, com sentimentos interiores, antecipando a associação de palavras trazida por Jung muitos séculos depois. Constam referências de que tratou um paciente com doença grave, sentindo seu pulso e recitando em voz alta o nome de províncias, cidades, bairros, ruas e pessoas. Verificando como mudava seu pulso, à medida que as palavras eram mencionadas, Avicenna deduziu que o paciente estava apaixonado por uma jovem, cuja residência Avicenna foi capaz de localizar, através da verificação do pulso.

No século 8 d.C., em Fez no Marrocos, foi construído um asilo para pessoas mentalmente doentes, da mesma forma em Baghdah em 705 d. C., no Cairo em 800 d.C., em Damasco e Alepo em 1.270 d.C. O tratamento incluía banhos, drogas, carinho e cuidados, musico-terapia e terapia ocupacional. Conjuntos musicais e coros especiais eram organizados diariamente para entreter os pacientes.

Oftalmologia

Uma das contribuições mais importantes foi de Ibn al Haytham (965-1039 d.C), conhecido como Alhazen. Em sua obra "Enciclopédia Ótica", demonstrou que a luz incide na retina da mesma forma que incide em uma superfície, em uma sala escura, através de uma abertura, provando assim que a visão acontece quando raios de luz passam dos objetos para os olhos e não dos olhos para os objetos, como pensavam os gregos. Apresentou experiências relativas ao ângulo de incidência e de reflexão, afirmou que a imagem formada na retina é levada ao cérebro através do nervo óptico.

Rhazes foi o primeiro a reconhecer a reação da pupila à intensidade luminosa, Avicenna foi o primeiro a descrever o número exato de músculos extrínsecos do globo ocular.

Na área cirúrgica oftalmológica, destaca-se como contribuição da civilização islâmica, a extração da catarata. Ammar ibn Ali, de Mossul, desenvolveu um método em que uma agulha metálica era introduzida na esclerótica, e as lentes extraídas por sucção. Este método foi redescoberto na Europa no século 19.

2.5 - Desenvolvimentos de escolas médicas e hospitais

Uma das mais importantes contribuições da civilização islâmica foi o desenvolvimento dos hospitais.

Na antigüidade, não havia hospitais, como conhecemos hoje. Na Europa da Idade Média, os doentes eram agrupados em locais anexos a templos, administrados por sacerdotes. O tratamento baseava-se principalmente em orações e invocações, ou práticas supersticiosas.

No Império Persa, por outro lado, no século VII, a cidade de Jundishapur, abrigava uma universidade com escola médica e hospital, desde o século VI, fundada pelo imperador Khusraw Anushirwan (531-579 d.C.). Quando conquistada, no califado de Hadrat Ummar em 638 d.C., a escola médica e o hospital já estavam bem estabelecidos. Os tratamentos baseavam-se principalmente na análise científica e na tradição de Hipócrates. Com o advento do Islam, a universidade continuou a desenvolver-se. Harith ibn Kalada, contemporâneo do Profeta ( saws), o primeiro médico muçulmano, de que se tem registro, recebeu sua formação na escola e no hospital de Jundishapur. A escola prosperou durante o califado ommíada, sendo que seu hospital e centro médico se tornaram o modelo para a construção das escolas médicas islâmicas e hospitais islâmicos. No califado abássida, o califa Al-Mansur, fundador da cidade de Baghdah, levou Jirjis Bukhtyishu, médico cristão da escola de Jundishapur, para Baghdah, elegendo-o médico da corte, iniciando o processo de migração, para Baghdah, de eminentes médicos e cientistas. Por volta da segunda metade do século VIII, Baghdah já começava a se destacar como centro político do califado. Muitos centros médicos e hospitais foram estabelecidos e desenvolvia-se intensa atividade intelectual e científica. A extensão do império islâmico, abrigando diferentes culturas sob a mesma administração, estimulou o avanço do conhecimento da época.

No mundo islâmico a educação médica era séria e sistemática. O candidato ao estudo de medicina iniciava-se através de um treinamento em ciências básicas. Seu aprendizado incluía anatomia, alquimia, ervas medicinais, conhecimentos farmacêuticos. Muitos hospitais mantinham jardins como fonte de medicamentos e drogas para os pacientes e para treinamento de seus estudantes. Em Baghdah, o estudo de anatomia, além das aulas teóricas e ilustrações, incluía a dissecação de macacos e estudo de esqueletos. O treinamento básico era completado com a admissão do candidato como aprendiz em um hospital, onde integrava-se a um grupo de estudantes sob a orientação de um jovem médico. Neste período a ênfase dos estudos era em farmacologia, toxicologia e uso de antídotos.

Após o treinamento básico iniciava-se o treinamento clínico sob a orientação de médicos renomados e instrutores experientes. O estudo incluía terapêutica, patologia, observação clínica, exames físicos, treinamento em diagnóstico. Na realização de exames físicos os estudantes eram orientados a examinar e registrar as ações dos pacientes, seus excrementos, a natureza e a localização de suas dores, os inchaços de seu corpo, a cor e textura de sua pele, se quente ou fria, se seca ou úmida, se flácida, se havia amarelidão no branco dos olhos, se podia inclinar as costas.

Após este período de instruções nos hospitais os estudantes eram designados a atendimento fora do hospital, sob supervisão de seus instrutores. Muita ênfase era atribuída à clareza e brevidade na descrição de uma doença, e na correta discriminação de cada elemento.

Após completarem seus cursos, muitos estudantes complementavam sua formação sob a orientação de especialistas, aprofundavam o treinamento clínico, ou a prática de procedimentos cirúrgicos, ortopedia, e outros.

Concluído o treinamento, o médico recém-formado não estava apto a iniciar sua prática até ser aprovado em um exame de licenciatura.

Esses exames foram estabelecidos a partir de 931 DC, em Baghdad, pelo Khalifa Al-Muqtadir. Neste primeiro ano, mais de 860 médicos foram examinados, somente em Baghdad, e a partir daí o exame passou a ser exigido e administrado em muitos outros lugares. Foram criados comitês para licenciatura, sob a administração de um Inspetor Geral, o mesmo, já mencionado, que também verificava pesos e medidas praticados por comerciantes e farmacêuticos e exercia controle de qualidade de drogas e produtos vendidos em farmácias e boticários. No exame de licenciatura, o médico chefe aplicava um exame oral e prático, se o jovem médico fosse aprovado, o Inspetor Geral lhe administrava o juramento de Hipócrates e lhe entregava sua licença.

A título de ilustração, segue o conselho dado por Ali ibnul-Abbas (Haly Abbas-994 d.C.) para os estudantes de medicina:

"Entre as coisas que cabem ao estudante desta arte (medicina) está que deve constantemente atender em hospitais e casas de doentes, prestar incessante atenção às condições e circunstâncias dos internos, em companhia dos mais perspicazes professores de medicina e inquirir freqüentemente sobre o estado dos pacientes e os sintomas que aparecem neles, tendo em mente o que leu sobre as modificações e o que indicam de bom ou mal.

2.5.1 - Características dos hospitais na civilização islâmica

Num período em que a Europa estava imersa em barbárie, tendo sido caracterizado como a "Era Negra", no mundo islâmico o conhecimento e a civilização floresciam, o que se refletiu no aperfeiçoamento dos hospitais, que adquiriram algumas características específicas decorrentes dos valores muçulmanos, como:

Ausência de distinção em função da raça, religião ou formação:

Não havia qualquer restrição ao atendimento de pessoas em função de sua raça, religião ou formação. Da mesma forma, a administração do hospital era exercida pelo governo e não por organizações religiosas, sendo os cargos de direção exercidos por médicos, independentemente de sua fé. Os profissionais médicos exerciam suas atribuições sem qualquer restrição à sua religião, raça, ou origem, sendo a preocupação fundamental o bem estar dos pacientes.

Alas separadas:

Alas separadas para pacientes do sexo masculino e feminino. Da mesma forma pacientes com doenças diferentes eram alocados em alas diferentes, especialmente no caso de doenças infecciosas. (Hadith da quarentena).

Enfermeiros separados por sexo:

Enfermeiros homens para tratamentos de homens e enfermeiras mulheres para tratamento de mulheres.

Facilidades de banho e suprimentos de água:

Necessidade decorrente da obrigação muçulmana de orar cinco vezes ao dia, mesmo em caso de doença, caso em que a oração pode ser feita na cama. A oração deve ser precedida pela ablução, lavando-se as mãos, o rosto, a cabeça e os pés, e em algumas circunstâncias de banho completo. Consequentemente os hospitais deveriam dispor de abundante suprimento de água, para pacientes e funcionários, inclusive com facilidades para banho.

Qualificação para exercício da medicina:

Apenas médicos licenciados tinham permissão para pratica da medicina.

Centros de treinamento

Os hospitais também eram centros educacionais, para formação e treinamento de novos médicos, intercâmbio de conhecimento, pesquisa e desenvolvimento da medicina. Continham extensas bibliotecas, auditórios para congressos e conferências, hospedagem para estudantes e funcionários.

Registro dos pacientes

Os hospitais islâmicos introduziram o procedimento de registrar os dados dos pacientes, seus sintomas e os cuidados médicos ministrados.

Desenvolvimento de medicamentos

Novas drogas e medicamentos foram desenvolvidos, aproveitando o afluxo de novos componentes e substâncias decorrente do contato dos muçulmanos com outros povos e seu comércio com a China, Filipinas, África negra, Índia e Europa .

2.5.2 - Hospitais como serviço público gratuito

Os hospitais e centros médicos eram construídos com recursos providos pelos governantes, vizires, califas, sultões, governadores, e mantidos através de um sistema conhecido como Waqf, o equivalente a fundações, a partir de doações dos fiéis. Um dos pilares do Islam é o zakat, contribuição anual de 2,5% do patrimônio líquido de cada fiel, para fins de caridade. Estes recursos eram utilizados pelos governos para manutenção de organizações caritativas, como os hospitais. Todo o tratamento era gratuito, e todos os cidadãos, independentemente de raça ou credo, poderiam fazer uso dos serviços. Muitos poucos hospitais, na civilização islâmica, eram privados. A título de ilustração segue a transcrição de texto de um documento de constituição da Waqf.

"O hospital deve manter todos os pacientes, homens e mulheres até que se restabeleçam completamente. Todos os custos são por conta do hospital quer a pessoa venha das proximidades ou de terras distantes, sejam residentes ou estrangeiros, fortes ou fracos, baixos ou altos, ricos ou pobres, empregados ou desempregados, cegos ou com visão, doentes física ou mentalmente, instruídos ou iletrados. Não há qualquer condição a ser considerada ou qualquer pagamento; nenhuma objeção é feita ou mesmo indiretamente insinuada pelo não pagamento. Todo o serviço é através da magnificência de Allah, O mais generoso".

2.5.3 - Um exemplo de hospital islâmico

Por todo o mundo islâmico foram construídos hospitais: na Síria, no Iraque, na Pérsia, no Norte da África, na Andaluzia, em Damasco, em Baghdah, no Cairo, em Qayrawan, em Marakesh, em Granada.

As instalações eram suntuosas e confortáveis, incluindo o mobiliário. Um dos maiores hospitais, foi o Hospital Mansuri, no Cairo, concluído em 1248, sob o governo de Mansur Qalun. Sua capacidade total era para 8.000 pessoas. Atendia diariamente 4.000 pacientes. Homens e mulheres eram admitidos em alas separadas. Não havia qualquer restrição quanto ao credo, raça ou nacionalidade, ninguém era rejeitado. Não havia limite para o tempo de permanência. O paciente recebia alimentação e uma quantia em dinheiro para compensar sua ausência do trabalho durante o tratamento. O tratamento de pacientes com problemas mentais incluía sessões de músico-terapia. Havia alas separadas para cirurgias, febres, doenças dos olhos. Possuí sua própria livraria, salas de leitura, uma mesquita para muçulmanos e uma capela para cristãos. Este hospital serviu por 700 anos, a partir de sua construção.

3- O Islam e algumas questões atuais relativas à saúde e a vida humana:

Em um hadith (tradição profética), transmitido por Ibn Majah, por Tirmizi e por Abu-Dawud, quando um beduíno perguntou ao profeta (saws) se deveria buscar tratamento para sua doença, o profeta (saws) respondeu:

"Sim, servos de Allah busquem tratamento; Allah não enviou uma doença sem estabelecer uma cura para ela."

Em decorrência deste hadith, todo tratamento disponível deve ser utilizado. Se não há tratamento conhecido que possibilite a cura, deve-se pesquisar e descobri-lo. Neste sentido, estimula-se a que as ciências médicas não se limitem a nenhum ramo específico de cura. Há incentivo para investigação e aplicação de tratamento em todas as áreas: auxílio espiritual, psicológico, físico, ajuste nutricional, farmacêutico com ingredientes naturais ou sintéticos, cirurgia, terapia por radiação, individualmente ou combinação de vários tratamentos.

Todo tratamento, no entanto, deve estar submetido às orientações estabelecidas na Shariat (Lei Revelada). Como afirmado no item 1, as fontes desta lei são o Sagrado Alcorão, os hadith (tradições proféticas), a jurisprudência (fiqh) islâmica e finalmente, o consenso da comunidade.

O desenvolvimento de novas tecnologias, na área médica, nem sempre permite uma interpretação clara e direta, a partir desta fontes, dos limites da aplicabilidade de um novo tratamento, o que pode dar origem a alguma controvérsia, que perdura até que se estabeleça um entendimento consensual.

Nos itens a seguir, serão apresentados alguns tópicos que se destacam no mundo atual e o posicionamento mais aceito no mundo islâmico.

3.1 - Transplante e doação de órgãos.

O transplante pode ser efetuado com algumas restrições:

Não podem ser utilizados órgãos de cadáveres, pois isto é considerado profanação do corpo. Há alguma controvérsia quanto à definição do momento da morte, sendo praticamente consenso que a morte cerebral é o indicador mais preciso. Também há alguma divergência sobre se a restrição se aplicaria ao caso de órgãos ainda vivos em pacientes clinicamente mortos. Há quem advogue que, neste caso, se o órgão ainda está vivo, poderia ser utilizado, desde que esteja individualmente vivo no momento da retirada.

A doação de órgãos entre vivos é considerada como caridade, porém a venda de órgãos é interditada. A autorização prévia do doador é pré-requisito indispensável, mesmo no caso de pacientes que entram em estado de morte clínica. Não há restrição quanto à utilização de órgãos de animais para salvar uma vida, mesmo que de suínos, uma vez que neste caso a necessidade revoga a proibição. O uso de tecido de feto é legítimo, desde que, para sua utilização, não tenha sido provocado aborto.

3.2 - Transfusão de sangue.

É permitida.

3.3 - Autópsia

De maneira geral é proibida, por ser considerada profanação do corpo. Em caso de exigência legal é permitida.

3.4 - Suicídio assistido e Eutanásia

O suicídio é interditado, qualquer que seja a circunstância:

"Ó fiéis, ...não cometais suicídio, porque Deus é misericordioso para convosco." (Surata 4:29)

A eutanásia é considerada como assassinato:

"... quem matar uma pessoa, sem que tenha cometido homicídio ou semeado a corrupção na terra, será considerado como se tivesse assassinado toda a humanidade; quem a salvar, será reputado como se tivesse salvo toda a humanidade." (Surata 5-32)

3.5 - Atendimento médico a pessoas de sexo oposto, atendimento ginecológico.

O atendimento médico a pessoas de sexo oposto é assunto sujeito a certa polêmica e opiniões contraditórias, principalmente quando envolve o exame de parte íntimas.

Desde os primórdios do Islam, no tempo do profeta Muhammad (saws), já houve registro de tratamento dado a pacientes de sexo oposto. Na batalha de Uhud, há referência expressa a uma senhora de nome Nussaaiba Bint Kaab, que quando a situação ficou crítica, abandonou seu equipamento médico, e pegando espada e escudo, deixou suas companheiras que davam atendimento a feridos, para lutar na defesa do Profeta (saws ). Na coleção de hadith de Bukhari há referência a uma senhora, Rubayyie bint Mu'awwidh ibn Afra, que provia tratamento aos feridos, juntamente com outras mulheres.

Na jurisprudência (fiqh) islâmica são encontradas várias referências à permissão de um médico homem, em caso de necessidade, examinar qualquer parte do corpo de uma mulher. Como exemplo de juristas que definiram esta posição tem-se: Ibn Quadam, século VIII, autoridade da escola Hanbali de jurisprudência (fiqh), em seu livro "Al- Mughni"; Ibn Abdeen da escola Hanafi, e outros como; Ibn Muflih no livro Al-Adab al-Shar'iah; Ibn Hamdan; Al-Qadi, e outros.

A seguir transcrevemos um posicionamento quanto a este tema, proferido por Ahmad ibn Naqib al-Misri (d. 769 d.C.), com os comentários do Sheikh Nuh 'Ali Salman:

"É permitido olhar e tocar para aplicação de sangria e tratamento médico (comentário: Quando há necessidade real. Uma mulher muçulmana quando necessitar de atenção médica deve ser tratada por uma médica muçulmana, se não houver nenhuma, por uma médica não muçulmana. Se não houver nenhuma, então por um médico muçulmano, se não houver nenhum, então por um médico não muçulmano. Se o médico for do sexo oposto, seu esposo ou parente com o qual não seria lícito o casamento deve estar presente. É obrigatório seguir esta ordem na seleção do médico. As mesmas regras se aplicam ao muçulmano, homem, em relação a ter um médico do mesmo sexo e mesma religião: o mesmo sexo tem precedência sobre a mesma religião.)"

Na conceituação do significado preciso de "necessidade real", além da imperiosa necessidade de tratamento, há quem inclua o tempo necessário para encontrar o médico adequado, face à urgência requerida, a qualificação do médico face ao tratamento necessário, e, principalmente nos casos de risco de vida, a reputação do médico e sua experiência e proficiência demonstrada.

3.6 - Inseminação artificial e outras técnicas de reprodução assistida.

O casamento, no Islam, é considerado um contrato entre marido e mulher, e entre estes e Allah. Assim qualquer técnica de reprodução deve envolver somente os dois cônjuges, e o requerido respeito à Shariat (Lei Divina), que estabelece por exemplo, a importância da linhagem:

"Ninguém pode ser suas mães exceto aquelas que os geraram." (Surata 58:2)

"Ele foi Quem criou os humanos da água, aproximando-os, através da linhagem e do casamento, em verdade, o teu Senhor é Onipotente." (Surata 25:54)

Assim as técnicas de reprodução artificial são permitidas, se forem aplicadas em um casamento válido. Por exemplo, é lícita a inseminação artificial utilizando o esperma do marido, que após fertilizar o óvulo da esposa (no útero ou em tudo de ensaio) é implantado no útero da esposa. A utilização de mãe substituta não é permitida por não ser possível definir quem será a mãe (Surata 58:2), e também pela questão da linhagem.

3.7 - Métodos anticoncepcionais

São permitidos os métodos que não sejam danosos, não provoquem aborto e que não provoquem a esterilidade. Sua utilização deve ser precedida da concordância de marido e mulher.

Embora permitidos não são estimulados por implicarem em interferência com o processo natural de reprodução. São justificáveis quando há motivos racionais e necessidades reais.

A esterilização permanente não é permitida, só sendo aceitável nos casos de indicação médica justificável.

3.8 - Aborto

Como regra geral, o aborto não é permitido.

Há consenso, na jurisprudência (fiqh) islâmica, de que, a partir do momento em que começam as manifestações dos sinais de vida pelo feto, o aborto é proibido.

Com relação ao período que antecede as manifestações dos primeiros sinais de vida, não há consenso. Alguns juristas advogam que, não havendo vida, não há crime. Outros, pelo contrário, sustentam que eliminar a possibilidade de uma nova vida é crime, e portanto o aborto seria proibido já a partir do momento em que se constata que houve concepção.

Também não há consenso quanto ao que seriam as primeiras manifestações dos sinais de vida. A este respeito muitas vezes é citado um hadith do Profeta Muhammad (saws), relatado por Abu 'Abd-ur-Rahman, Abdul-lah Ibn Mas'ud (40 hadith Nawawiyah), transcrito a seguir:

"certamente que a criação de cada um de vós ocorre no ventre de vossa mãe: durante quarenta dias na forma de um broto, depois como um coágulo por um período igual, depois como um pedaço de carne por período igual, então é enviado um anjo que lhe sopra o espírito e lhe estabelece quatro assuntos: a duração de sua vida, seu sustento, suas obras e se será feliz ou desgraçado,..."

No passado, muitos juristas islâmicos não consideravam crime o aborto antes dos primeiros 120 dias da concepção, e sim como uma ação que não era nem lícita nem ilícita, mas que deveria ser evitada. Após os 120 dias, passaria a ser considerado assassinato, pois a partir deste momento o feto já seria um ser humano completo, física e espiritualmente. Porém este posicionamento nunca foi consensual, renomados juristas sustentavam que não há neste, e em nenhum outro hadith, qualquer orientação que implique que o feto antes dos 120 dias seja descartável.

Com o avanço tecnológico, mais se conhece a vida intra-uterina, o que tem levado à possibilidade de detecção dos primeiros sinais de vida a momentos cada vez mais próximos da concepção.

O aborto somente é aceitável, em qualquer caso, se a continuidade da gravidez implicar na morte da mãe.

3.9 - Circuncisão masculina

A circuncisão é recomendada para crianças do sexo masculino. Se não feita na infância é recomendado que seja feita, mesmo após a adolescência.

Recentes pesquisas têm demonstrado o efeito higiênico propiciado pela circuncisão masculina.

A Associação Médica Islâmica da África do Sul relata que a tribo africana de Xhosa, que pratica a circuncisão, tem uma menor taxa de disseminação de AIDS que os Zulus, que não praticam a circuncisão. Ambas as tribos não são muçulmanas, portanto o fator religioso não interferiu na constatação, e vivem em condições ambientais similares. Outro estudo (Daniel, 1986) indica que o revestimento interno de um pênis ereto não circuncidado cobre no máximo 50% da superfície da glande, o que facilita a ruptura da pele macia, aumentando o risco de infeção..

3.10 - Engenharia genética

Permitida para curar uma doença, por exemplo, através da eliminação de um gene. A clonagem, em princípio, não é aceita, principalmente em função da questão da linhagem.

3.11 - Uso de medicamentos contendo álcool ou produtos à base de suínos.

Com relação ao uso do álcool como medicamento, em um hadith transmitido por Muslim, Abu-Dawud e Tirmidhi relata-se que o Profeta Muhammad (saws), inquirido por um homem que ingeria vinho como medicamento, respondeu:

"Esse não é um medicamento e sim uma doença"

Em outro hadith, transmitido por Abu-Dawud:

"Allah fez surgir a doença e mostrou a cura, e para cada doença existe uma cura. Portanto, tome remédios mas não use nada que seja ilícito"

Desta forma, a utilização de medicamento contendo álcool só é lícita para salvar uma vida, e desde que não haja alternativa. O mesmo se aplica a utilização de suínos. Esta permissão é decorrente do princípio de que a necessidade permite exceções, princípio de jurisprudência (fiqh) derivado das diretrizes do Sagrado Alcorão:

"...Porém, quem, sem intenção nem abuso, for compelido a isso, não será recriminado, porque Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo." (Surata 2:173)

3.12 - Homossexualidade

Nos anos recentes as pesquisas médicas têm estudado a questão da homossexualidade, buscando identificar suas causas, se genéticas ou adquiridas. Já foram observadas diferenças em regiões do cérebro de homossexuais e heterossexuais. Não é conclusivo, se estas diferenças são causa ou conseqüência da prática homossexual. No entanto, mesmo que a preferência tenha origem genética, isso em nada altera o ponto de vista islâmico, uma vez que a conduta é abominada. No Islam a homossexualidade (masculina ou feminina) é considerada perversão e não deve ser praticada, em nenhuma circunstância.

"Dentre as criaturas, achais de vos acercardes lascivamente dos varões, deixando de lado o que vosso Senhor criou para vós, para serem vossa esposas? Em verdade, sois um povo depravado!" (Surata 26:165 a 166)

3.13 - Tratamento a aidéticos.

A perspectiva islâmica é a da ênfase na prevenção, através do estímulo ao modo de vida correto. Após estabelecida a doença seu tratamento deve seguir o curso normal, sem qualquer discriminação ao paciente.

4. - Prevenção da AIDS

O impacto da contaminação por HIV é significativamente menor nos países islâmicos relativamente aos países não islâmicos. A seguir tem-se alguns dados comparativos, publicados pela OMS - Organização Mundial de Saúde em conjunto com a UNAIDS - Programa da Nações Unidas em HIV e AIDS. Analisa-se também a abordagem islâmica relativa à prevenção da AIDS transmitida via sexual, em confronto com o enfoque ocidental.

4.1- Impacto da AIDS em países islâmicos versus países não islâmicos.

Praticamente todos os países do Oriente Médio estão entre os mais representativos da aplicação dos princípios islâmicos ao modo de vida, dada a ênfase e aderência da população à Shariat (Lei Islâmica), mesmo nos países que não a adotam com Lei Civil. Nesta região, a tradição islâmica é um traço muito forte e presente em todas as relações humanas.

4.2 - Abordagem islâmica para prevenção da AIDS

O mundo ocidental passou, por muitos séculos, submetido ao conceito de que a sexualidade tem a função exclusiva de procriação para perpetuação da espécie, sendo condenada, e reprimida, a pratica sexual como fonte de prazer. Na segunda metade deste século, estudos científicos da sexualidade e seus aspectos psicológicos e fisiológicos e, também, os movimentos de libertação da mulher, levaram a construção de um novo paradigma, caracterizando o que foi denominado "Revolução sexual". O prazer passa a não ser mais condenável, pelo contrário, passa a ser estimulado como necessário a uma vida saudável e equilibrada. A forma e métodos para a prática de relação sexual consensual entre adultos passa a ser considerada assunto estritamente pessoal, dizendo respeito apenas ao indivíduo e suas preferências, sem qualquer implicação social mais ampla.

Refletindo este contexto, o modelo ocidental para prevenção da AIDS, quanto ao aspecto sexual, está fundamentado na preservação dos resultados dessa "revolução". O ambiente cultural em que se situa é o da mais ampla liberalidade, com incentivo à tolerância, mesmo aos comportamentos sexuais mais exóticos, poucos anos atrás, classificados como pervertidos. Esta postura reflete-se na produção intelectual, artística, educacional, bem como na publicidade, na propaganda e nos meios de comunicação em geral. As estratégias preventivas, obviamente não estão dissociadas destes condicionantes e tendem a não enfatizar o questionamento da conduta sexual e das preferências, e sim oferecer meios de proteção alternativos.

Será este enfoque adequado para o contexto islâmico? Por exemplo, campanhas, veiculadas em meios de comunicação de massa, estimulando o uso de preservativo nas relações sexuais, seriam aceitáveis e eficientes numa comunidade que vive o modo islâmico de vida?

No contexto islâmico, ao contrário do mundo ocidental, a prática sexual como fonte de prazer sempre foi incentivada. No Islam a sexualidade não é considerada apenas em sua função reprodutiva. Além desta função sagrada, o desfrutar do prazer sexual é parcela importante da vida conjugal. Um hadith (40 hadith Nawawiyah), afirma:

"... em cada ato sexual entre vós há caridade"

Outro exemplo: Uma mulher muçulmana pode solicitar o divórcio, perante a corte de justiça, se seu marido não satisfizer suas obrigações sexuais.

Assim, no mundo islâmico, nunca houve repressão à expressão da sexualidade conjugal, sendo considerada como função natural e importante da vida humana. Por outro lado, a manifestação da sexualidade, embora assunto privado, que diz respeito apenas à intimidade do casal, tem, no mundo islâmico, condicionantes sociais. Ë submetida a limites, definidos pela Shariah (Lei Divina), revelada através do Sagrado Alcorão, e explicada nas tradições proféticas, que levam à proteção da família, como ambiente saudável para educação dos filhos e formação de um tecido social estável e equilibrado. Adicionalmente, há restrições e orientações específicas que dizem respeito à higiene na prática sexual.

No Islam, a sexualidade só é aceita sob o instituto do casamento, sendo a sua prática, fora desta limitação, sujeita a severas punições, tanto para o homem como para a mulher. Não é permitida a relação sexual anal e o sexo vaginal durante a menstruação. A pratica homossexual é proibida e punida. Há também a prática de tradições de caráter higiênico como: A circuncisão para os homens (vide item 3.9 ) e a ablução total (banho) após a relação sexual.

Neste contexto a estratégia de prevenção da AIDS adotada no mundo ocidental encontra severas restrições. Por exemplo, o incentivo ao uso de preservativos. Na sociedade islâmica o preservativo só têm função como método anticoncepcional entre cônjuges (só podendo ser utilizado com a concordância de ambos). Estimular seu uso, como proteção contra o contágio via relação sexual, seria o mesmo que admitir a possibilidade do sexo extra conjugal ao incentivar os meios de sua pratica segura, o que seria inadmissível na sociedade islâmica.

Deve ser observado que na cultura islâmica não há contemporização com os objetos e ações considerados nocivos. O álcool, por exemplo. Considerado deletério, e proibido, segundo a Shariat, com base em ayats do Sagrado Alcorão, tem uso interditado, quer seja como bebida, quer seja em pequenas quantidades em produtos culinários, quer seja em medicamentos (seu uso médico só é permitido em casos de extrema necessidade, em que não há outra alternativa). O princípio é que, quando algo é nocivo, tudo o que o induz, estimula ou promova também é nocivo.

As transgressões são punidas, pois em questões como estas prevalece o bem maior, isto é, o respeito à Lei Revelada, que tem como uma das conseqüências preservar a saúde da coletividade e a estabilidade das relações sociais. A punição, visa educar o indivíduo e exemplificar para o coletivo. Quando um indivíduo pratica um ato interditado, as conseqüências de sua ação escapam ao domínio individual, pois influenciam a comunidade através de seu exemplo.

Como ilustração desse aspecto, das implicações coletivas da prática individual, certa vez o Profeta (saws) foi procurado por um jovem que, alegando não conseguir controlar-se, pedia permissão para praticar relações sexuais fora do casamento. O Profeta (saws) lidou com ele, através da razão, perguntando-lhe se ele aprovaria alguém praticando sexo ilegal com sua mãe, com sua irmã, filha ou esposa. A cada vez que ele respondia não, o Profeta (saws) afirmava que a mulher com quem ele planejava manter relações sexuais poderia ser a mãe, irmã, filha ou esposa de alguém. O homem compreendeu as implicações de seu desejo e arrependeu-se.

Esta postura islâmica está alicerçada em um modo de pensar milenar, com base na Lei revelada do Sagrado Alcorão e nas tradições proféticas. Faz parte de um sistema complexo e coerente, com ramificações em todas as atividades intelectuais, sociais e culturais.

Em conseqüência, o procedimento ocidental parece estranho e encontra fortes críticas no meio islâmico. Para o muçulmano típico, este modo de pensar e agir é considerado contraditório, pois permite a promoção de condutas nocivas e ao mesmo tempo despende enorme esforço, com elevados custos, para reduzir o efeito deletério destas condutas, em detrimento do bem comum da sociedade como um todo.

Os dados apresentados no item 4.1 parecem apontar para uma ineficiência da estratégia ocidental de prevenção. Países do primeiro mundo, com sistemas educacionais avançados, que dedicam enorme esforço e alto investimento em medidas preventivas, apresentam elevada incidência. Por exemplo, os Estados Unidos (tabela 5), com uma taxa de 609,7 pessoas por 100 mil habitantes. Valores muito acima (4.554 % maior) da taxa de 13,1 pessoas por 100 mil habitantes observada nos países do Oriente Médio com forte aderência ao modo de vida islâmico (tabela 1).

Para finalizar, considere-se, a título de exemplo da tradição islâmica, um hadith em que o Profeta (saws) afirma:

"Se ahishah ou fornicação (sexo fora do casamento) e todos os tipos de relação sexual pecaminosas tornarem-se desenfreados e abertos, praticados sem inibições em qualquer grupo ou nação, Allah irá puni-los como novas epidemias (ta'un) e novas doenças que eram desconhecidas de seus antepassados e gerações anteriores."

Este hadith, transmitido e autenticado por Ibn Majah e outros eruditos, trazido a mais de 1.400 anos, é de impressionante atualidade. Tem implícito o conceito de mutação no uso da palavra al-jadidah, novas doenças. Também afirma que estas doenças atingirão proporções epidêmicas, isto fica claro pelo uso da palavra ta'un, que significa especificamente "praga", mas é utilizada genericamente, em árabe, para indicar qualquer epidemia. Fornicação sem inibição é uma clara referência a um ambiente caracterizado pela sedução praticada de forma pública, estimulando a atividade sexual descontrolada.

5. - Conclusão

A religião islâmica surgiu no ano 610 d.C com o início da revelação do Sagrado Alcorão, em Meca, na atual Arábia Saudita. Trouxe, deste o início, princípios de valorização do conhecimento, de tolerância e respeito aos diversos povos, culturas e religiões. Como conseqüência, a civilização islâmica contribuiu não só para a recuperação do conhecimento dos povos da antigüidade clássica, como também criou os meios e condições para sua ampliação e desenvolvimento. As ciências médicas foram beneficiárias diretas deste contexto, em suas diversas áreas, como Al-Chemia, farmacologia, bacteriologia, anestesia, cirurgia, psicoterapia, oftalmologia, ortopedia, desenvolvimento de hospitais e escolas médicas.

Após o declínio da civilização islâmica, este conhecimento foi transferido para a civilização ocidental, traduzido do árabe para os idiomas europeus, contribuindo para o avanço da ciência, inclusive na medicina.

As orientações para tratamento médico, como todas as atividades na cultura islâmica, tem como fonte principal de diretrizes, as orientações do Sagrado Alcorão, seguido pelas tradições do Profeta Muhammad (saws), a jurisprudência islâmica (fiqh) e o consenso da comunidade. Questões como transfusão de sangue, autópsia, eutanásia, métodos anticoncepcionais, aborto, circuncisão, e muitas outras são consideradas à luz destas fontes. Os contínuos avanços do conhecimento humano, das ciências e, mais especificamente, da medicina têm trazido novas técnicas com implicações éticas, quem devem ser avaliadas sob o mesmo prisma, na verificação de sua aplicabilidade aos valores e modo de vida islâmico. Por exemplo, temas como: os novos métodos de reprodução, transplante, engenharia genética e outros.

Com relação aos métodos de prevenção da AIDS, verifica-se que o enfoque ocidental está em oposição ao valores e modo de pensar islâmico, principalmente em decorrência dos princípios que estruturam cada sociedade. Observa-se ainda que os países com aderência ao modo de vida islâmico apresentam número significativamente menor de pessoas contaminadas por 100.000 habitantes, relativamente aos países da Europa e Américas.

Hajji Sheikh Muhammad Ragip al-Jerrahi

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