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sexta-feira, 26 de julho de 2013

Mitos e verdades em ciência e religião: uma perspectiva histórica

Deus como Geômetra
O frontispício da Bíblia Moralisada

Quando o tema é “Mitos e Verdades na Ciência e na Religião”, é lamentável o fato de que após anos, décadas de pesquisas realizadas por historiadores na História da Ciência e da Religião, os mesmos mitos antigos que temos corrigido repetidamente continuam a ter vida própria e a ser amplamente conhecidos pelo público em geral. Um dos maiores desafios, eu creio, para retificar a compreensão do público acerca da ciência e da religião atualmente é esclarecer os mitos que ainda persistem desde o passado.
O público leigo, na medida em que pensa de alguma maneira a respeito dos problemas relacionados à ciência e à religião, tem a certeza de que a religião institucionalizada sempre se opôs ao progresso científico; testemunhas disso são Copérnico, Galileu, Darwin, Freud, John Thomas Scopes. Eles sabem que a ascensão do Cristianismo exterminou a antiga ciência, que a Igreja Cristã Medieval suprimiu o crescimento da Filosofia Natural, que os cristãos medievais ensinavam que a Terra era plana, que a Igreja proibiu autópsias e dissecações durante a Idade Média e o Renascimento.

Por outro lado, os religiosos sabem que a ciência teve papel preponderante na corrosão da fé por intermédio do Naturalismo e do antibiblicismo. Se quisermos que o público passe a ter uma visão renovada no que concerne ao relacionamento entre ciência e religião, acredito que devamos dissipar os antigos mitos que continuam a se passar por verdades históricas. E aqui devo deixar claro que me refiro a “mitos” no seu bom e antigo sentido original, como ficção ou meia-verdade, não no sentido dos complexos estudos antropológicos e religiosos; assim, deixemos isso já definido.

John William Draper
John William Draper
Escritor do livro "A História do Conflito entre a
Ciência e a Religião", lançado em 1870.
A comunidade acadêmica vem debatendo amplamente a melhor forma de caracterizar a relação histórica entre ciência e religião, e nenhuma generalização tem sido mais sedutora do que a do conflito. De fato, os dois livros mais lidos sobre a história da ciência e o Cristianismo têm em seus títulos as palavras “conflito” ou “guerra”. O primeiro dos livros a ser lançado foi o de John William Draper: A História do Conflito entre a Religião e a Ciência (The History of the Conflict between Religion and Science). Lançado em meados da década de 1870, longe de ser uma história desapaixonada, constituiu-se num longo discurso contra os católicos romanos e o que estes fizeram para inibir o progresso científico.
Draper argumentou que a antipatia do Vaticano pela ciência deixou suas mãos impregnadas de sangue. Pode parecer estranho o porquê de alguém – sendo um proeminente químico, fundador e primeiro Presidente da Sociedade Americana de Química, muito ativo no desenvolvimento da fotografia nos Estados Unidos – ter passado tanto tempo escrevendo um livro inteiro acusando os católicos. Draper tinha um filho pequeno que adoeceu gravemente e que possuía um livro favorito. A irmã de Draper, que era freira católica, vivia com eles e, antes que o menino viesse a falecer, tirou o livro dele porque ela não o achava suficientemente edificante. Pouco depois da morte, ela colocou o livro no lugar onde o menino sentava-se à mesa de jantar e Draper nunca a perdoou por isso. Essa parece ter sido, em grande parte, a fonte de sua animosidade contra o Catolicismo.
Draper ignorou ou depreciou as contribuições científicas de muitos devotos católicos, de Copérnico e Galileu a Galvani e Pasteur.

John Heilbrion - The Sun in The
Church: Cathedrals as Solar Observatories
Apenas recentemente tivemos uma pesquisa de muito boa qualidade acerca do Catolicismo e a ciência moderna em seus primórdios realizada por John Heilbron, cujo trabalho premiado The Sun in The Church: Cathedrals as Solar Observatories (O Sol na Igreja: as Catedrais como Observatórios Solares) argumenta que a Igreja Católica Romana deu mais financiamento e apoio social ao estudo da astronomia por mais de seis séculos, desde a recuperação do conhecimento tradicional no final da Idade Média até o Iluminismo, do que qualquer instituição – e, provavelmente, mais do que todas as outras juntas. O que teríamos feito sem a Igreja Católica?

A razão pela qual a Igreja inicialmente se interessou tanto pelos observatórios foi para estabelecer a data para a Páscoa, mas no final das contas esses observatórios foram utilizados para estudar a geometria do sistema solar bem como outros assuntos de interesse geral da Astronomia. Além disso, hoje sabemos que a escola médica Papal, San Viansa, atualmente a Universidade de Roma, foi durante anos, décadas e até mesmo séculos, no início do período moderno, a pioneira em estudos de anatomia e fisiologia.

Andrew Dickson White
History of the Warfare of Science
with Theology in Christendom
Livraria Cultura
Andrew Dickson White, um historiador e o primeiro reitor da Universidade de Cornell em Nova Iorque, escreveu o segundo livro, um tratado monumental sobre História da Guerra da Ciência com a Teologia na Cristandade (History of the Warfare of Science with Theology in Christendom). Ele começou a proferir conferências sobre esse assunto no final da década de 1860, publicou um pequeno folheto antes de Draper, seguiu escrevendo capítulos durante anos e finalmente, em 1896, publicou essa obra-prima em dois volumes. Ele descreveu o conflito entre o Cristianismo e a ciência como uma série de batalhas travadas entre teólogos dogmáticos e de visão limitada e homens de ciência em busca da verdade. Tudo começou quando ele tentou obter financiamento público que o Congresso havia conferido a vários estados a fim de financiar o ensino de técnicas agrícolas e mecânicas. White estava determinado em Cornell a montar um refúgio para a ciência e não se curvar de forma alguma a quaisquer interesses religiosos. Ele foi bem-sucedido na competição contra muitos líderes de instituições religiosas que os tornou de algum modo críticos de Andrew Dickson White, por isso seu interesse na luta permanente entre a ciência e a religião. Segundo sua descrição: “Era um conflito antigo, uma guerra que perdurou mais do que as batalhas mais violentas, com ações mais persistentes, com estratégias mais vigorosas do que quaisquer dos relativamente insignificantes conflitos armados de Alexandre, César ou Napoleão”.
White acreditava que algumas das batalhas mais sangrentas foram travadas entre os séculos XVI e XVII durante o período da assim chamada revolução científica, quando poderosos líderes da Igreja repetidamente tentaram silenciar os pioneiros da ciência moderna. Copérnico, ele disse, que havia ousado localizar o sol no centro do sistema solar, arriscou sua própria vida para publicar suas concepções heréticas e escapou às perseguições apenas por causa de sua morte. Muitos de seus discípulos tiveram um destino menos feliz. Giordano Bruno foi queimado vivo como um monstro da impiedade; Galileu foi torturado e humilhado como o pior dos incrédulos; Kepler foi caçado igualmente por Protestantes e Católicos. Andreas Vesalius, o médico do século XVI que estabeleceu os fundamentos da anatomia moderna ao insistir em cuidadosas dissecações diretas no corpo humano, pagou por sua temeridade, tendo sido caçado até a morte. A última vítima nessa duradoura guerra contra a ciência, disse White, foi essa instituição, a Universidade de Cornell, e seu arrogante reitor, Andrew Dickson White.
A despeito dos numerosos livros e artigos questionando a interpretação de White, sobretudo a elegante refutação de Jim Moore publicada no fim dos anos 1970, o conflito metafórico mantém-se popular, não apenas entre o público em geral, mas igualmente nas comunidades científica e religiosa. Segundo o meu conhecimento ou de meus colegas que trabalham com a história da revolução científica, nenhum cientista perdeu sua vida por causa de suas concepções científicas. Muito embora a Inquisição italiana, de fato, tenha incinerado o copernicano do século XVI Giordano Bruno, porém, em razão de suas concepções heréticas em relação à divindade ou não divindade de Cristo e não porque ele acreditasse na infinitude do universo ou por ele ser copernicano. Ele defendia a ideia de que Cristo não possuía um corpo humano e que sua morte na cruz foi mera ilusão, o que fez com que algumas autoridades eclesiásticas ficassem um pouco desgostosas com ele. Ele também tinha outras ideias heréticas.
Galileu
Contrariamente às histórias frequentemente contadas sobre a tortura e a prisão de Galileu, sabemos hoje que aparentemente ele nunca foi fisicamente torturado – ele pode ter vivido um sofrimento mental considerável, mas nunca fisicamente torturado. Ele deixou a cidade de Florença e foi para Roma em 1633. Quando lá chegou – para seu julgamento – ele permaneceu inicialmente na Embaixada da Toscana e não em uma prisão ou gabinetes da Inquisição. Os poucos dias que passou dentro do Vaticano durante seu julgamento não foram dentro de uma cela, mas em um apartamento especial com três cômodos disponibilizado para ele como convidado de honra de um dos padres que faziam parte da Inquisição. Para tornar sua estadia a mais agradável possível, eles permitiram que suas refeições fossem preparadas pelo cozinheiro-chefe na Embaixada Italiana e trazidas a essa “não cela”.
Após sua condenação, ele não foi encarcerado, mas ficou detido em regime de prisão domiciliar, primeiramente na Villa Medici em Roma, depois no Palácio do Arcebispo em Sienna onde ele permaneceu por um longo período e, então, finalmente em sua própria casa de campo nos arredores de Florença. Não acredito que nenhum de nós gostaria de ficar detido em prisão domiciliar durante qualquer período de tempo, embora esse tenha sido um destino bastante diferente daquele atribuído a ele de acordo com tantos estudos populares sobre a vida de Galileu. Também sabemos, por intermédio de Andrew Dickson White e muitos outros, que ao longo da Idade Média a igreja ensinava que a Terra era plana e que devemos ao bravo e heroico Cristóvão Colombo a prova empírica de que o mundo era na realidade esférico, ao navegar até a América do Norte. Infelizmente, uma das pessoas responsáveis por essa concepção foi um ilustre intelectual do século XIX, daqui da Universidade de Cambridge, William Whewell, que popularizou essa visão em sua história das ciências indutivas.
William Whewell,
O homem que popularizou a história
das ciências indutivas
Mas, mesmo alguns anos antes de Whewell, como demonstrado pelo historiador Geoffrey Russell, um escritor estadunidense chamado Washington Irving em um tipo de biografia ficcional de Colombo falava da Terra como sendo plana. Portanto, foi somente a partir do século XIX que as pessoas passaram a acreditar que na Idade Média todos pensavam que a Terra fosse plana. Na verdade, se retrocedermos até Aristóteles e de lá avançarmos até o século XVI, quase ninguém pensava que a Terra fosse plana; ela era quase que universalmente descrita por pessoas instruídas como uma esfera, mas houve duas pessoas na Idade Média que defendiam a não esfericidade da Terra. Eles, é claro, foram aqueles citados por Whewell na primeira metade do século XIX e que continuam a ser os representantes da concepção errônea que se estende ao futuro.
No início do século XIX, o psicólogo Sigmund Freud observou que a ciência já tinha infligido três grandes ataques contra o ingênuo amor próprio da humanidade. O primeiro foi associado ao astrônomo do século XVI Nicolau Copérnico, quando foi constatado que a Terra não era o centro do universo, mas apenas uma pequena partícula em um sistema de mundo de uma magnitude dificilmente concebível.
O segundo, de acordo com Freud, foi associado a Charles Darwin, assim que sua pesquisa biológica roubou do homem seu peculiar privilégio de ter sido especialmente criado e o relegou a um descendente do mundo animal.
De maneira vaidosa, Freud observou que o desejo do homem pela grandiosidade está sofrendo agora o terceiro e mais amargo golpe, dessa vez pelas mãos dos psicanalistas, como ele mesmo, que estavam demonstrando que os seres humanos se comportam sob a influência de necessidades inconscientes. No entanto, Freud não precisava ter se preocupado tanto com o sofrimento psíquico causado pela ciência moderna. O copernicanismo tinha efetivamente desalojado os seres humanos do centro do cosmos, mas esse foi um deslocamento positivo. De acordo com a cosmologia aceita naquela época, o centro do universo era o pior lugar para se estar e, se procurarmos na literatura, raramente encontramos pessoas reclamando por terem sido desalojadas desse terrível centro do universo. Elas tinham muitas outras objeções, talvez bíblicas, vivenciais também, mas a preocupação de ter sido desalojado é apenas uma outra ficção que começou a ser propagada.

Charles Darwin e Freud
A psicanálise nunca alcançou a proeminência que seu fundador sonhou, dessa forma nunca causou o trauma que ele antecipara dentre a maioria das pessoas. Mas, e o Darwinismo? E seus efeitos? Quanto desgaste emocional causou a revelação de que macacos ancestrais geraram os humanos? Ora, temos aqui algumas declarações muito interessantes a respeito do impacto, das quais duas quero ler para vocês.
O historiador Peter J. Bowler disse que “o maior triunfo do Darwinismo era que ele em pouco tempo estabeleceu uma ruptura total entre ciência e religião”. Interessante, mas bastante modesto quando comparado com o que o falecido Ernst Meyer disse em um de seus últimos livros antes de sua morte, “O que é a Evolução” (What Evolution is), onde ele diz: “Não é de se estranhar que a ‘Origem’ (das Espécies) tenha causado tamanho tumulto. Ele quase que sozinho efetivou a secularização da ciência”.
Mas isso levanta uma questão interessante: a que ponto a ciência tem estado envolvida em algo chamado secularização? De volta às décadas de 1960 e 1970, um grande número de sociólogos particularmente, e também alguns historiadores, discutiram acerca da história da secularização e previram que muito em breve o mundo se tornaria completamente secular. Um dos mais distintos antropólogos nos Estados Unidos, Anthony Wallis, escreveu em um livro no ano de 1966 que “O futuro evolucionário da religião é a extinção, isso com bases em pesquisas empíricas, tenho certeza. A crença em seres e forças sobrenaturais que afetam a natureza sem obedecer às leis da natureza será desgastada e se tornará apenas uma memória histórica interessante”. E na maioria das teorias da secularização que se popularizaram após a Segunda Guerra Mundial, a ciência desempenhou o papel-chave em minar as convicções religiosas. É interessante hoje, quando lemos os sociólogos, que agora estão tentando explicar por que a crença religiosa é tão vigorosa em todo o mundo e não apenas a crença religiosa, mas mesmo a crença religiosa fundamentalista. Seja na Índia, no Oriente Médio ou na América do Norte, a religião tem demonstrado ser bastante resiliente e parece estar crescendo, mesmo em suas mais conservadoras e inaceitáveis versões. Portanto, temos um problema muito diferente a explicar daquele que explicamos há apenas algumas décadas.
Há alguns estudos tentando avaliar o impacto da ciência e particularmente do Darwinismo sobre a perda da fé no século XIX, e claramente algumas pessoas abandonaram suas crenças por conta do Darwinismo, porém, Charles Darwin não o fez. Novamente, como Jim Moore mostrou há anos, em um dos mais comoventes ensaios que li na história da ciência e que honestamente me levou às lágrimas, ele conta a história de como Darwin perdeu sua fé. Primeiro ele perde seu pai, que era um médico maravilhoso, e de acordo com a teologia cristã, por seu pai não ser um crente, ele queimaria para sempre no inferno. Como um Deus justo poderia fazer uma coisa dessas? Em seguida, seu irmão morre. O golpe final em suas crenças religiosas foi quando, aos 10 anos de idade, sua filha Annie adoeceu. A Sra. Darwin estava grávida, assim Charles Darwin levou a filha para a hidroterapia, da qual ele já havia se beneficiado, e permaneceu junto à filha até que ela sucumbiu e faleceu. Ele ficou tão desconsolado que não pôde sequer estar presente no funeral. Darwin acreditava que se houvesse um Deus onisciente, um Deus onipotente que pudesse ter salvado a vida de Annie, por que não o faria? Portanto, foram essas experiências muito pessoais pelas quais ele passou, e não a doutrina da seleção natural, que o impeliram a abandonar o Cristianismo.
Há alguns anos, uma socióloga britânica chamada Susan Budd estudou as biografias de cento e cinquenta secularistas e livre-pensadores britânicos que viveram entre 1850 e 1950. Um dos problemas no estudo da secularização é o de aprender o bastante sobre os indivíduos para contar o que aconteceu. Porém, na literatura dos livre-pensadores, muitas vezes seus obituários contêm as histórias de como eles perderam a fé, o que era uma coisa interessante de se registrar. Dessa forma, ela tinha uma base de dados raramente disponível para as pessoas que tentam encontrar respostas para tais questões. Ela descobriu que apenas dois dos seus sujeitos mencionaram ter lido Darwin ou Huxley antes de perder a fé. A maioria dessas pessoas perdeu a fé por razões muito semelhantes àquelas que tinham destruído a fé de Darwin no Cristianismo, por razões muito pessoais, questionando sobre a origem e a natureza do pecado, do castigo eterno e questões desse tipo.
Não é de se surpreender que muitos cristãos e outros religiosos tenham ficado ofendidos pelas caracterizações negativas e, em grande parte injustificadas, que retratavam o Cristianismo como o grande inimigo do progresso científico. Eles chamaram a atenção para o fato que a Europa cristã deu origem à ciência moderna e que uma grande maioria daqueles que contribuíram para a ciência era cristã declarada. Alguns apologistas cristãos (não vou nomeá-los agora) foram longe na tentativa de reformular a relação histórica entre a ciência e o Cristianismo como um compromisso essencialmente harmonioso, argumentando que a ciência poderia somente ter se desenvolvido em uma cultura como a cristã, em que a crença em um cosmos ordenado, criado e regulamentado por um ser divino era amplamente difundida.
Pouquíssimos historiadores da ciência apoiariam essa explicação e uma das razões é bastante óbvia – para sustentá-la, é preciso excluir todas as realizações dos gregos, muçulmanos e judeus, no período anterior à revolução científica ou mesmo durante, e afirmar que o que eles estavam fazendo não era ciência. Andrew Cunningham tem exercido influência marcante na historiografia da ciência nas últimas décadas, demonstrando que a ciência na verdade era inexistente até os séculos XVIII ou XIX. Antes disso, tivemos a filosofia natural, a história natural e a medicina: essas foram as formas de investigação da natureza. A ciência como nós a conhecemos, significando o estudo da natureza, exclusivamente o estudo do mundo natural, não surgiu até bem mais tarde. Talvez essa seja uma questão discutível, quanto aos gregos e aos muçulmanos terem feito uma ciência genuína, porque é anacrônico falar dessa maneira, mas eles estavam fazendo muito daquilo que mais tarde os filósofos cristãos e os historiadores naturais fizeram. Ainda que os cristãos, como já assinalei, muitas vezes contribuíram fundamentalmente para o crescimento da ciência nos séculos XVI, XVII e assim por diante, creio que seja presunçoso da parte dos cristãos alegarem que somente o Cristianismo poderia ter produzido a ciência como a conhecemos hoje.
Como muitos sabem, provavelmente eu tenha trabalhado muito mais do que uma pessoa de bom senso deveria, na história dos antievolucionistas que dos criacionistas, e gostaria de compartilhar alguns dos mitos que decorrem dessa área da minha pesquisa.
Inherit the Wind
O filme “O vento será sua herança” (Inherit the Wind) é um admirável filme premiado com o Oscar que retrata, usando nomes fictícios, o importante e infame julgamento de Scopes, em Dayton no Tennessee, em 1925. Este é um dos eventos históricos mais conhecidos nos Estados Unidos, em parte porque todos os livros didáticos do ensino médio e superior, que não contêm mais que uns poucos parágrafos sobre ciência nas suas 500 páginas, dedicam um parágrafo ou dois para o julgamento de Scopes; isso é padrão.
Ao longo dos anos, centenas de milhares, se não foram milhões de pessoas, assistiram à peça ou ao filme “O vento será sua herança”. Ele passou a ter a reputação de um retrato fiel do que historicamente aconteceu há alguns anos. Um grupo de historiadores financiado pelo governo federal propôs normas nacionais para o ensino de história dos Estados Unidos e, na década de 1920, esse grupo de eminentes historiadores sugeriu que os professores do ensino médio mostrassem esse filme para que os estudantes pudessem entender a mentalidade dos fundamentalistas que se opuseram à evolução no início do século XX.
Isso seria adequado se o filme “O vento será sua herança” exibisse alguma semelhança ao evento histórico em Dayton, em 1925. Como vocês provavelmente sabem, o anti-herói foi William Jennings Bryan, um político norte-americano muito popular que tinha sido o candidato democrata à presidência em três ocasiões distintas e foi um dos mais conhecidos e queridos políticos dos Estados Unidos (não querido o suficiente para ganhar as eleições, mas querido em alguns círculos). Ao contrário do que mostra o filme, e que a maioria dos americanos acredita hoje, Bryan, que participou do julgamento, não era um criacionista no sentido em que agora conhecemos.
Desde meados do século, conseguimos mais ou menos identificar os criacionistas como pessoas, que acreditam em uma história da Terra jovem, sem que nada tenha acontecido há mais de 6 ou 7 mil, talvez 10 mil anos atrás. E essa é a forma como Bryan é descrito; ele insiste na criação do mundo no ano de 4004 a.C., no dia 22 de outubro, creio eu. Um dos diálogos importantes do filme acontece quando Clarence Darrow, o famoso advogado agnóstico que estava questionando Bryan no banco das testemunhas, perguntou-lhe se ele poderia ser preciso e parece-me que Bryan disse (a Terra foi criada) às 9h; Darrow retruca “no horário padrão do leste ou no das Montanhas Rochosas?”; é claro que isso sempre causa gargalhadas.
A transcrição do julgamento de Scopes está disponível desde o final de 1925 em uma versão barata, portanto prontamente disponível para qualquer historiador. Se você levar em conta o interrogatório de Bryan feito por Darrow, quem se surpreendeu foi Darrow. Ele achava que Bryan acreditava em uma criação especial recente e Bryan continua repetindo: Não, não acreditamos, e em dado momento, exaltado ele diz: “Não nos importamos se a semana da criação durou 6 mil anos, 600 mil anos ou 600 milhões de anos, isso não tem importância”. E ele estava certo. Os fundamentalistas que se opuseram à evolução nos anos 1920 – pelo menos aqueles que escreveram e expressaram suas opiniões acerca do tema – quase todos aceitavam a evidência da geologia histórica em relação à antiguidade da vida na Terra.
Apenas após os anos 1960 é que esse movimento criacionista da Terra jovem parece ter sido aceito pela maioria dos criacionistas.Bryan foi convidado a Dayton pelo líder da Associação Mundial dos Fundamentalistas Cristãos, um pastor Batista chamado William B. Riley. Riley viajou pelo país pregando a mesma mensagem que Bryan estava transmitindo no banco das testemunhas, de que os dias do Genesis obviamente simbolizam longos períodos geológicos e de que não havia problema algum para os fundamentalistas cristãos aceitarem isso. Onde eles estabeleceram o limite – Riley, Bryan e outros líderes fundamentalistas – foi no ponto concernente à evolução humana e sobretudo por causa das suas implicações morais. Apesar de tudo, dizer aos jovens que eles descendem dos animais e que não deveriam ficar tão surpresos quando se comportassem como eles; e Deus sabe que da década de 1920 os jovens americanos estavam se comportando de forma muito semelhante aos animais (mas apenas nos anos 1920!).
Não consigo resistir a fazer outro aparte neste momento sobre os criacionistas e suas concepções, porque continuo ouvindo isso pelo menos uma vez por semana e lendo a respeito disso pelo menos a cada duas semanas. Há uma percepção estranha em outros países de que os criacionistas defendem a ideia de que Deus criou todas as espécies. Bem, eles podem tê-la defendido em dado momento, mas dificilmente encontraremos algum criacionista que defenda isso nos últimos cinquenta anos. Percebo aqui alguns colegas das ciências biológicas dizendo: cara, se eu pudesse conversar com algumas dessas pessoas e mostrar a elas o que temos descoberto em campo, ou no laboratório, que demonstram o desenvolvimento até de uma nova espécie, isso certamente os convenceria a abandonar suas crenças. O problema é que eles não acreditam nisso. Eles abandonaram essa concepção há pelo menos meio século e por uma razão muito boa. À medida que mais e mais fundamentalistas e criacionistas aceitavam a perspectiva da criação da Terra jovem, eles tinham de encontrar uma maneira de explicar uma enorme quantidade de dados geológicos, então os criacionistas da Terra jovem recorreram ao Dilúvio de Noé, que durou cerca de um ano, de forma que eles comprimem toda a coluna geológica a aproximadamente um ano de história da Terra.

Arca de Noé
O Dilúvio ocorreu há cerca de 4.350 anos. Infelizmente, a Bíblia informa as dimensões da Arca de Noé, portanto podemos determinar sua capacidade máxima e, mesmo que façamos todos os animais hibernarem, para que não seja necessário estocar comida na Arca, não conseguiríamos colocar representantes dos milhões de espécies que esses zoólogos hiperativos criaram. Assim, desde aproximadamente o final dos anos 1940 e início dos 1950, os criacionistas tendem a dar ênfase cada vez mais na Bíblia que afirma que Deus criou tipos e não espécies. E o que é um tipo? Um tipo é o que Deus criou no Éden e o que salvou na Arca de Noé. Dessa maneira, você não é obrigado a ter tantos representantes, mas o que você deve ter é uma grande quantidade de especiações desde o Dilúvio, porque provavelmente havia apenas um casal de canídeos na Arca e em 4.300 anos, apenas 4.300 anos, eles geraram todas as espécies de raposas, coiotes, lobos e cães domésticos com os quais convivemos. Os criacionistas da Terra jovem consideram o processo evolutivo em velocidade acelerada.
Não há zoólogo no mundo que não seja criacionista, que conceba a evolução agindo tão rápido. Ele chama essa microevolução – qualquer coisa que ocorra em um período de tempo originariamente criado ou preservado pelo tempo na Arca é a microevolução em oposição à macroevolução. Assim, não há nenhuma evidência de que os zoólogos encontrarão mudanças relativamente pequenas no mundo orgânico que convencerão um criacionista da Terra jovem a abandonar suas concepções. Eu sei que é uma notícia triste, mas tenho de compartilhá-la!
Finalmente, quero dizer algumas palavras sobre a globalização do movimento da criação. Enquanto estava vivo, o paleontólogo americano Stephen Jay Gould viajou ao redor do mundo em diversas ocasiões e frequentemente era indagado sobre esse fenômeno americano conhecido por criacionismo. Quando Gould, até mesmo na hora de sua morte, assegurava a essas plateias estrangeiras que não tinham com o que se preocupar, porque essa era uma bizarrice americana única (termo dele para isso) e que não haveria nenhuma possibilidade no mundo de ela se espalhar para fora dos Estados Unidos. Infelizmente isso aconteceu; sou um historiador e não deveria ser arbitrário naquilo que digo; ela se espalhou para fora dos Estados Unidos.
Deixem-me mostrar alguns dos exemplos mais interessantes; alguns de vocês devem saber que a Austrália, principalmente na costa do Pacífico, tornou-se uma autoridade no movimento antievolucionista desde 1980 e um dos fundadores do movimento australiano estabeleceu residência há alguns anos nos Estados Unidos, próximo a Cincinnat, Ohio, e criou um gigantesco império lá e está prestes a inaugurar um museu criacionista que custou 25 milhões de dólares. Seu nome é Ken Ham – alguns de vocês podem tê-lo escutado falar quando viajou pela Grã-Bretanha em 2004 e, pelo que sei, atraiu um número significativo de expectadores aqui. A Coreia do Sul possui um movimento criacionista surpreendentemente amplo e ativo e, nos últimos anos, começou a enviar missionários criacionistas a outros países, incluindo a costa oeste da América do Norte e também a Indonésia.
Uma das mais surpreendentes áreas a acolher calorosamente o criacionismo foi a Rússia. Com a queda da União Soviética, representantes do Ministério da Educação russo iniciaram o contato com os criacionistas americanos convidando-os a escrever livros didáticos e a visitá-los, a fim de aconselhá-los a como ensinar o criacionismo nas escolas russas, pois eles tinham uma justificativa histórica bastante interessante. Eles viveram nos dias em que o lysenkoismo foi imposto à biologia russa e agora queriam liberdade acadêmica e que não apenas o neodarwinismo fosse ensinado aos jovens russos; assim, convidaram a raposa para que entrasse no galinheiro. Somente nos últimos três ou quatro anos, os ministros da educação da Holanda, da Itália e de dois países da Europa Oriental, excluindo a Rússia, vêm defendendo o ensino do criacionismo ou Desenho Inteligente (Intelligent Design). A Ministra da Educação da Holanda, há um ano ou dois, mostrou-se favorável ao ensino do Desenho Inteligente porque, como ela própria disse, esta é uma concepção que poderia unir Cristãos, Muçulmanos e Judeus.
Certamente, ninguém esperava que essa bizarrice americana se difundisse em culturas não cristãs. Mais uma vez, um dos movimentos antievolucionistas mais ativos e bem-sucedidos hoje no mundo está localizado em Estambul, na Turquia. Ele se chama Instituto de Pesquisas Científicas, ou BAV, que é presidido pelo carismático membro da comunidade científica religiosa, chamado Harun Yahya; seu nome verdadeiro é Adnan Oktar, mas ele adotou o pseudônimo Harun Yahya. Ele está ativo desde 1990. Sua formação inicial foi em design de interiores e, posteriormente, filosofia, mas nunca permitiram que ele se graduasse na universidade que frequentava, mas é certamente bastante brilhante e carismático. Ele decidiu, segundo ele, diferentemente da maioria das pessoas no mundo muçulmano, tentar harmonizar os ensinamentos islâmicos, os ensinamentos do Corão, com a ciência moderna.
The Evolution Deceit
A maioria dos seus colegas, diz ele, não dispensa nenhuma atenção para a ciência moderna, mas ele pelo menos quer integrá-la e no mínimo mostrar como eles deveriam interagir. Ele já escreveu mais de uma centena de livros e nos primeiros ele frequentemente negava o Holocausto. Mais recentemente, sobretudo desde os ataques aéreos de 11 de setembro, ele tem feito uma distinção entre a oposição ao Sionismo (Zionism) e a oposição a Israel, de modo que agora ele é um antissionista e não um antissemita. Ele escreveu uma série de livros contra a evolução que, segundo ele, é um ponto de vista materialista e ateu. Seus livros, sendo o mais popular “A fraude da Evolução” (The Evolution Deceit), foi traduzido para várias línguas e distribuído ao redor do mundo aos milhões, milhões de exemplares que agora circulam. Durante algum tempo, o Discovery Institute, o lar do movimento do Desenho Inteligente, tem disponibilizado em seu website o site de Harun Yahya como o site islâmico do Desenho Inteligente, mesmo após Harun Yahya ter denunciado o Desenho Inteligente em seu site, por este não reconhecer o trabalho de Alá.
Ora, certamente, o Reino Unido será poupado dessa bizarrice americana porque não existem cristãos suficientes lá para sucumbir aos truques do criacionismo e certamente essa parece ter sido a percepção até recentemente, mas tem havido certa atividade nos últimos anos, no campo criacionista. John Polkinghorne, Colin Russell e outros têm feito oposição a essa ameaça, mas fiquei bastante surpreso ao ver os resultados publicados no The Guardian, não faz muito tempo, de uma enquete com o povo britânico. As enquetes nos Estados Unidos, dependendo de quais enquetes, apontam que pouco mais de 50% dos americanos acreditam que os primeiros seres humanos foram criados há não mais de 10 mil anos (esse número vem crescendo nos últimos anos), dois terços dos americanos acreditam que o criacionismo deveria ser ensinado nas escolas públicas e apenas cerca de 10% dos americanos não se identificam de alguma maneira como teístas. Mas, e no Reino Unido? Esse levantamento, publicado no The Guardian, mostrou que uma minoria de cidadãos britânicos acreditava na evolução formal, 21%, se bem me lembro, acreditavam na evolução teísta e 20% dos britânicos disseram ser criacionistas. Para alguém como eu, parece que a cada dia o Reino Unido está se tornando cada vez mais parecido com os Estados Unidos.

Endereço para correspondência:
Ronald L. Numbers
Department of Medical History and Bioethics University of Wisconsin 1300 University
Avenue Madison, Wisconsin 53706
E-mail: rnumbers@wisc.edu
1 Este artigo é baseado numa conferência proferida em 11 de maio de 2006 no Howard Building do Downing College na Universidade de Cambridge, Reino Unido. Faz parte das atividades do Faraday Institute for Science and Religion da mesma universidade. O texto original encontra-se na página www.st-edmunds.cam.ac.uk/faraday/Lectures.php. Os tópicos abordados no presente artigo são desenvolvidos de modo mais completo em um livro recente editado pelo prof. Ronald L. Numbers, que é tema de uma resenha nesta edição da Revista de Psiquiatria Clínica: Galileo Goes to Jail and Other Myths about Science and Religion. Ronald L. Numbers (Org.). Harvard University Press, 2009.
2 Tradução autorizada pelo autor.
Ronald L. Numbers, Ph.D
Hilldale Professor of the History of Science and Medicine, University of Wisconsin-Madison, Estados Unidos. Presidente da International Union of the History and Philosophy of Science, Division of History of Science and Technology

Tr2: Alexandre Sech Junior, Cristiane Sshumann Silva
Revisão da tradução: Alexander Moreira-Almeida

Artigo original no Logos Apologética