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domingo, 1 de setembro de 2013

Augusto dos Anjos, o Poeta do Hediondo: Parte 1 - O Cristianismo



Barulho de mandíbulas e abdomens! 
E vem-me com um desprezo por tudo isto 
Uma vontade absurda de ser Cristo 
Para sacrificar-me pelos homens!

Augusto dos Anjos, “Gemidos de arte”.

A primeira edição do Eu, único livro do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884- 1914), publicada no Rio de Janeiro em 1912, foi recebida com indiferença e desprezo, tanto pela crítica quanto pelo público leitor. À revelia de qualquer lógica comercial, Órris Soares, fiel amigo do poeta, fez publicar duas outras edições do livro, acrescido de novos poemas, em 1919 e 1928.

A segunda edição não obteve mais sucesso que a primeira. A terceira, entretanto, se não bastou para incluir Augusto dos Anjos no cânone da camada “grande” Literatura Brasileira (inclusão que só recentemente começa a se consumar), caiu nas graças do público, tornando Eu e outras poesias, como o livro passou a se chamar, em um dos maiores fenômenos editoriais da poesia nacional até os dias de hoje, quando já ultrapassa quarenta edições.
A partir de então, a crítica, reticente a princípio (salvo raras exceções), passou a se debruçar sobre a obra do paraibano com mais atenção. Assim sendo, o volume de textos críticos dedicados a Augusto dos Anjos não é nada desprezível. Ao longo das décadas, sua poesia tem suscitado os comentários de inúmeros entusiastas e alguns detratores. Em 1973, Afrânio Coutinho e Sônia Brayner publicam Augusto dos Anjos – textos críticos, coletânea contendo 34 pequenos ensaios sobre Augusto dos Anjos (o poeta e o homem) (COUTINHO, Afrânio e BRAYNER, Sônia. Augusto dos Anjos - textos críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973.). Muitos destes se encontram reunidos na seção “Fortuna Crítica” do volume Augusto dos Anjos – obra completa, publicado pela Editora Nova Aguilar em 1994 (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.).


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PREÇO: R$ 24,00

ESPECIFICAÇÕES
Formato: Livro
Idioma: PORTUGUES
Editora: HEDRA
Assunto: LITERATURA BRASILEIRA - POESIA
Número de páginas: 188

SINOPSE:
Publicado primeiramente em 1912, esta obra traz poemas que causaram enorme estranhamento no ambiente literário do início do século XX. Frutos de uma aliança entre tendências literárias e filosóficas do período, os poemas de 'Eu' são tributários do cientificismo positivista do século XIX, do formalismo parnasiano, do misticismo simbolista - vazado pelas doutrinas espirituais do Oriente, que o poeta empresta de Schopenhauer, junto do pessimismo a respeito das coisas humanas - e das ideias do Naturalismo, que reduzem o homem a seus aspectos biológicos e temperamentais.


Esforços interpretativos de maior fôlego, entretanto, como o admirável O evangelho da podridão, de Chico Viana, publicado também em 1994 (VIANA, Chico. O evangelho da podridão, não se encontram tão facilmente. A bem da verdade, mesmo aqueles ensaios mais breves e numerosos padecem de uma certa superficialidade, limitando-se à reiteração impressionista dos notórios lugares comuns que estigmatizam a obra do poeta. Assim, examinando o patrimônio crítico de Augusto dos Anjos, deparamo-nos com textos a fio sobre seu pessimismo intenso, seu estilo singular (geralmente associado à sua singularíssima personalidade), a dificuldade em encaixá-lo no esquema dos estilos de época, etc.

O biografismo com que sua obra costuma ser abordada é tão exacerbado que chegou a criar um verdadeiro mito, suposta chave de interpretação da sua poesia: a tuberculose que, transtornando os nervos do poeta, teria definido sua visão de mundo e estética extravagante – e da qual ele, de fato, jamais sofreu. A tuberculose, com efeito, aparece com freqüência nos poemas de Augusto dos Anjos. A imagem da doença (especialmente da de natureza respiratória) é, na verdade, das mais recorrentes em Eu e outras poesias. Explicá-la, contudo, como mera transposição para a literatura da experiência concreta de um tuberculoso é esquivar-se à responsabilidade de um exame mais cuidadoso de seu sentido propriamente poético. Pior ainda, o apelo à vida concreta do autor como estratégia de leitura da obra atinge aqui seu ápice ridículo, ao eleger, como gênese de um determinado “temperamento lírico”, um dado biográfico que nem sequer existiu. Tal é o tipo de precariedade analítica de que Augusto dos Anjos tem sido vítima.

Existem, contudo, algumas exceções a essa regra. A primeira delas se encontra, talvez, nos estudos realizados por M. Cavalcanti Proença, em 1955 e 1957, respectivamente intitulados “Artesanato em Augusto dos Anjos” e “Nota para um rimário de Augusto dos Anjos” (PROENÇA, M. Cavalcanti. “Artesanato em Augusto dos Anjos”. In: COUTINHO, Afrânio e BRAYNER, Sônia. Augusto dos Anjos - textos críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, pp. 215-270. e PROENÇA, M. Cavalcanti. “Nota para um rimário de Augusto dos Anjos”. In: COUTINHO, Afrânio e BRAYNER, Sônia. Augusto dos Anjos - textos críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, pp. 280-294.). São trabalhos que em tudo se afastam da facilidade dos clichês acima mencionados, investigando, com seriedade e arsenal teórico, os procedimentos técnicos através dos quais constrói-se a obra do paraibano. Porém, apesar de livres da ingenuidade teórica que marca as obras críticas precedentes, os textos de Proença ainda não dão conta da complexidade de seu objeto de estudo, já que se restringem estritamente ao seu aspecto formal.

Muito mais interessante é “A costela de prata de A. dos Anjos” (ROSENFELD, Anatol. “A costela de prata de Augusto dos Anjos”. In: COUTINHO, Afrânio e BRAYNER, Sônia. Augusto dos Anjos - textos críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, pp. 314-319.), publicado em 1969, por Anatol Rosenfeld, em Texto/Contexto. Rosenfeld se propõe examinar um tema freqüentemente explorado (ou antes, mencionado) em estudos anteriores: o uso de termos científicos na poesia de Augusto dos Anjos – mas o faz com propriedade e capacidade de penetração inéditas. Para o estudioso, tal prática se relaciona à necessidade de introduzir, na poesia, elementos estrangeiros ao trato vulgar da linguagem, o que permitiria aproximar Augusto dos Anjos aos poetas expressionistas alemães, seus contemporâneos (Gilberto Freyre, com efeito, já empreendera tal aproximação, em texto de 1924. Cf. nota de rodapé à página 31 desta dissertação). A partir daí, múltiplos desdobramentos interpretativos se revelam possíveis, e o estudo termina por concluir que “à exogamia linguística de Augusto dos Anjos, corresponde uma ‘desumana’ paixão exogâmica por tudo que não faça parte da corrupta tribo humana” (ROSENFELD, Anatol. “A costela de prata de Augusto dos Anjos”. In: COUTINHO, Afrânio e BRAYNER, Sônia. Augusto dos Anjos - textos críticos. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973, p. 318.).

Neste ponto, convém deixar claro o seguinte: ao contrário do que possa parecer, a paixão pelo inumano que Rosenfeld atribui a Augusto dos Anjos não é incompatível com a mentalidade cristã que se lhe quer aqui atribuir. É preciso levar em consideração o sentido específico que a expressão “mentalidade cristã” ora assume, sentido esse que não se confunde com o que lhe confere o senso comum ou mesmo as instituições eclesiásticas, aproximando-se antes das concepções maniqueístas de certas correntes heréticas (mais adiante, volta-se ao tema). Para tal mentalidade – como aqui caracterizada – o humano se define, antes de tudo, pela impureza e pelo pecado, representando um patamar ontológico degradado em relação ao divino. O amor cristão ao divino e à pureza tem, como necessária contraparte, o horror cristão à impureza e ao humano. É desse horror que se origina a paixão augustiana pelo inumano de que fala Rosenfeld, paixão, portanto, eminentemente cristã.

Embora impecável, “A costela de prata de A. dos Anjos” tem como objeto de estudo um aspecto por demais pontual da obra de Augusto dos Anjos, ainda que amplamente revelador quanto às feições de sua poética. Não satisfaz, por isso, a demanda de uma visada mais profunda, que evidenciasse os princípios mesmos sobre os quais tal poética se fundamenta.

Nesse sentido, mais bem sucedido é o já citado O evangelho da podridão, de Chico Viana. Trata-se de uma Tese de Doutorado, publicada sob a forma de livro em 1994, que se utiliza, com bastante felicidade, de teorias psicanalíticas na tentativa de elucidar aqueles princípios. Esquivando-se de qualquer forma de psicologismo, o estudo esmiúça as imagens da culpa e do auto-horror, tão significativas quanto abundantes na obra de Augusto dos Anjos, terminando por “diagnosticar” como melancólico o eu lírico que dá nome a Eu e outras poesias. O evangelho da podridão aponta para o que, a meu ver, constitui o aspecto fundamental da poética de Augusto dos Anjos, bem como o fator definitório de sua estética singular: o peculiar cristianismo que subjaz à visão de mundo em que tais poética e estética se baseiam. Em inúmeros momentos, as reflexões de Chico Viana o fazem resvalar na constatação de que a personagem lírica que se delineia ao longo dos poemas de Augusto dos Anjos enxerga a existência e a si mesmo através de um prisma marcadamente cristão. Entretanto, devido ao ponto de vista teórico a partir do qual trabalha, o estudioso decide não se demorar nesse “pormenor”, que permanece, dessa maneira, sem elucidação
satisfatória.

Além de O evangelho da podridão, há ainda outros trabalhos acadêmicos que têm a poesia de Augusto dos Anjos como objeto. Em sua grande maioria, não foram publicados sob a forma de livro. O Banco de Teses da CAPES registra 33 obras críticas, entre teses e dissertações, que se debruçam sobre a obra do paraibano (www.capes.gov.br, site da Internet acessado em 20 de maio de 2006.). Entre tais trabalhos acadêmicos, encontra-se O cemitério de papel, Dissertação de Mestrado de Maria Ester Maciel de Oliveira, defendida em 1990 (OLIVEIRA, Maria Éster Maciel de. O cemitério de papel – sobre a Atopia de Eu de Augusto dos Anjos. Belo Horizonte: UFMG, 1990.). O caráter refratário a rótulos da poesia de Augusto dos Anjos é uma espécie de topos crítico entre seus estudiosos e comentadores. De maneira análoga ao que ocorre com o uso de termos científicos no ensaio de Anatol Rosenfeld, em O cemitério de papel, a inclassificabilidade do Eu se vê finalmente redimida da ligeireza com que sempre fora tratada. Uma das primeiras obras acadêmicas a se debruçar sobre a poesia de Augusto dos Anjos, a Dissertação de Maria Ester Maciel é sintomática da gradual tomada de interesse da crítica universitária por essa poesia. Revela-se, por isso, digna de destaque. Lançando mão do conceito de Atopia, a obra busca compreender o aspecto fluido e deslizante de seu objeto de estudo, concluindo pela impossibilidade de se o confinar em
qualquer registro literário estanque. A decantada e desconcertante “estranheza” dos versos de dos Anjos seria a expressão de uma diferença radical, irredutível a categorias pré- estabelecidas. Note-se que isso não significa que a poesia de Augusto dos Anjos não é literatura. O que a Atopia do Eu indica é antes a impossibilidade de se fixar, em definitivo, o que a própria literatura é. O que é dizer: a impossibilidade de se definir a literatura  segundo parâmetros objetivos, invariáveis e absolutos. A literatura não é dotada de uma
essência fixa, que permaneça a mesma incondicionalmente, mas, pelo contrário, só se define mediante convenções em grande medida arbitrárias, convenções estas que variam no tempo e no espaço e que se estabelecem a partir dos mais variados critérios. Isso quer dizer que a literatura carece de uma especificidade incontestável, ou seja, definir o que é e o que não é literatura será sempre uma questão polêmica. É o que a poesia irredutivelmente estranha de Augusto dos Anjos põe a nu. O eu e o outro, por sua vez, Dissertação de Mestrado de Maria Zélia Versiani Machado, defendida em 1997 (MACHADO, Maria Zélia Versiani. O eu e o outro. Belo Horizonte: UFMG, 1997.), singulariza-se entre os estudos de Augusto dos Anjos, uma vez que não tem por objeto Eu e outras poesias, mas sim os textos críticos que sobre ele se debruçam, reunidos nos volumes Augusto dos Anjos – textos críticos e Augusto dos Anjos –
obra completa. Não há nenhum outro trabalho sobre Augusto dos Anjos que se proponha uma tarefa parecida. A Dissertação contribui, dessa maneira, não apenas para a compreensão da obra do poeta em si, mas também para o estudo da crítica literária no Brasil de uma forma geral. Eis por que importa destacá-la, em meio a outros trabalhos acadêmicos sobre o paraibano. Em vista do exposto acima, este trabalho pretende se justificar pela inexistência de qualquer outro estudo integralmente dedicado ao exame do cristianismo em Augusto dos Anjos. Busca-se evidenciar os fundamentos mesmos sobre os quais se assenta a poética em estudo, partindo-se da hipótese de que tais fundamentos encontram, no que se poderia chamar de visão de mundo cristã, sua (por assim dizer) matriz ideológica ou filosófica.

Sendo correta tal hipótese, um aspecto central da poesia de Augusto dos Anjos (i.e. sua relação com o cristianismo) ainda está por ser estudado. É o que aqui se tem por escopo. Para isso, examina-se o poema “Monólogo de uma Sombra” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 195.), que abre o livro Eu e outras poesias, de modo a deixar evidente o conteúdo cristão que subjaz a esse poema, bem como a averiguar o modo específico como tal conteúdo se plasma em objeto artístico, isto é, as feições que assume, as imagens e procedimentos em que se incorpora, etc. Tem-se como pressuposto a noção de que é possível identificar os princípios composicionais e ideológicos desse poema aos da poética de todo o conjunto a que ele pertence . Antes de proceder ao exame de “Monólogo de uma Sombra”, tenta-se esboçar uma conceituação minimamente funcional (isto é, que sirva aos propósitos específicos deste
estudo) para o procedimento estético que se convencionou chamar de Feísmo ou Culto ao Feio, estabelecendo-lhe uma breve genealogia na história recente da poesia ocidental e evidenciando-lhe as implicações ideológicas subjacentes, isto é, sua relação direta com o modo cristão de conceber as coisas. Recorre-se, para tanto, ao exame de poemas de dois célebres feístas: Cruz e Sousa e Baudelaire, ambos fontes importantes e reconhecidas da poética de Augusto dos Anjos, também ele notório cultor do Feísmo. A partir disso, busca- se identificar manifestações do Culto ao Feio (como caracterizado anteriormente) na poesia de Augusto dos Anjos, demonstrando, ao mesmo tempo, que, ao gosto angelista pela representação do Hediondo, corresponde uma visão de mundo cristã. Quanto à pesquisa de que este trabalho extraiu subsídios, foi de natureza puramente teórica, consistindo do exame da bibliografia indicada ao fim desta Dissertação. Tendo por base esse exame, e através da análise do poema mencionado acima, busca-se, como ficou dito, estabelecer as leis – ideológicas, mas também composicionais – que regem a poética de Augusto dos Anjos. Tem-se, portanto, como premissa a idéia de que, à realidade fenomênica do texto
(por assim dizer), subjazem princípios estruturantes, os quais cabe à análise explicitar. Supõe-se que o texto seja dotado de certa organicidade, configurando-se de acordo com uma gramática interna, cujo delineamento é a tarefa do analista. Proceder a essa tarefa significa extrair do texto sua organização intrínseca, isto é, a maneira específica com que nele se articula a matéria estética a um determinado teor semântico. Importa, sobretudo, averiguar o modo peculiar como a poesia leva a cabo essa articulação, para além do convencionalismo arbitrário da linguagem comum. Ao analista, incumbe sensibilizar-se à especificidade do discurso poético, que potencializa semanticamente estratos da linguagem normalmente condenados à mudez. Não se encampa aqui uma postura a que se poderia chamar “imanentista”, uma vez que não se crê que a obra de arte seja dotada de uma autonomia plena em relação ao que a transcende. Busca-se, pelo contrário, depreender do texto uma determinada visão de mundo (isto é, uma concepção do homem e da existência), a que se possa associá-lo mediante o esforço criativo da interpretação. Por “interpretação”, entenda-se a atribuição de sentido a dados textuais. Parte-se do pressuposto de que, a este ou àquele procedimento poético (prosódico, sintático, retórico, fonético, etc.), corresponde este ou aquele modo de enxergar o mundo e se relacionar com ele – ainda que tal correspondência não se inscreva a priori numa suposta “realidade em si” do objeto literário (senão sob a forma de potencialidade), mas sim dependa do analista-intérprete para se realizar plenamente. No caso específico deste trabalho, busca-se associar, à poesia de Augusto dos Anjos, a visão de mundo cristã. Dito isso, cumpre deixar claro o sentido específico que se quer aqui emprestar à expressão “visão de mundo cristã”. A princípio, chega-se a tal visão de mundo por via de um insight crítico, isto é: em meio à experiência da leitura da obra poética de Augusto dos Anjos, intui-se a existência de algo a que se poderia chamar “mentalidade cristã” nessa mesma obra. Num segundo momento, tenta-se sistematizar minimamente tal mentalidade, fixando-lhe traços e atribuindo-lhe características, no intuito de estabelecer o modo
particular e específico como o cristianismo se manifestaria na referida obra (é o que se passa a empreender a seguir). Por fim, mediante análise de poemas, coteja-se a visão de mundo cristã (como se a definiu) com a obra poética em si, verificando, assim, a procedência ou não daquela intuição inicial (eis no que consiste, fundamentalmente, este trabalho). Dessa maneira, o que se expõe abaixo não se quer, de forma alguma, uma “teoria universal do cristianismo”, mas meramente uma ferramenta teórica de uso restrito, forjada segundo as necessidades específicas do esforço crítico a que vem servir. As próprias inconsistências filosóficas ou teológicas que, sem dúvida, se lhe podem apontar, deve-se creditá-las a seu esforço em se adequar, sem violência, à especificidade do texto literário, o qual não suporta (sem se deformar) que um sistema lógico de todo consistente se lhe sobreponha. A principal característica da visão de mundo cristã, do modo como é aqui concebida, é uma maneira dicotômica de enxergar as coisas, concebendo-as a partir de uma dualidade que se desdobra numa série de pares opostos. Assim, mundo e homem possuem, segundo tal mentalidade, duas facetas antagônicas, cada uma congraçando em si aspectos da existência considerados opostos, o que termina por produzir uma dicotomia que pode ser simplificada através do seguinte esquema: pecado\carne\prazer\vida X\santidade\espírito\dor\morte. Os dois elementos dessa dicotomia não se confrontam num plano horizontal, mas segundo uma hierarquia que estabelece a precedência do último sobre o primeiro; precedência que, como se vê, só se faz possível através da total inversão dos princípios e valores que regem a natureza e o mundo físico, feitos de carne e adversos à dor e à morte. Tal inversão, não obstante, é plenamente levada a cabo pelo cristianismo, o que resulta na condenação de tudo que é vital e mundano (neste ponto, é preciso reconhecer a dívida destas reflexões para com Friedrich Nietzsche, a qual deve ficar ainda mais clara mais adiante). Disso dá testemunho o próprio adjetivo “mundano” e o significado pejorativo que assume em nossa cultura (de matriz cristã). É essa mesma “lógica da inversão” que, nos Evangelhos, leva Jesus a desprezar os poderosos e o conduz à companhia dos leprosos, aleijados, prostitutas, miseráveis em geral e, em última instância, à cruz e ao sepulcro. Baseado nela, o cristianismo enxerga o mundo ao avesso, postulando a supremacia dos últimos sobre os primeiros e exaltando o invisível Reino dos Céus em detrimento da realidade terrena. Se, por um lado, as duas metades da dicotomia esquematizada acima são concebidas verticalmente hierarquizadas, não se imagina que elas se manifestem de forma pura no mundo, mas sim entrelaçadas por um vínculo relutante e conflituoso. Na perfeita
integridade de seus seres, subsistem apenas em planos respectivamente sub e supra- mundanos. Transposta para a linguagem da mitologia hebraico-cristã, essa noção se traduz na imagem da Terra como região intermediária entre o Céu e o Inferno, dois entes puros que aqui se misturam ilicitamente, gerando uma criatura cindida por excelência: o homem. Tal fusão\cisão é enxergada como indesejável e mesmo doentia ou criminosa, já que a responsabilidade por ela recai sobre o próprio homem. É o que revelam os mitos do Pecado Original e do Paraíso Perdido. O homem, preterindo criminosamente seu status de ser puro, e impossibilitado, por isso, de permanecer no Reino de Deus, é exilado na Terra e condenado a todas as condições naturais da existência (como o trabalho) de que antes estava isento. Dessa maneira, é o pecado que confere ao homem sua natureza dúbia, originalmente divina, mas terrena por escolha e por castigo. A figura do Cristo, paradigma do ser humano e expressão máxima dessa dubiedade já que encarnação do Espírito Santo, vem à Terra como um segundo Adão, para redimir o erro do primeiro. Escolhendo a lei em vez da transgressão, o martírio em vez do prazer, e o auto-sacrifício em vez da vida, ensina à humanidade o caminho de volta ao Paraíso Perdido, bem como põe fim aos conflitos inerentes à fusão advinda do pecado, ao desfazer essa fusão, através da morte. De fato, morte e redenção se encontram aqui intimamente associadas, já que a redenção advém do auto-sacrifício exemplar do Cristo. Através da morte, alma e corpo finalmente se separam, isto é, desfaz-se em definitivo o elo criminoso entre os dois elementos daquela dicotomia, ficando, dessa forma, restabelecida sua pureza original. Assim, apesar de habitualmente encarada como sinônimo de “vitória sobre a morte”, a ressurreição do Cristo não significa de forma alguma um retorno à vida, mas, pelo contrário, o abandono definitivo desta e o regresso a uma esfera superior de existência que, embora eufemisticamente denominada “Vida Eterna”, só é acessível através da morte.

Para que constatemos o caráter positivo e fundamental da morte no cristianismo, não é sequer necessário apelar para a imagem do auto-sacrifício na cruz – desenlace do esquema mítico do Cristo. A própria ética cristã nos conduziria a essa conclusão pelo simples exame dos corolários de sua lógica interna. Que são os ensinamentos de Jesus, senão máximas de supressão dos mecanismos naturais, paradoxais dentro da lógica do mundo e antagônicos a ela, tais como: amar o próximo como a si mesmo; amar o inimigo; oferecer a outra face; perdoar incondicionalmente, etc. – regras de conduta nada funcionais para a vida saudável de qualquer criatura submetida às condições naturais da existência? A lógica que rege a natureza (e, portanto, tudo aquilo que é vivo) é essencialmente amoral e impõe, como condição fundamental de sobrevivência, um egoísmo que só capitula diante de um interesse maior, de caráter genérico. Já o altruísmo desinteressado e incondicional, pregado pelo cristianismo, aparece diante de tal lógica como total disparate.

Diante do exposto acima, percebe-se que o que a moral cristã verdadeiramente exige, através de seus preceitos, é a superação ascética da natureza, o que equivale à negação dos princípios vitais. Sobrepujar a natureza significa, no cristianismo, vencer as tentações do diabo, o que se explica pelas associações perpetradas pelo primeiro elemento daquela dicotomia. O cristianismo é, portanto, uma doutrina anti-vida, e toda sua ética consiste num esforço em caminhar em direção contrária àquela a que nos compelem os
instintos e a lógica vital. Não é de se espantar, portanto, que o ápice da experiência cristã seja o derradeiro ato em sentido oposto ao da lógica vital, isto é, a morte voluntária, a negação do maior de todos os instintos, ao qual todos os outros estão subordinados, que é o instinto de sobrevivência. Isso equivale a dizer que a conclusão lógica do cristianismo é o suicídio. Na verdade, se estivermos dispostos a aceitar “morte voluntária” como definição de suicídio, seremos obrigados a reconhecer que o próprio Cristo é um suicida.


As três características básicas que definem o cristianismo, na acepção do termo adotada por este estudo, são, portanto:

  • dualidade, que opõe pecado\carne\prazer\vida a santidade\espírito\dor\morte; 
  • lógica da inversão, que estabelece a precedência do último elemento da dicotomia acima esquematizada sobre o primeiro;
  • redenção pela morte, que soluciona a tensão advinda da união ilícita entre aqueles dois elementos. 


Ao longo da História, encamparam-se interpretações do cristianismo similares à esboçada acima. Pense-se, por exemplo, em seitas heréticas maniqueístas, como a dos Cátaros ou a dos Cainitas. O maniqueísmo se origina, talvez, como resposta ao que Santo Agostinho chama de “o problema do Mal” (AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 187.). Se um Deus absolutamente bom é o criador de tudo quanto existe, por que existe o Mal? O maniqueísmo postulava a existência de dois deuses distintos: a um deles, corresponderia o Bem e o mundo espiritual; ao outro, o Mal e o mundo material. Bem e Mal seriam, assim, duas substâncias puras, autônomas e imiscíveis, conjugadas, não obstante, em função da perversidade do Deus do Mal, que haveria criado o mundo físico como uma espécie de cárcere em que aprisionar os espíritos. Assim sendo, ao contrário do que pregava o cristianismo institucional e eclesiástico, nem o rito, nem a fé, nem a graça bastariam para
redimir o mundo físico e a vida biológica. Tudo o que se associa à matéria seria absolutamente irredimível e injustificável. No plano ético, tal crença fundamentava uma recusa radical à carne, postura que se traduzia na condenação severa de funções vitais como a procriação e a alimentação. Para os Cátaros, por exemplo, como indica seu próprio nome (do grego Katharos, i.e. puros), era preciso perseguir a pureza acima de tudo. Purificar o espírito significava, para eles, negar e mortificar a carne. O mais alto sacramento dos Albigenses (seita catárica) era a chamada Endura, um autêntico suicídio que consistia simplesmente em jejuar até a morte. Já os Cainitas atribuíam a autoria do Antigo Testamento ao Deus do Mal. À luz de seu satanismo cristão, conferia-se o status de mártires precursores de Jesus Cristo a todas as vítimas do tirânico Javé, a começar pelo patrono da seita: Caim (Catholic Encyclopedia: www.newadvent.org, site da Internet acessado em 15 de junho de 2006). É curioso constatar que, em Baudelaire (figura com que Augusto dos Anjos se encontra em flagrante e notório diálogo, para dizer o mínimo), Caim e Satã são caracterizados dessa mesma maneira, chegando a se investir de atributos legitimamente crísticos e messiânicos. Verifique-se, a esse respeito, os versos abaixo:

“Toi qui, même aux lépreux, aux parias maudits,
 Enseignes par l’amour le gôut du Paradis,
 O Satan, prends pitié de ma longue misère!
 O toi qui de la Mort, ta vieille et forte amante,
Engendras l’Esperance - une folle charmante!”

 Parece verossímil pressupor que o cristianismo antinaturalista dos maniqueístas tenha chegado a Augusto dos Anjos por intermédio de Baudelaire. Em “Une charogne”, o poeta francês retrata a carne privilegiando seu aspecto mais precário e repulsivo (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 173.). Por todo o livro de Augusto dos Anjos, ouvem-se os ecos desse célebre poema. De um modo ou de outro, quer-se aqui acreditar que a visão de mundo cristã se faz presente na obra do paraibano; procura-se demonstrá-lo pelo presente estudo.

Parece verossímil pressupor que o cristianismo antinaturalista dos maniqueístas tenha chegado a Augusto dos Anjos por intermédio de Baudelaire. Em “Une charogne”, o poeta francês retrata a carne privilegiando seu aspecto mais precário e repulsivo (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 173.). Por todo o livro de Augusto dos Anjos, ouvem-se os ecos desse célebre poema. De um modo ou de outro, quer-se aqui acreditar que a visão de mundo cristã se faz presente na obra do paraibano; procura-se demonstrá-lo pelo presente estudo.


Créditos:
Rafael Soares de Oliveira
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários – Literatura Brasileira Orientadora: Profa. Dra.Silvana Maria Pessôa de Oliveira