Operários - Tarsila do Amaral |
Há pessoas de quem é difícil dizer alguma coisa que as represente de uma vez e integralmente, no aspecto mais típico e característico, são aquelas que habitualmente chamamos de pessoas "comuns", "maioria" e que, de fato, constituem a imensa maioria da sociedade. Em seus romances e novelas, a maioria dos escritores procura pegar os tipos da sociedade e representá-los em imagens e forma artística - tipos que se encontram integralmente com extraordinária raridade na sociedade e ainda assim são quase mais reais que a própria realidade. Podkoliéssin (personagem de comédia de Gógol, O casamento), em seu aspecto físico, é talvez até um exagero, mas nunca uma invencionice. Que infinidade de pessoas inteligentes, que conheceram Podkoliéssin através de Gógol, imediatamente passaram a achar que dezenas e centenas dos seus bons conhecidos e amigos se pareciam terrivelmente com Podkoliéssin. Mesmo antes de Gógol elas já sabiam que seus amigos eram como Podkoliéssin, só ainda não sabiam é que era assim mesmo que elas se chamavam. Em realdade, os noivos pulam as janelas antes do casamento com imensa raridade porque isso é incômodo, já sem falar de outras coisas; ainda sim, quantos noivos, até gente digna e inteligente, perante o casamento não estariam dispostos a se considerar Podkoliéssins do fundo da consciência! Nem todos os homens gritam a cada passo: "Tu l'as boulu, George Dandin!" ("Tu o quiseste, George Dandin!", expressão que remonta à comédia de George Dandin, de 1968, de Molière, no ato I). Mas, Deus, quantos milhões e bilhões de vezes homens do mundo inteiro repetiram esse grito do coração depois da lua de mel e, quem sabe, até mesmo no dia seguinte do casamento!
Pois bem, sem descer a explicações mais sérias, diremos apenas que, no real, a tipicidade das pessoas parece dissolver-se em água e todos esses Georges Dandins e Podkoliéssins existem de fato, vivem num vaivém azafamados às nossas vistas diariamente, mas como se estivessem um tanto diluídos. Ressalvando, por último, para a plenitude da verdade, que todo o Georges Dandin, como o criou Molière, também pode ser encontrado na realidade, ainda que raramente, com isso terminamos o nosso juízo, que começa a parecer crítica de revista. Contudo, ainda sim resta diante de nós uma pergunta: o que o romancista tem a fazer com pessoas ordinárias, totalmente "comuns", e como colocá-las diante do leitor para torná-las minimamente interessantes? Evitá-las por completo na narração é totalmente impossível, porque as pessoas ordinárias são, a todo instante e em sua maioria, um elo indispensável na conexão dos acontecimentos cotidianos; portanto evitá-las seria violar a verossimilhança. Preencher romances só com tipos ou até simplesmente com pessoas estranhas e irreais, para efeito de interesse, seria inverossímil, e talvez até desinteressante. A nosso ver, o escritor deve empenhar-se em descobrir os matizes interessantes e ilustrativos até mesmo entre as ordinariedades. Quando, por exemplo, a própria essência de algumas pessoas ordinárias consiste justamente em sua ordinariedade constante e imutável, ou, o que é ainda melhor, quando, a despeito de todos os esforços extraordinários dessas pessoas para saírem a qualquer custo dos trilhos da ordinariedade e da rotina, ainda assim terminam por continuar a ser a mesma rotina imutável e terna, então essas pessoas ganham inclusive alguma espécie de tipicidade - como a ordinariedade, que de maneira nenhuma quer permanecer sendo o que é e procura a qualquer custo tornar-se original e independente sem recursos mínimos para chegar à independência. (...)
A essa categoria de pessoas "comuns" ou "ordinárias" pertencem também algumas pessoas da nossa história, até agora (confesso isso) poucos explicadas para o leitor.
De fato, não existe nada mais deplorável do que, por exemplo, ser rico, de boa família, de boa aparência, de instrução regular, não tolo, até bom, e ao mesmo tempo não ter nenhum talento, nenhuma peculiaridade, inclusive nenhuma esquisitice, nenhuma ideia própria, ser terminantemente "como todo mundo". Tem riqueza, mas não do tipo Rothschild, a família é honesta, mas nunca se distinguiu por nada; aparência boa, mas muito pouco expressiva; boa instrução, mas não sabe em que empregá-la; tem inteligência, mas sem ideias próprias; tem coração, mas sem magnanimidade etc. etc. em todos os sentidos. No mundo existe uma infinidade extraordinária de pessoas assim e até bem mais do que parece; como todas as pessoas, elas se dividem em duas categorias principais: umas limitadas, outras "bem mais inteligentes". As primeiras são mais felizes. Para um homem "comum" limitado, por exemplo, não há nada mais fácil do que se imaginar um homem incomum e original e deliciar-se com isso sem quaisquer vacilações. Bastaria a algumas das nossas senhorinhas cortar os cabelos, pôr óculos azuis e chamar-se de niilistas para se convencerem imediatamente de que, de óculos, elas passariam imediatamente a ter suas próprias "convicções". A um bastaria apenas sentir no coração um pinguinho de algo derivado de alguma sensação humana e boa para logo se convencer de que ninguém sente como ele, de que ele é avançado em seu desenvolvimento. A outro bastaria adotar em palavras algum pensamento ou ler uma paginazinha de alguma coisa sem princípio nem fim para acreditar imediatamente que esses "são seus próprios pensamentos" e brotaram do seu próprio cérebro. O descaramento da ingenuidade, se é que se pode falar assim, chega ao surpreendente nesses casos; tudo isso é inverossímil, mas se encontra a cada instante. Esse descaramento da ingenuidade, essa indubitabilidade do homem tolo em relação a si mesmo e ao seu talento foi exposta magnificamente por Gógol no admirável tipo do tenente Pirogóv. Pirogóv não duvida nem de que é gênio, de que está até acima de qualquer gênio; e a tal ponto não duvida que jamais se interroga a seu próprio respeito; e a tal ponto não duvida que jamais se interroga a seu próprio respeito; aliás, interrogação para ele não existe. O grande escritor foi finalmente forçado a açoitá-lo para a satisfação do sentimento moral ofendido do seu leitor, mas, ao ver que o grande homem apenas se animara e, para revigorar-se depois do suplício, ainda comeu um pastel folheado, ficou sem saber o que dizer de admirado e assim deixou os seus leitores. Sempre me afligiu que Gógol tivesse tomado o grande Pirógov em sua patente tão pequena, porque Pirogóv é tão satisfeito consigo mesmo que, na medida em que as dragonas engrossam e aparecem nele com o passar dos anos e "em linha", para ele não há nada mais fácil do que imaginar-se, por exemplo, um chefe militar excepcional; e inclusive não imaginar mas simplesmente não duvidar disso: se o promoveram a general, então como não é o chefe militar? E quanto desses indivíduos sofrem depois terríveis fiascos no campo de batalha? E quantos Pirogóv houve entre nossos literatos, cientistas, propagandistas? Eu digo "houve", mas, é claro, existem até hoje (...)
O problema é que o homem "comum" inteligente, ainda que de passagem (e talvez até durante toda a sua vida) tenha se imaginado um homem genial e originalíssimo, mesmo assim conserva em seu coração o vermezinho da dúvida, que chega a tal ponto que o homem inteligente Às vezes termina em absoluto desespero; se fica resignado, já o faz totalmente envenenado pela vaidade interiorizada. Pensando bem, quando mais não seja tomamos um extremo: na imensa maioria dessa categoria inteligente de pessoas, a coisa não se dá de maneira tão trágica; ao término dos anos estraga-se mais ou menos o fígado, e é só. Mas, não obstante, antes de aplacar-se e resignar-se, essas pessoas às vezes levam tempo demais fazendo das suas, começando pela mocidade e indo até a idade da resignação, e tudo pelo desejo de originalidade. Verificam-se inclusive casos estranhos: devido ao desejo de originalidade, um homem honesto se dispõe até a cometer um ato vil; acontece até que um desses infelizes, não só honestos mas até bons, providência de sua família, sustenta e alimenta com o seu trabalho não só seus familiares mas até estranhos, e o que acontece? Passa a vida inteira sem encontrar a paz! Para ele não é nem um pouco tranquilizadora nem consoladora a ideia de que ele cumpriu tão bem com suas obrigações humanas; ocorre inclusivo o contrário, ele até o irrita: "Eis, dir-se-ia, por que eu desperdicei toda a minha vida, eis o que me atou de pés e mãos, eis o que me impediu de descobrir a pólvora! Não fosse isso, é possível que eu tivesse forçosamente descoberto a pólvora, ou a América - ainda não sei com certeza o quê, só sei que forçosamente teria descoberto!". O mais sintomático nesses senhores é que, ao longo de toda a vida, de maneira nenhuma els efetivamente conseguem saber ao certo o que exatamente precisam tanto descobrir e o que exatamente passam a vida inteira já prontos para descobrir: a pólvora ou a América? Mas os sofrimentos, as nostalgias do objeto do descobrimento, palavra, estaria à altura de um Colombo ou Galileu. (...)
No seu desejo ardente de distinguir-se, às vezes estava pronto para o salto mais irracional; no entanto, mal a coisa se aproximava do salto irracional, nosso herói sempre se revelava inteligente demais para se atrever a dá-lo. Isso o deixava aniquilado. Tivesse oportunidade, é possível que se decidisse até por uma coisa vil, contanto que conseguisse algo daquilo com que sonhava; porém, como se fosse de propósito, tão logo chegava ao limite sempre se revelava honesto demais para o ato extremamente vil.
Trecho de "O Idiota" de Dostoiévski