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terça-feira, 4 de novembro de 2014

Anarco-Monarquismo e Anarco-Misticismo por Hakim Bey



Dormindo, sonhamos com apenas duas formas de governo – anarquia e monarquia. A raiz primordial da consciência não entende de política e nunca joga limpo. Um sonho democrático? Um sonho socialista? Impossível.

Se meus REMs me trazem visões verídicas quase proféticas ou meros desejos vienenses, somente reis e pessoas selvagens povoam minha noite. Mônadas e nômades.

Dia pálido (quando nada brilha por sua própria luz) esquiva-se e insinua e sugere que nos comprometemos com uma triste e embaçada realidade. Mas em sonho nós nunca somos governados, exceto pelo amor ou pela magia, que são as habilidades de caotas e sultões.

No meio de um povo que não pode criar ou brincar, mas apenas trabalhar, os artistas também não conhecem outra escolha a não ser anarquia e monarquia. Como o sonhador, eles devem possuir e possuem suas próprias percepções, e para isto devem sacrificar o meramente social por uma “Musa tirânica”. A arte morre quando tratada “bem”. Ela deve desfrutar da selvageria de um homem das cavernas ou então ter sua boca preenchida de ouro por um príncipe.

Burocratas e vendedores a envenenam, professores a mastigam e filósofos a cospem fora. A arte é um tipo de barbaridade bizantina, que serve apenas para nobres e pagãos. Se você tivesse conhecido a doçura da vida como poeta num reino de um venal, corrupto, decadente, ineficaz e ridículo Paxá ou Emir, um xá Qajar, um Rei Farouk, uma Rainha da Pérsia, você saberia que isto é o que todo anarquista deve querer. Como eles amavam poemas e pinturas, aqueles tolos luxuriosos mortos, como eles sorviam todas as rosas e brisas frias, tulipas e alaúdes! Odeio sua crueldade e caprichos, sim – mas pelo menos eles eram humanos. Os burocratas, entretanto, que lambuzam as paredes da mente com sujeira inodora – tão gentis, tão gemüthlich (”de boa “índole”) – que poluem o ar interior com dormência – eles não são sequer merecedores de ´ódio. Eles mal existem fora das Ideias anêmicas `as quais servem.

E além disso: o sonhador, o artista, o anarquista – eles não compartilham um traço de capricho cruel com os mais ultrajantes déspotas? Pode a vida genuína acontecer sem um pouco de tolice, um pouco de excesso, alguns surtos de “discórdia” heracliteana? Não governamos – mas não podemos e não seremos governados.

Na Rússia, os anarquistas narodnik às vezes forjavam um ukase ou manifesto em nome do Czar; nele, o Autocrata reclamaria que lordes gananciosos e oficiais insensíveis o haviam prendido em seu palácio e o isolado de seu amado povo. Ele proclamava o fim da servidão e convocava os camponeses e trabalhadores a se levantarem em Seu Nome contra o governo.

Muitas vezes esta manobra realmente obtinha sucesso em despertar revoltas. Por que? Porque o único governante absoluto age metaforicamente como um espelho para o singular e completo absoluto do “eu”. Cada camponês olhava dentro desta lenda vítrea e observava sua própria liberdade – uma ilusão, mas que pegava emprestada do sonho a sua lógica.

Um mito similar deve ter inspirado, no século XVII, os Ranters e Antinomianos e Homens da Quinta Monarquia que se congregaram à bandeira jacobita com suas cabalas eruditas e conspirações ufanistas. Os místicos radicais foram traídos primeiro por Cromwell e depois pela Restauração – por que não, enfim, juntar-se aos petulantes cavaleiros e aos afetados condes, aos Rosacruzes e aos Maçons do Rito Escocês, para colocar um messias oculto no trono de Albion?

No meio de um povo que não pode conceber a sociedade humana sem um monarca, os desejos dos radicais devem ser expressos em termos monárquicos. No meio de um povo que não pode conceber a existência humana sem uma religião, os desejos radicais devem ser ditos na linguagem da heresia.

O taoísmo rejeitou toda a burocracia confuciana, mas guardou a imagem do Imperador-Sábio, que se sentava em silêncio em seu trono, encarando uma direção propícia, fazendo absolutamente nada. No Islã, os ismaelitas pegaram a ideia do Imame da Casa do Profeta e a metamorfosearam no Imame-do-próprio-ser, o ”eu” aperfeiçoado que está além de toda Lei e regra, que está harmonizado com o Uno. E esta doutrina os levou à revolta contra o Islã, ao terror e ao assassínio em nome da auto-libertação esotérica pura e da total realização.

O anarquismo clássico do século XIX definia-se pela luta contra a coroa e a igreja e, portanto, no nível acordado, considerava-se igualitário e ateu. Esta retórica, entretanto, obscurece o que realmente acontece: o “rei” torna-se o ”anarquista”, o ”padre” torna-se um ”herege”. Neste estranho dueto de mutabilidade, o político, o democrata, o socialista e o ideólogo racional não encontram lugar; são surdos à música e carecem totalmente de senso de ritmo. Terrorista e monarca são arquétipos; esses outros são meros funcionários.

Uma vez, anarquista e rei apertaram as respectivas gargantas e valsaram uma totentanz (“dança da morte”) – uma batalha esplêndida. Agora, entretanto, ambos estão relegados à lixeira da história – eles já eram, são curiosidades de um passado vagaroso e mais cultivado. Eles rodopiam tão rápido que parecem fundir-se juntos... podem ter, de alguma forma, se tornado uma coisa, gêmeos siameses, um Jano, uma unidade aberrante? “O sono da Razão...” ah! os mais desejáveis e desejosos monstros!

A Anarquia Ontológica proclama rasamente, asperamente e quase desmioladamente: sim, os dois são um agora. Como uma única entidade o anarco/rei agora renasceu; cada um de nós é o governante de nossa própria carne, de nossas próprias criações – e tudo mais que pudermos pegar e segurar.

Nossas ações são justificadas por decreto e nossas relações são moldadas por tratados com outros autarcas. Fazemos as leis para os nossos próprios domínios – e as correntes da lei foram quebradas. No momento, talvez sobrevivamos como meros Fingidores – mas mesmo assim, podemos agarrar uns poucos instantes, uns poucos metros quadrados de realidade sobre a qual impomos nossa vontade absoluta, nosso royaume (“reino”). L’état c’est moi (“o estado sou eu”).

Se estamos ligados por qualquer ética ou moralidade, deve ser uma tal que nós tenhamos imaginado, fabulosamente mais exaltada e mais libertadora que o “ácido moral” de puritanos e humanistas. “Vós sois como deuses — Tu és Aquele”.

As palavras monarquismo e misticismo são usadas aqui, em parte, simplesmente pour épater (“para espantar”) aqueles anarquistas iguálito-ateus que reagem com horror piedoso a qualquer menção de pompa ou superstição. Nada de revoluções regadas a champanhe para eles!

Nossa marca de anti-autoritarismo, contudo, floresce sobre o paradoxo barroco; ela favorece estados de consciência, emoção e estética sobre todas as ideologias e dogmas petrificados; ela abraça multidões e aprecia contradições. A Anarquia Ontológica é um duende para GRANDES mentes. A tradução do título (e palavra-chave) da obra magna de Max Stirner como “O ego e o que a ele pertence” levou a uma sutil interpretação errônea de “individualismo”. O termo inglês-latino ego vem carregado e oprimido com bagagem freudiana e protestante. Uma leitura cuidadosa de Stirner sugere que “O Único e seu Próprio” refletiria melhor suas intenções, dado que ele nunca define o ego em oposição à libido ou ao id, ou em oposição à “alma” ou “espírito”. O Único (der Einzige) pode ser melhor construído simplesmente como o “eu” individual. Stirner não se compromete com nenhuma metafísica, ainda que conceda ao Único uma certa propriedade absoluta. De que forma, então, este Einzige difere do “Eu” de Advaita Vedanta? Tat tvam asi: Tu (”Eu”individual)  és Aquele (”Eu”absoluto).

Muitos acreditam que o misticismo “dissolve o ego”. Bobagem. Apenas a morte faz isso (ou esta, pelo menos, é nossa suposição saducéia). O misticismo não destrói nem o “eu carnal” nem o “eu animal” -- o que equivaleria em suicídio. O que o misticismo realmente tenta sobrepujar é a falsa consciência, a ilusão, a Realidade Consensual e todas as falhas do “eu” que acompanham estes males. O misticismo verdadeiro cria um “eu em paz”, um “eu” com poder. A tarefa principal da metafísica (consumada, por exemplo, por Ibn Arabi, Boehme, Ramana Maharshi) é, em certo sentido, auto-destruir, identificar metafísico e físico, transcendente e imanente, como UM. Certos monistas radicais levaram esta doutrina muito além do mero panteísmo ou misticismo religioso. Uma compreensão da unicidade imanente do ser inspira certas heresias antinomianas (os Ranters, os Assassinos) que consideramos nossas ancestrais.

O próprio Stirner parece surdo às possíveis ressonâncias espirituais do Individualismo – e nisto ele pertence ao século XIX: nascido muito depois da liquefação da Cristandade, mas muito antes da descoberta do Oriente e da tradição iluminista escondida na alquimia ocidental, da heresia revolucionária e do ativismo oculto. Stirner despreza muito corretamente o que ele conhecia como “misticismo”, uma reles sentimentalidade pietista baseada em auto-negação e ódio pelo mundo. Nietzsche pregou a tampa sobre “Deus” uns poucos anos antes. Desde então, quem ousou sugerir que Individualismo e misticismo poderiam ser reconciliados e sintetizados?

O ingrediente faltante em Stirner (Nietzsche chega mais perto) é um conceito funcional de consciência não-ordinária. A realização do “eu” único (ou übermensch (”super- homem”)) deve reverberar e expandir-se como ondas ou espirais ou música para abraçar a experiência direta ou a percepção intuitiva da singularidade da própria realidade. Essa realização engolfa e apaga toda dualidade, dicotomia e dialética. Carrega consigo mesma, como uma carga elétrica, um sentido de valor intenso e sem palavras: ela “diviniza” o ”eu”.

Ser/consciência/felicidade (satchitananda) não pode ser repudiado como meramente outro “fantasma” stirneriano ou ”roda na cabeça”. Não invoca exclusivamente nenhum princípio transcendente para o qual o Einzige deve sacrificar sua qualidade de próprio. Simplesmente declara que aquela intensa consciência da própria existência resulta em “felicidade-- ou, numa linguagem menos pesada, em consciência valorativa”. O objetivo do ´Único, afinal, é possuir tudo; o monista radical obtém isso identificando o “eu” com a percepção, como o pintor chinês que “se torna o bambu”, de forma que ”ele pinta a si próprio”. Apesar das dicas misteriosas que Stirner dá sobre uma “união de Únicos" e apesar do eterno “Sim” de Nietzsche e da exaltação da vida, o Individualismo deles parece de alguma forma moldado por uma certa frieza em relação ao outro. Em parte, eles cultivavam uma fortificante e purificadora frieza contra a sufocação quente da sentimentalidade e do altruísmo do século XIX; em parte, eles simplesmente desprezavam o que alguém (Mencken?) chamou de “Homo Boobensis”.

E ainda, lendo por trás e abaixo da camada de gelo, nós descobrimos traços de uma doutrina ígnea – o que Gaston Bachelard poderia ter chamado de “uma Poética do Outro”. A relação do Einzige com o Outro não pode ser definida ou limitada por qualquer instituição ou ideia. E ainda claramente, mesmo que paradoxalmente, o Único depende do Outro para a completude e não pode e não será realizado em nenhum isolamento amargo.

Os exemplos de “crianças lobos” ou enfants sauvages (”crianças selvagens”) sugerem que uma criança humana privada da companhia humana por muito tempo nunca obter a humanidade consciente – nunca adquirirá linguagem. A Criança Selvagem talvez forneça uma metáfora poética para o Único – e simultaneamente, ainda, marque o ponto exato em que Único e Outro devam se encontrar, se amalgamar, se unificar – ou então falham em obter e possuir tudo aquilo de que são capazes.

O Outro espelha o "Eu" -- o Outro  nossa testemunha. O Outro completa o “Eu" -- o Outro nos dá a chave para a percepção da unicidade-do-ser. Quando falamos de ser e consciência, nós apontamos para o “Eu”; quando falamos de felicidade implicamos o Outro.

A aquisição da linguagem cai sob o signo de Eros – toda comunicação é essencialmente erótica, todas as relações são eróticas. Avicenna e Dante afirmaram que o amor move as estrelas e os planetas em seus cursos – o Rig Veda e a Teogonia de Hesíodo proclamam que o Amor é o primeiro deus nascido depois de Caos. Afeições, afinidades, percepções estéticas, belas criações, sociabilidade – todas as mais preciosas possessões do Único erguem-se da conjunção do “Eu” com o Outro na constelação do Desejo.

Novamente, o projeto iniciado pelo Individualismo pode ser desenvolvido e revivificado por um enxerto com o misticismo – especificamente com o tantra. Como uma técnica esotérica divorciada do hinduísmo ortodoxo, o tantra fornece uma estrutura (“Rede de Joias”) simbólica para a identificação do prazer sexual e consciência não-ordinária. Todas as seitas antinomianas continham algum aspecto tântrico, desde as famílias do Amor e Irmãos Livres e Adamitas da Europa até os sufis pederastas da Pérsia e os alquimistas Taoístas da China. Até mesmo o anarquismo clássico desfrutou seus momentos tântricos: os Falansterios de Fourier; o “Anarquismo Místico” de G. Ivanov e outros russos simbolistas de fim-de-século; o erotismo incestuoso do Sanine de Arzibashaev; a estranha combinação de Niilismo e adoração a Kali que inspirou o Partido Terrorista Bengalês (ao qual meu guru tântrico Sri Kamanaransan Biswas teve a honra de pertencer)...

Nós, entretanto, propomos um sincretismo de anarquismo e tantra muito mais profundo que qualquer um desses. De fato, simplesmente sugerimos que Anarquismo Individual e Monismo Radical sejam considerados doravante como um e mesmo movimento.

Este híbrido tem sido chamado de “materialismo espiritual”, um termo que incinera toda a metafísica no fogo da unidade de espírito e matéria. Também gostamos de “Anarquia Ontológica” porque sugere que o ser em si mesmo permanece num estado de “Caos divino”, de total potencialidade, de criação contínua.

Neste fluxo, somente o jiva mukti, ou “indivíduo liberto”, é auto-realizado, e deste modo monarca ou proprietário de suas percepções e relações. Neste fluxo incessante, somente o desejo oferece um princípio de ordem, e assim a única sociedade possível (como Fourier entendeu) é a dos amantes.

O anarquismo está morto, vida longa à anarquia! Não precisamos mais da bagagem de masoquismo revolucionário ou auto-sacrifício idealista – ou da frigidez do Individualismo com seu desdém pela sociabilidade, pelo viver junto – ou das superstições vulgares do ateísmo do século XIX, cientificismo e progressismo. Todo esse peso morto! Pastas proletárias emboloradas, vapores burgueses pesados, entediantes guias filosóficos – deixemos isso de lado!

Queremos desses sistemas apenas sua vitalidade, suas forças vitais, ousadia, intransigência, raiva, negligencia – seu poder, seu shakti. Antes de descartarmos o entulho e os sacos de lixo, nós saquearemos a bagagem procurando por carteiras, revólveres, joias, drogas e outros itens úteis – guardaremos o que gostamos e jogaremos fora o resto. Por que não? Por acaso somos padres de um culto, para murmurar sobre relíquias e resmungar nossos martirológios?

O monarquismo também tem algo que queremos – um encanto, um sossego, um orgulho, uma superabundância. Ficaremos com isto e jogaremos as aflições da autoridade e da tortura na lata de lixo da história. O misticismo tem algo que precisamos – “auto-superação”, consciência exaltada, reservatórios de potência psíquica. Estes nós expropriaremos em nome da nossa insurreição – e deixaremos as aflições da moralidade e da religião apodrecer e se decompor.

Como os Ranters costumavam dizer quando saudavam qualquer ”criatura companheira" -- de rei a batedor de carteiras – ”Alegre-se! Tudo é de todos!”.

De Ordine Naturale - Anarquismo, Tradicionalismo e Metapolítica