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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Nietzscheanos de Esquerda e de Direita - por Robert Steuckers

O impacto de Nietzsche nos meios políticos durante um século

A característica maior desse impacto ubíquo do nietzscheanismo é a de ser, precisamente, extremamente diversificado, muito plural. Metodologicamente, o impacto do pensamento de Nietzsche não é, portanto, simples de estudar, porque há que reconhecer a fundo a história cultural da Alemanha no século XX; há que deixar de falar de um impacto em singular, senão melhor de uma imensa variedade de impulsos nietzscheanos. De partida Nietzsche mesmo é um personagem que evoluiu, mudou, múltiplos estratos se sobrepõem em sua obra e em sua própria pessoa. O Dr. Christian Lannoy, filósofo holandês do pré-guerra, enumerou os diferentes estágios do pensamento nietzscheano:

- 1º estágio: o pessimismo estético, que compreende quatro fases que são outros tantos passos, a) do pietismo (familiar) ao modernismo de Emerson; b) do modernismo a Schopenhauer; c) de Schopenhauer ao pessimismo estético propriamente dito; d) do pessimismo estético ao humanismo ateu (tragédias gregas + Wagner).

- 2º estágio: o positivismo intelectual, que compreende duas fases: a) o rechaço do pessimismo estético e de Wagner; b) a adesão ao positivismo intelectual (fase de egocentrismo).

- 3º estágio: o positivismo anti-intelectual, que compreende três fases: a) a fase poética (Zaratustra); b) a fase que consiste em desmascarar o egocentrismo; c) a fase da Vontade de Poder (que consiste em subtrair-se aos limites das construções e das comprovações intelectuais).

- 4º estágio: o estágio do Anticristo, que é puramente existencial, segundo a terminologia católica de Lannoy; essa fase terminal consiste em lançar-se no rio da Vida, abandonando toda referência a pós-mundos, abandonando todos os discursos consoladores, deixando de lado todo código (moral, intelectual, etc.).

Mais recentemente, o filósofo alemão Kaulbach, exegeta de Nietzsche, vê se sucederem seis tipos de linguagens diferentes na obra de Nietzsche: 1) a linguagem da potência plástica; 2) a linguagem da crítica desmascaradora; 3) o estilo da linguagem experimental; 4) a autarquia da razão perspectivista; 5) a conjugação das quatro primeiras linguagens nietzscheanas, que contribui para forjar o instrumento para superar o niilismo (seja o fixismo, seja o psitacismo) a fim de afrontar as múltiplas facetas, surpresas, imprevistos e imponderáveis do devir; 6) a insistência sobre o papel do Mestre e da linguagem dionisíaca.

Essas classificações valem o que valerem. Outros filósofos poderão distinguir outras etapas ou outros estratos, porém as classificações de Lannoy e Kaulbach tem o mérito da clareza, de orientar o estudante que enfrenta a complexidade da obra de Nietzsche. O interesse didático dessas classificações é mostrar que cada um desses estratos pôde influenciar uma escola, um filósofo particular, etc. Pela multiplicidade de enfoques nietzscheanos, múltiplas categorias de indivíduos vão receber a influência dele ou de somente uma parte de Nietzsche (em detrimento de todas as outras possíveis). Hoje se verifica em efeito que a filosofia, a filologia, as ciências sociais, as ideologias políticas, recepcionaram pitadas ou fatias inteiras da obra nietzscheana, o que obriga os investigadores contemporâneos a traçar uma taxonomia das influências e a escrever uma história das recepções, como afirma, a justo título, Steven E. Aschheim, historiador israelense das idéias européias na Universidade Hebréia de Jerusalém.

Nietzsche: Apologia ou Demonização

Aschheim enumera os erros da historiografia das idéias até o presente:

* Ou bem essa historiografia é moralista e considera Nietzsche como o "gênio ruim" da Alemanha e da Europa: "gênio ruim" porque é ao mesmo tempo "ateu" para os católicos ou cristãos, "pré-fascista" ou "pré-nazi" para os marxistas, etc.

* Ou bem essa historiografia é estática, em suas variantes apologéticas (onde Nietzsche aparece como o "arauto" do nacional-socialismo, do fascismo ou do germanismo) como em suas variantes demonizantes (onde Nietzsche permanece constantemente como o gênio ruim, sem que se tenha conta das variações em sua obra ou da diversidade de suas recepções).

Agora bem, para julgar a disseminação de Nietzsche na cultura alemã e européia, é preciso: 1) Captar os processos, logo 2), ter uma aproximação dinâmica a sua obra.

O balanço dessa historiografia estereotipada, diz Aschheim, se resume perfeitamente nos trabalhos de Walter Kaufmann e de Arno J. Mayer. Walter Kaufmann demonstra que Nietzsche foi mal interpretado à direita por sua irmã, Elisabeth Förster-Nietzsche, por Stefan George, por Ernst Bertram e Karl Jaspers. Porém também no campo marxista depois de 1945, especialmente por Georg Lukacs, comunista húngaro que traçou um quadro geral do que há que ab-rogar no pensamento europeu, o que equivale a redigir um manual de inquisição, no qual se inspiram certos partidários atuais do politicamente correto. Lukacs acusa Nietzsche de irracionalidade e afirma que toda forma de irracionalidade conduz inelutavelmente ao nazismo, de onde todo retorno a Nietzsche equivale a recomeçar um processo "perigoso". O erro dessa interpretação é dizer que Nietzsche não suscita mais que uma só trajetória e que ela é perigosa. Essa visão é estritamente linear e se recusa a desenhar uma cartografia das inúmeras influências de Nietzsche.

Arno J. Mayer recorda que Nietzsche foi considerado por certos exegetas marxistizantes como o arauto das classes aristocráticas dominantes na Alemanha a fins do século XIX. A insolência de Nietzsche teria seduzido aos mais turbulentos representantes dessa classe social. Aschheim estima que essa tese é um erro de ordem histórica. Em efeito, a aristocracia dominante nessa época na Alemanha é um meio mais bem hostil a Nietzsche. Por que? Porque o anticristianismo de Nietzsche corrói os fundamentos da sociedade que ela domina. A "ética aristocrática" de Nietzsche é fundamentalmente diferente da das classes dominantes e da nobreza alemã do tempo de Bismarck. Por conseguinte, Nietzsche é considerado "subversivo, patológico e perigoso". A "direita" (na espécie, a "revolução conservadora") não o utilizará senão depois de 1918.

Hugh Thomas, historiador inglês das idéias européias, comprova efetivamente que Nietzsche foi recepcionado essencialmente por dissidentes, radicais, partidários de todas as formas de emancipação, socialistas (ativos na social-democracia), anarquistas e libertários, por certas feministas. Thomas denomina a esses dissidentes "transvaloradores". A direita revolucionária alemã, pós-conservadora, se apresentará ela mesma como "transvaloradora" dos ideais burgueses presentes na Alemanha guilhermina e na República de Weimar. H. Thomas concentra o essencial de sua análise nas esquerdas nietzscheanas, não esquecendo completamente, não obstante, às direitas. Sua interpretação não é unilateral, no sentido em que explora os filões de direito nos quais Nietzsche não representou talvez senão um papel menor ou, pelo menos, um papel de extravagante: a Alldeutsche Verband (a Liga Pangermanista) e o universo social-darwinista, mais particularmente o grupo dos "eugenistas".

Enfim, Nietzsche foi lido majoritariamente pelos socialistas antes de 1914, pelos "conservadores revolucionários" (e eventualmente pelos fascistas e nacional-socialistas) depois de 1918. Hoje, volta a um nível não-político, particularmente no "nietzscheanismo francês" depois de 1945.

O Impacto de Nietzsche sobre o Discurso Socialista

Na Alemanha, mas também em outras partes, especialmente na Itália com Mussolini, então fogoso militante socialista, ou na França, com Charles Adler, Daniel Halévy e Georges Sorel, a filosofia de Nietzsche seduz especialmente os militantes de esquerda. Mas não àqueles que são estritamente ortodoxos, como Franz Mehring, a quem os nietzscheanos socialistas consideram como o teórico de um socialismo temeroso e advocatício, muito distanciado de suas tumultuosas origens revolucionárias. Mehring, guardão na época da ortodoxia fixa, evoca uma estrita filiação filosófica - fora da qual não há salvação - partindo de Hegel para desembocar em Marx e na prática rotineira, social e parlamentarista, da social-democracia guilhermina. A este marxismo convencional, os esquerdistas dissidentes opõem Nietzsche ou um ou outro lineamento de sua filosofia. Essas esquerdas dissidentes levam a um anarquismo (mais ou menos dionisíaco), ao anarco-sindicalismo (um dos filões do futuro fascismo) ou ao comunismo. Assim Isadora Duncan, bailarina inglesa que cobre para L'Humanité, com simpatia, os acontecimentos da Revolução Russa, escreve em 1921: "As profecias de Beethoven, de Nietzsche, de Walt Whitman estão a se realizar. Todos os homens serão irmãos, levados pela grande onda de liberação que acaba de nascer na Rússia" Se observará que a jornalista não cita nenhum grande nome do socialismo ou do marxismo!

Por que este capricho? Segundo Aschheim, os radicais maximalistas no campo socialista se referem de boa gana à crítica devastadora do burguesismo (mais exatamente, do filisteísmo) de Nietzsche, porque essa crítica permite desdobrar uma "contralinguagem" dissolvente para todas as convenções sociais e intelectuais estabelecidas que permitem às burguesias se manter no timão. Em seguida, a idéia de "devir" seduz aos revolucionários permanentes, para os quais nenhuma "superestrutura" pode permanecer muito tempo em lugar para dominar duradouramente às forças vivas que brotam sem cessar do "fundo do povo".

De fato, desde o fim da primeira década do século XX, a social-democracia alemã e européia sofre uma mutação profunda: os radicais abandonam as convenções que estão encrustadas na prática quotidiana do socialismo. Na Alemanha, durante a Primeira Guerra Mundial, os militantes mais decididos deixam a SPD para formar primeiro a USPD (partido social-democrata independente da Alemanha), logo a KPD (partido comunista da Alemanha), com Rosa de Luxemburgo e Karl Liebknecht; na Itália, uma ala anarco-sindicalista se separa dos socialistas para se fundir ulteriormente com os futuristas de Marinetti e os ardito retornados das trincheiras, o que dá, sob o impulso da personalidade de Mussolini, o sincretismo fascista, etc.

Por outro lado, desde 1926 a Escola de Frankfurt começa a exercer sua influência. Ela não rechaça o aporte de Nietzsche; depois das vicissitudes da história alemã, do nazismo e do exílio norteamericano de seus principais protagonistas, essa escola está na origem da efervescência de maio de 68. Em todas essas óticas, o socialismo é antes de tudo uma revolta contra as superestruturas, julgadas superadas ou arcaicas, porém uma revolta cada vez mais diferente em suas modalidades e em sua linguagem segundo o país em que explora. A essa revolta socialista contra a superestruturas (compreendidas as novas estruturas racionais e demasiado fixadas, instaladas pela social-democracia), se agrega toda uma série de temáticas, como as da "energia" (segundo Schiller e acima de tudo segundo Bergson; este último influenciou consideravelmente Mussolini), da vontade (que se opõe entre os dissidentes radicais do socialismo à doutrina social-democrata e marxista do determinismo) e da vitalidade (temática saída da "filosofia da Vida", tanto em suas interpretações laicas como católicas).

Uma pergunta nos parece desde já legítima: essa evolução é a) marginal, reduzida a teóricos ou a cenáculos intelectuais, ou melhor, b) está verdadeiramente bem capilarizada no partido? Aschheim, ao concluir sua minuciosa investigação, responde: sim. Sustenta sua afirmação pelos resultados de uma pesquisa antiga, que analisou meticulosamente: a de Adolf Levenstein em 1914. Levenstein havia procedido em seu tempo a um estudo estatístico dos livros pegos nas bibliotecas operárias de Leipzig entre 1897 e 1914. Comprovou que os livros de Nietzsche eram muito mais lidos que os de Marx, Lassalle ou Bebel, figuras centrais da social-democracia oficial. Este estudo prova que o nietzscheanismo socialista era uma realidade no coração dos operários alemães.

Na Alemanha, a primeira organização socialista/nietzscheana foi Die Jungen (Os Jovens) de Bruno Wille. Este queria combater o "acomodacionismo" da social-democracia, seu aburguesamento (coincidindo por isso com Robert Michels, analista da oligarquização dos partidos), o culto do parlamentarismo (coincidindo com Sorel e antecipando aos dois mais célebres sorelianos alemães de depois de 1918: Ernst Jünger e Carl Schmitt), a ossificação do partido e sua burocratização (Michels). Mais precisamente, Wille deplora o desaparecimento de todos os reflexos criativos no partido; a imaginação não está já no poder na social-democracia alemã de começos do século, tal como hoje, com o acesso ao poder dos antigos sessenta-oitistas, a imaginação, ainda que ardentemente prometida, não tem já voz ou voto; o politicamente correto obriga. Em seguida, outro contestador fundamental nas fileiras socialistas alemães, Gustav Landauer (1870-1919), que cairá com armas nas mãos em Munique atacado pelos Freikorps de Von Epp, funda uma revista libertária, socialista e nietzscheana, que batiza Der Sozialist. Coisa notável, sua interpretação de Nietzsche ignora o culto nietzscheano do eu, a ausência de toda forma de solidariedade ou de comunidade no filósofo de Sils-Maria, para privilegiar muito fortemente sua fantasia criadora e sua crítica de todas as petrificações em marcha nas sociedades e civilizações modernas e burguesas.

Max Maurenbrecher (1874-1930) é um pastor protestante socialista que tem fé no movimento operário ainda que se referindo constantemente a Nietzsche e a sua crítica do cristianismo. A primeira intenção de Maurenbrecher foi justamente fundir socialismo, nietzscheanismo e anticristianismo. Seu primeiro compromisso teve lugar no Nationalsozialer Verein de Naumann em 1903. Seu segundo compromisso o leva às fileiras da social-democracia, em 1907, no momento em que deixa também a igreja protestante e se empenha no "movimento religioso livre". Seu terceiro compromisso é um retorno a sua igreja, o abandono de toda referência a Marx e à social-democracia, junto a uma adesão à mensagem dos Deutschnationalen. Maurenbrecher encarna assim um percurso que vai do socialismo ao nacionalismo.

Lily Braun no universo dos intelectuais socialistas de princípios do século, é uma militante feminista, socialista e nietzscheana. Se compromete nas fileiras social-democratas, onde defende a causa das mulheres, reclama sua emancipação e seu direito ao sufrágio universal. Este feminismo se completa com uma crítica sistemática a todos os dogmas e por uma estética nova. Seu aporte filosófico é a defesa do "espírito da negação" (Geist der Verneinung), enquanto ela entendia por "negação" a negação de toda superestrutura, das ossificações reconhecíveis nas superestruturas sociais. Nesse sentido, anuncia certas tendências da escola de Frankfurt. Lily Braun alegava em favor de uma juvenilização permanente da sociedade e do socialismo. Se opunha às formas desmobilizantes do moralismo kantiano. Durante a Primeira Guerra Mundial desenvolve um "socialismo patriótico", arguindo que a Alemanha é a pátria da social-democracia, e que, enquanto tal, luta contra a França burguesa, a Inglaterra capitalista e mercantil e a Rússia obscurantista. Seu neo-nacionalismo é uma social-democracia nietzscheanizada percebida como nova ideologia alemã.

Com Maurenbrecher e Braun temos pois duas figuras maximalistas do socialismo alemão que evoluem na direção do nacionalismo através de uma nietzscheanização. Os figurões do partido observam com grande desconfiança essa evolução. Percebem o perigo de uma mutação do socialismo em um nacionalismo popular e operário que rechace os advogados, os intelectuais e os novos sacerdotes do positivismo sociológico. Os figurões organizam por conseguinte sua resposta intelectual, que será uma reação anti-nietzscheana. É fácil traçar o paralelo com a França atual, onde Luc Ferry e Alain Renaut criticam a herança de maio de 68 e do nietzscheanismo francês de Deleuze, Guattari, Foucalt, etc. O mitterrandismo tardio, muito "ocidentalista" em suas orientações (geo)políticas, se alinha com a contrarrevolução moralista norteamericana e seus avatares de direita (Buchanan, Nozick) ou de esquerda, ao atacar os lineamentos filosóficos capazes de arruinar em profundidade - e definitivamente - os fundamentos de uma civilização moribunda, que se livra de sua superstição ideológica e de sua adesão incondicional aos ideais débeis e adoecidos da Aufklämng.

O exemplo histórico mais significativo desse tipo de reação encontramos em Kurt Eisner, presidente dessa república dos sovietes da Bavária (Räterepublik) que foi varrida pelos Freikorps em 1919. Antes de conhecer essa aventura política trágica e deixar aí a vida, Eisner havia escrito uma obra ortodoxa e anti-nietzscheana, chamada Psychopathia Spiritualis, que tem como mais notável característica o ser a obra de um antigo nietzscheano arrependido! Quais foram os argumentos de Eisner? O socialismo é racional e prático, dizia, enquanto que Nietzsche é sonhador, onírico. É então impossível construir uma ideologia socialista coerente sobre o egocentrismo de Nietzsche e sobre sua ausência de compaixão (esse tipo de argumento será mais tarde retomado por certos nacional-socialistas!). Em seguida, Eisner comprova que o "imperativo nietzscheano" conduz à degeneração dos costumes e da política (o mesmo argumento que o "conservador" Steding). À cominação "fazer-se duro!" de Nietzsche, Eisner opõe um "fazer-se terno!", praticando dessa maneira um exorcismo sobre si mesmo. Eisner em seu texto confessa ter sucumbido à "linguagem intoxicadora" e ao "estilo narcótico" de Nietzsche. Contrariamente a Lily Braun e polemizando sem dúvida com ela, Eisner se professa kantiano e explica que seu kantismo é paradoxalmente o que o havia levado a admirar Nietzsche; porque para Eisner, Kant como Nietzsche, põe a ênfase no desenvolvimento livre e máximo do indivíduo, porém - agrega-, o imperativo nietzscheano deve ser coletivizado, de forma a suscitar na sociedade e na classe operária um pan-aristocratismo (Heinrich Hartle, antigo secretário de Alfred Rosenberg, desenvolverá uma argumentação similar, descrevendo a ideologia nacional-socialista como um misto de imperativo ético kantiano e de ética da superação nietzscheana, tudo em uma perspectiva não-individualista!).

Se Eisner é o primeiro nietzscheano a voltar atrás, em esboçar no campo socialista uma crítica finalmente "reacionária" e "imobilizante" de Nietzsche e do socialismo nietzscheano, se Ferry e Reanut são seus herdeiros na triste França do mitterrandismo tardio, Georg Lukacs, com uma trilogia inquisitorial fulminante contra as múltiplas formas de "irracionalismo" que conduzem ao "fascismo", permanece como a referência mais clássica dessa maniva obsessiva e recorrente de apagar os inumeráveis estratos do nietzscheanismo. Não obstante, Likacs era vitalista em sua juventude e cultivava uma visão trágica do homem, da vida e da história inspirada em Nietzsche; depois de 1945, redige essa trilogia contra os irracionalismos que chegará a ser a Bíblia do politicamente correto de Stálin a Andropov e Chernenko nos países do COMECON, entre os marxistas que se queriam ortodoxos. Ainda assim, as pegadas do nietzscheanismo são patentes na esquerda nietzscheana, em Bloch na escola de Frankfurt.

A Esquerda Nietzscheana

Por esquerdismo nietzscheano Aschheim entende a herança de Ernst Bloch e de uma parte da Escola de Frankfurt. Ernst Bloch teve uma grande influência sobre o movimento estudantil alemão que precedeu a efervescência de maio de 68. Uma amizade fiel e sincera o ligava ao líder desses estudantes contestadores, Rudi Dutschke, apóstolo protestatário de um socialismo esquerdista e nacional. Bloch opera uma distinção fundamental entre "marxismo frio" e "marxismo quente". Este último postula um retorno à religião ou, mais exatamente, ao utopismo religioso dos anabatistas, movidos pelo "princípio esperança". Lukacs não poupará suas críticas e se oporá a Bloch, julgando sua obra como "uma mescla de ética de esquerda com uma epistemologia de direita". Bloch é não obstante muito crítico em relação da visão de Nietzsche que havia difundido Ludwig Klages. A qualificará de "dionisismo passadista", agregando que Nietzsche devia ser utilizado em uma perspectiva "futurista", a fim de "modelar o porvir". Bloch rechaça a noção de eterno retorno, porque toda idéia de "retorno" é profundamente estática. Fala de "arcaísmo castrador". O dionisismo que Bloch opõe ao de Klages é o dionisismo da "natureza inacabada", quer dizer, um dionisismo que deve trabalhar no acabamento da natureza.

Bloch não pertence à Escola de Frankfurt; está próximo dela; a influenciou, porém suas idéias religiosas e seu "princípio esperança" o distanciam dos dois dirigentes principais dessa escola, Horkheimer e Adorno. Os puristas da Escola de Frankfurt não creem na redenção pelo princípio esperança, porque, dizem , essas são afirmações pararreligiosas e acríticas. Em sua crítica das ideologias (compreendidas nelas as ideologias pós-marxistas), os principais protagonistas da Escola se referem acima de tudo ao "Nietzsche desmascarador", cujos recursos utilizam para desmascarar as formas de opressão na Modernidade tardia. Seu objetivo é salvar a teoria crítica, e inclusive toda crítica, exercendo uma ação dissolvente sobre todas as superestruturas ligadas pelo passado e julgadas obsoletas. Nesse sentido, Nietzsche é o que desafia melhor todas as ortodoxias, aquele cuja "linguagem desmascaradora" é o mais cáustico. Adorno justificava suas referências a Nietzsche dizendo: "ele nunca é cúmplice com o mundo". Para meditar se não se quer ser cúmplice da "Nova Ordem Mundial".

Quanto a Marcuse, comumente associado à Escola de Frankfurt, o que retem de Nietzsche? A historiografia das idéias retém comumente dois Marcuse: um Marcuse pessimista, o do O Homem Unidimensional, e um Marcuse otimista, o de Eros e Civilização. Para Steven Aschheim, é esse Marcuse otimista - ele põe muita esperança em seu discurso - que é talvez o mais "nietzscheano". Seu nietzscheanismo é desde logo um nietzscheanismo de liberação, repleto de freudismo, no sentido em que Marcuse desenvolve, a partir de sua leitura dupla de Nietzsche e de Freud, a idéia de um "poder liberador da memória". Antes, a memória servia para recordar deveres, outros tantos "tu deves", suscitando o espírito do pecado, a má consciência, o sentido de culpabilidade, sobre os quais o cristianismo se escorou e dos quais impregnou nossa civilização. Essa memória "transforma fatos em essências", fixa pedaços de história talvez ainda fecundos para fazer deles absolutos metafísicos petrificados e fechados, que não se pode pôr em discussão; para Nietzsche como para o Marcuse otimista de Eros e Civilização, há que eliminar as inexperiências e os ídolos impostos por essa memória, porque os instintos da vida (para Freud: a aspiração à felicidade total, entravada pela repressão e pelas inibições) devem sempre dominar finalmente, rechaçando sem vacilar todas as formas de "escapismo" e de negação. Para Marcuse, nisso aluno de Nietzsche, a civilização ocidental e sua contraparte socialista soviética (Nietzsche haveria falado melhor de cristianismo) são fundamentalmente falazes (porque sobre-repressivas), já que conservam demasiadas essências, proibições, e sufocam as criatividades, o Eros. Se reencontra aqui os mesmos mecanismos de pensamento que em um Landauer.

Voltemos porém a Aschheim, que busca pôr claramente em evidência os lineamentos do nietzscheanismo na Escola de Frankfurt, ainda que mostrando por que portas entreabertas a correção política, segundo o modelo dos Mehring, Eisner, Lukacs, Ferry, etc., pode simultaneamente se insinuar nesse discurso. Horkheimer, dirigente dessa Escola e filósofo quase oficial da primeira década da RFA, julga Nietzsche como segue: o filósofo de Sils-Maria é incapaz de reconhecer a importância da "sociedade concreta" em sua análise, porém, apesar dessa lacuna, inaceitável para os que foram seduzidos de um modo ou outro pelo materialismo histórico da tradição marxista, Nietzsche permanece sempre livre de toda ilusão e vê e sente perfeitamente quando um fato de vida se congela em "essência" (para retomar o vocabulário de Marcuse). Horkheimer agrega que Nietzsche "não vê as origens sociais da decadência". Posição evidentemente ambivalente, onde admiração e temor se mesclam indissoluvelmente.

Se Nietzsche esteve muito presente, e solidamente, no corpus da Escola de Frankfurt, foi expulso dela por uma segunda onda de "dialéticos negativos" e de apóstolos tardios da ideologia das Luzes. O chefe dessa segunda onda, a dos êmulos, foi sem discussão Jürgen Habermas. Aschheim resume os objetivos de Habermas em seu trabalho de "desnietzscheanização": a) trabalhar para expurgar o legado da Escola de Frankfurt de todo nietzscheanismo; b) restabelecer uma coerência racional; c) recodificar! (Deleuze e Foucault teriam dissolvido os códigos); d) reconstruir uma "correção política"; e) reexaminar a herança de maio de 68, na qual há, a nossos olhos, alguns elementos muito positivos e fecundos, acima de tudo ao nível do que Ferry e Renaut chamaram de "o pensamento 68". Nesse reexame, Habermas parte do princípio que a crítica da crítica da Aufklärung arrisca fortemente desembocar em um "neoconservadorismo"; por este fato, quer militar pelo restabelecimento da "dialética da Aufklärung em sua pureza" (ou no que precisamente quer designar com este termo). Para Habermas, o nietzscheanismo francês, o neo-heideggerianismo, o pós-estruturalismo de Foucault, o desconstrutivismo de Derrida, são outros tantos filões de 68 que soçobraram no "irracionalismo burguês tardio". Agora bem, essas tendências filosóficas não-políticas, ou muito pouco politizáveis, não se apresentam em nenhum caso como opções militantes a favor de um conservadorismo ou de uma restauração "burguesa", muito pelo contrário; se pode concluir, então, que Habermas desencadeia uma guerra civil ao interior mesmo da esquerda, buscando emasculá-la, repintá-la de cinza. Em seu combate, Habermas ataca explicitamente as noções de heterogeneidade (de pluralidade), de jogo (de trágico, de kairos, tal como o imaginava um Henri Lefebvre), de riso, de contradição (implícita e inevitável), de desejo, de diferença. Segundo Habermas, todas essas noções conduzem já ao "esquerdismo radical", já ao "anarquismo niilista", já ao "quietismo conservador". Tais atitudes, pretende Habermas, são incapazes de enfocar uma mudança carregada de sentido (e.d., um sentido progressista e moderado, evolutivo e calculador).

Os Nietzscheanos de Direita

É sob o impulso de Arthur Möller van den Bruck que Nietzsche faz sua entrada nas ideologias da direita alemã. Möller van den Bruck parte de um primeiro fato: o defeito maior do marxismo (e.d., o aparato social-democrata) é não se referir senão a um racionalismo abstrato, como o liberalismo. Por isso é incapaz de captar as verdadeiras "fontes da vida". Em 1918, a superestrutura oficial do império alemão se afunda, não tanto pela revolução, como na Rússia, senão pela derrota e pelas reparações impostas pelos Aliados ocidentais. O Exército está fora de jogo. É inútil, então, defender estruturas políticas que já não existem. A direita deve entrar na era das "redefinições", estima Möller van den Bruck, e a partir ele se falará de "neo-nacionalismo".

Se tudo deve ser redefinido, o socialismo deve sê-lo também, aos olhos de Möller.  Não poderia ser já uma "análise objetiva das relações entre a superestrutura e a base", como queria a ideologia positivista da social-democracia segundo o programa de Gotha, senão uma vontade de afirmar a vida. Ao dizer isso, Möller não se contenta com uma declaração grandiloquente sobre a "vida", proclamar um slogan vitalista, senão que desvela os aspectos muito concretos dessa vontade de vida: uma justa redistribuição permite um auge demográfico. A vida triunfa então sobre a recessão. Adiante, agrega Möller, as divisões sociais não deveriam passar entre os ricos que dominam e as massas dos pobres. Pelo contrário, o povo deve ser guiado por uma elite frugal, apta para dirigir as massas cujas necessidades elementais e vitais estejam bem satisfeitas.

Este processo deve se desenvolver em quadros nacionais bem visíveis, assegurando uma transparência e, bem entendido, claramente circunscrito no tempo e no espaço para que o princípio - ninguém pode ignorar a lei - esteja em vigor sem discussão nem coerção.

O mesmo raciocínio em Werner Sombart: o novo socialismo se opõe com veemência ao hedonismo ocidental, ao progressismo, ao utilitarismo. O novo socialismo aceita o trágico, é não-teleológico, não se inscreve em uma história linear, senão funda um novo "Organon", em que se fundem uma vox dei e uma vox populi, como na Idade Média, mas sem feudalismo nem hierarquia rígida.

Para Spengler, se deve avaliar positivamente o socialismo na medida em que é antes de tudo uma "energia" e, acessoriamente, o "estágio último do faustismo declinante". Spengler estima que Nietzsche não foi até o fim de suas idéias políticas no plano político. Será George Bernard Shaw, especialmente em Homem e Super-Homem e Major Bárbara, que enunciará os métodos práticos para assentar o socialismo nietzscheano nas sociedades européias: mescla de educação sem moralismo hipócrita, de darwinismo voltado para a solidariedade (onde as comunidades mais solidárias ganham a competição), de ironia e de distância em relação aos entusiasmos e propagandas. O socialismo deve ser forjado, pois, por espíritos claros, desprovidos de todo reflexo hipócrita, de todo lastro moralizante, de todos esses temores "humanos, demasiado humanos". Nesse caso, conclui Spengler logo de sua leitura de Shaw, "o socialismo não seria um sistema de compaixão, de humanidade, de paz, de pequenos cuidados, senão um sistema de vontade de poder". Toda outra leitura do socialismo seria ilusão. Há que dar ao homem enérgico (aquele que faz passar suas vontades da potência ao ato) a liberdade que lhe permitirá atuar, mais além de todos os obstáculos que poderiam constituir a riqueza, o nascimento ou a tradição. Nessa ótica, liberdade e vontade de poder são sinônimos.

Aschheim mostra em seu livro o laço direto que existiu entre a tradição socialista inglesa, na espécie da Fabian Society animada por Shaw, e a redefinição do socialismo pelos primeiros paladinos da "Revolução Conservadora" alemã. Denominador comum: o rechaço das convenções esterilizantes que bloqueiam o avanço dos homens "enérgicos".

Nietzsche e Nacional-Socialismo

Inicialmente, Nietzsche não tinha boa imprensa nos meios próximos ao NSDAP, que retomaram por sua conta as críticas antinietzscheanas dos pangermanistas, dos eugenistas e dos ideólogos racistas. Os intelectuais do NSDAP seguem de preferência as especulações raciais de Lehmann e se desinteressam de Nietzsche, mais em voga nas esquerdas, entre os literatos, as feministas e nos movimentos de juventude não-politizados. Assim, muito ao início de toda a aventura hitleriana, Dietrich Eckart, o filósofo völkisch de Schwabing, rechaça explícita e sistematicamente a Nietzsche, que é "um enfermo hereditário", que maldiz sem cessar o povo alemão; para Eckart, a lenda de um Nietzsche que vitupera contra a Alemanha porque no fundo a ama apaixonadamente, é uma fraude intelectual. Enfim, assinala, o individualismo egoísta de Nietzsche é totalmente incompatível com o ideal comunitário dos nacional-socialistas. Depois de ter editado exegeses de Nietzsche, não obstante muito mais refinadas, Arthur Drevs, teólogo völkisch enfeudado ao NSDAP, se levanta em 1934 em Nordische Stimme (nº 4/34) contra a tese de um Nietzsche que ama seu país apesar de seus vitupérios antigermâncos e afirma -o que pode ser paradoxal, visto o antissemitismo ambiente - que o jovem poeta judeu Heinrich Heine sim criticava a Alemanha porque a amava de verdade. Nietzsche será acusado em seguida de "filossemitismo": para Aschheim e, antes dele, para Kaufmann, o texto mais significativo da era nazi nesse sentido é o de Curt von Westernhagen, Nietzsche, Juden, Antijuden (Weimar. Duncker, 1936). Alfred von Martin, crítico protestante, revaloriza o humanista Burckhardt e rechaça o negativismo nietzscheano, mais por sua falta de compromisso nacionalista que por seu anticristianismo (Nietzsche und Burckhardt, Munique, 1941). Finalmente, os dois autores pró-nietzscheanos do Terceiro Reich, ademais de Bäumler, a quem analisaremos mais em detalhe, são Edgar Salín (Burckhardt und Nietzsche, Basilea, 1938), que toma a contraparte das teses de von Martin, e o nacionalista alemão, "liguista" (bündisch) e judeu, Hans-Joachim Schöps, (Gestalten an der Zeitwende: Burckhardt, Nietzsche, Kafka; Berlim, Vortrupp Verlag, 1936). Quanto ao crítico literário Kurt Hildebrand, favorável ao nacional-socialismo, critica a interpretação de Nietzsche de Karl Jaspers, como farão bom número de exilados políticos e Walter Kaufmann. Jaspers teria desenvolvido um existencialismo sobre a base dos aspectos menos existencialistas de Nietzsche. Enquanto Nietzsche se opunha a toda transcendência, Jaspers tentava voltar a uma "transcendência doce", descuidando o Zaratustra e a Genealogia da Moral. Enfim, mais importante, a apologia da criatividade em Nietzsche e sua vontade de transmutar todos os valores vigentes, de fazer aflorar uma nova tábua de valores, fazem dele um filósofo de combate que aponta a formar uma nova época emergente. Nesse sentido, Nietzsche não é um intelectual renegado (freischwebend) à medida de seus humores ou de seus caprichos, senão aquele que lança as bases de um sistema normativo e de uma comunidade positiva, cujo fundamento não é já um conjunto fixo de dogmas ou de mandamentos (de "tu deves"), senão um dinamismo efervescente que há que cavalgar e guiar de forma permanente (Kurt Hildebrandt, "Über Deutung und Einordnung von Nietzsche System", Kant-Studien, vol. 41, nr. 3/4, 1936, pp. 221-293). Esse cavalgar e essa orientação necessitam de uma nova educação, mais atenta às forças em potência, aptas a irromper na trama do mundo.

Mais explícito sobre as variações inumeráveis e contraditórias das interpretações de Nietzsche sob o Terceiro Reich é o livro do filósofo italiano Giorgio Penzo, para quem a época nacional-socialista procede mais geralmente a uma desmistificação de Nietzsche. Não se solicita já sua obra tanto para transtornar as convenções, para sacudir as bases de uma moral social paralisada, senão para reinseri-la na história do direito ou, mais parcialmente, para fazer do super-homem nietzscheano um simples equivalente do homem fáustico ou, em Krieck, o horizonte da educação. Se assiste igualmente a desmistificações mais totais, ou se assinala a infecundidade fundamental do anarquismo nietzscheano, no qual se descobre uma "patologia da cultura que conduz à despolitização". Essa crítica de "despolitização" encontra sua apoteose em Steding. Outros fazem do super-homem a expressão de uma simples nostalgia do divino. A época conhece, certamente, suas leituras fanáticas, diz Penzo, onde a encarnação do super-homem é muito simplesmente Hitler (Scheuffler, Öhler, Spethmann, Müller-Rathenow). Única notável exceção nesse magma, bastante confuso, é o filósofo Alfred Baeumler.

Alfred Baeumler

Para Baeumler, no demais muito modelado pelas teses de Bachofen, Nietzsche é um "pensador existencial", isso é um filósofo que nos convida a nos afundarmos na concretude social, política e histórica. Baeumler não retém portanto a crítica de "despolitizador" que alguns, entre eles Steding, haviam dirigido a Nietzsche. Define ele a "existencialidade" como um "realismo heróico" ou um "realismo heraclítico"; o homem e o mundo nessa perspectiva, o homem no mundo e o mundo no homem, estão em perpétuo devir, submetidos a um movimento contínuo, que não conhece nem repouso nem quietude. O super-homem é desse modo uma metáfora para designar tudo que é heróico, e.d., tudo o que luta na trama no devir da existência terrestre.

Se comprova que Baeumler dá prioridade ao "Nietzsche agonal" antes que ao "Nietzsche dionisíaco" que eriçava Steding, porque ele era o principal responsável das formas e das estruturas políticas. Baeumler estima que Nietzsche inaugura a era da Grande Razão dos Corpos, onde a Gebildetbeit, que não se dirige senão ao puro intelecto descuidando o corpo, é inautêntica, enquanto que a Bildung, repousando sobre a intuição, a inteligência intuitiva e uma valorização do corpo, é a chave de toda verdadeira autenticidade. Notemos de passagem que Heidegger, inimigo de Baeumler, também fala de "autenticidade" nessa época. A lógica do corpo, que é uma lógica estética, salva o pensamento, pensa Baeumler, porque toda a cultura ocidental se encerrou em um sistema conceitual frio que já não leva a nada, sistema cuja trajetória foi balizada pelo cristianismo, o humanismo (baseado sobre uma falsa interpretação, adocicada e falsificada, da civilização grecorromana), o racionalismo cientificista. A noção de Corpo (Leih), mais o recurso ao que Baeumler chama a "helenidade verdadeira", e.d. uma helenidade pré-socrática, assim como a uma germanidade verdadeira, e.d. uma germanidade pré-cristã, levam a um retorno ao autêntico, como o provam, na época, as inovações da filologia clássica depois de Bachofen (Walter Otto, etc.). Essa equação entre helenidade pré-socrática, germanidade pré-cristã e autenticidade, constitui o saltus periculosus de Baeumler: negar toda autenticidade ao que saía do campo dessa helenidade e dessa germanidade valeu a Baeumler ser ostracizado durante longo tempo, antes de ser timidamente reabilitado.

Em um segundo tempo, Baeumler politiza essa definição da autenticidade, afirmando que o nacional-socialismo representa "uma concepção do Estado greco-germânica". Baeumler não se entrega demasiado a críticas frustradas, nem a exigências exageradas. Por que afirma que o Estado nacional-socialista é greco-germânico no sentido em que Nietzsche definiu a corporeidade grega e aceitou a valorização grega do corpo? Para poder sustentar isso, Baeumler procedeu a uma interpretação da história cultural da "burguesia alemã", cujos modelos estão todos em quebra sob a República de Weimar. A Aufklärung, primeira grande ideologia burguesa alemã, é uma ideologia negativa porque é individualista, abstrata, e não permite forjar políticas coerentes. O romantismo, segunda grande ideologia da burguesia alemã, é uma tradição positiva. O pietismo, terceira grande ideologia burguesa na Alemanha, é rechaçado pelos mesmos motivos que a Aufklärung. O romantismo é positivo porque permite uma abertura ao Volk, ao mito e ao passado, portanto ultrapassar o individualismo, o positivismo mesquinho e a fascinação infecunda pelo progresso. Não obstante, em geral, a burguesia não tirou as lições práticas que teria sido preciso tirar de partida do romantismo. Baeumler critica a burguesia alemã o ter sido "preguiçosa" e ter escolhido um expediente: imitou e importou modelos estrangeiros (inglês ou francês) que calcou sobre a realidade alemã.

Entre as miscelâneas ideológicas burguesas, a mais importante foi o "classicismo alemão", espécie de misto artificial de Aufklärung e de romantismo, incapaz, segundo Baeumler, de gerar instituições, um direito e uma constituição autenticamente alemães. Ao rechaçar a Aufklärung e o pietismo, religando-se com o filão romântico, explica e espera Baeumler, o nacional-socialismo poderá "trabalhar para elaborar instituições e um direito alemães". Porém o novo regime jamais terá tempo de terminar essa tarefa.

Na interpretação baeumleriana de Nietzsche, a morte de Deus é sinônimo da morte do Deus medieval. Deus em si não pode morrer, porque não é outra coisa que uma personificação do Destino (Schicksal). Este suscita, por meio de fortes personalidades, formas políticas mais ou menos efêmeras. Essas personalidades não teorizam, atuam, o destino fala por elas. A Ação destrói o que existe e se embotou. A Decisão é a existência mesma, porque decidir é ser, é se transformar em uma porta que o Destino força para se precipitar na realidade. Ernst Jünger teria falado da "irrupção do elemental". Para Baeumler, o "sujeito" tem pouco de valor em si, não a adquire senão por sua Ação e por suas Decisões históricas. Essa negação do "valor em si" do sujeito funda o anti-humanismo de Baeumler, que se reencontra finalmente, sob outra forma em uma linguagem marxistizada, em Althusser, p. ex.; em quem a "função prática-social" da ideologia toma a dianteira sobre o conhecimento puro (como, na concepção de Baeumler, ao mergulhar na vida real se concedia maior importância que a cultura livresca da ideologia das Luzes ou do classicismo alemão). Para Althusser, cujo pensamento chegou a sua maturidade em um campo de prisioneiros na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, a ideologia (a Weltanschauung) era uma nova instância movente, levada por pensadores que agarraram a concretude, a que permitia pôr em manifesto as relações do homem com as condições de sua existência, ajudá-lo no combate contra as "autoridades fixas", que o obrigam a repetir sem cessar - "sisificamente", estaríamos tentados a dizer - os mesmos gestos apesar das mutações que se operam no real. Para Althusser, a ideologia não pode jamais, por conseguinte, se mudar em ciência rígida e fechada, não pode chegar a ser puro discurso de representação; e enquanto conceitualização permanente e dinâmica dos fatos concretos, discute sempre o primado da autoridade política ou político-econômica instalada e estabelecida; tal como o "anarquismo" esquerdista e nietzscheano de Landauer recusava as rigidizações convencionais, porque elas eram outras tantas barreiras para a irrupção das potencialidades em gérmen nas comunidades concretas. Enfim, não nos parece ilegítimo comparar as noções de "autenticidade" em Baeumler (e Heidegger) e de "concretude" em Althusser, e proceder a uma "fertilização cruzada" entre elas.

O anti-humanismo de Baeumler repousa, por sua parte, em três pilares, em três obras: as de Winckelmann, de Hölderlin e de Nietzsche. Winckelmann rasgou a imagem feita que as "humanidades" haviam dado da antiguidade a gerações e gerações de europeus. Winckelmann revalorizou Homero e Ésquilo antes que a Virgílio e Sênica. Hölderlin assinalou a relação entre a helenidade fundamental e a germanidade. Porém o anti-humanismo de Baeumler é uma "revolução tranquila", mais bem "metapolítica"; avança silenciosamente, a passos de pomba, a medida que rodam e se afundam dogmas, certezas e representações paralisadas, principalmente as do humanismo, inimigo comum de Baeumler e Althusser.

Texto original retirado do blog LEGIO VICTRIX