sexta-feira, 30 de março de 2012
1984 - George Orwell e a atualidade da "Novilíngua"
A atualidade da novilíngua
Juliana de Miranda e Castro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
A saga de Winston e os princípios da novilíngua
Em 1984, o mundo encontrava-se dividido em três grandes superestados – Eurásia, Lestásia e Oceania. Winston Smith era funcionário do Ministério da Verdade da Oceania. No início marcado por uma relativa indiferença frente aos fatos, foi a partir da paixão por uma mulher que ele se decidiu a procurar O’Brien, membro do Partido Interno, o qual supostamente faria parte da Fraternidade contra o Grande Irmão. Quando tocado por Júlia, foi constrangido a tomar uma posição como sujeito de seu desejo. Com ela, procurou O’Brien, responsabilizando-se por suas palavras, sabendo das conseqüências que tal ato teria. A vida era desempenhar um papel, e era perigoso para ele abandonar sua falsa personalidade. Segundo ele, a alternativa para o homem era a liberdade ou a felicidade e a grande maioria preferia a segunda, mas pagava-se um preço alto por isso.
Winston se deu conta de sua morte subjetiva e isso o fez agir. Quando não tinha mais nada a perder, ao se reconhecer como defunto no mundo do Grande Irmão, ele agiu, pois já havia perdido a vida. Isso nos remete ao que Lacan (1959, p. 60) afirma a respeito de Hamlet, o qual, após grande procrastinação, age apenas ao se ver mortalmente ferido, no curto intervalo entre a morte recebida e o perder-se nela. No ato de evitar a morte, ela presentifica-se para Hamlet, pois ele permanece mortificado em um eterno adiamento de seu ato. Ele pergunta-se: “ser ou não ser – eis a questão” (Shakespeare, 2002, p. 63) e põe-se a refletir se deveria viver com seu sofrimento, ou morrer para dar-lhe fim: “eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer – dormir – Dormir!” (p. 63).
Winston, contra o estabelecido pelo Partido, tomou a decisão de escrever um diário. Isso não era ilícito, nada mais era ilegal, os atos dos cidadãos não eram regulados por nenhum código legal claramente formulado, pois na Oceania não existia lei. Entretanto, sabia que seria punido com a pena de morte se fosse descoberto, mesmo assim isso não o interrompeu. Ninguém leria seu escrito, além da Polícia do Pensamento, antes de suprimi-lo da lembrança. “O passado era raspado, esquecida a raspagem e a mentira tornava-se verdade” (Orwell, 2005, p. 76). Contra a era da uniformidade do Grande Irmão, do duplipensar [ou o controle da realidade], Winston escreveu sobre a submissão intelectual e a demissão subjetiva. Endereçava seu escrito para uma época futura, na qual aquilo que fosse feito não pudesse ser desfeito, e não se pudessem raspar os rastros deixados.
Seu colega Syme cuidava da décima primeira edição do dicionário de novilíngua. Ele achava lindo destruir palavras. Não via justificativa para a existência de uma que seria apenas o antônimo de outra, porquanto cada palavra contém em si mesma seu contrário, e ainda melhor, pois é exatamente oposta – explicava, referindo-se a bom e seu oposto imbom em relação ao obsoleto mau. Eram igualmente ultrapassadas excelente e esplêndido, dando lugar a plusbom e dupliplusbom. No caso de um substantivo e um verbo sem relação etimológica, mas com significado parecido, um desaparecia – diante disso, não existia cortar, pois seu significado já estava incluído no substantivo-verbo faca.
Em novilíngua não havia imprecisão ou gradação de sentido. Seu vocabulário foi construído para fornecer a expressão exata da palavra, excluindo todas as ambigüidades e sentidos implícitos, bem como a possibilidade de se chegar a eles por vias indiretas. Havia uma total reciprocidade entre as partes do discurso, um acesso direto e, portanto, sem a dimensão da equivocidade. A redução do vocabulário era um objetivo por si só, independente dos sentidos heréticos, pois a finalidade da novilíngua era diminuir a extensão do pensamento reduzindo o número de palavras ao mínimo.
Elas eram amalgamadas de modo facilmente pronunciável, reduzidas a um som expressando claramente um único conceito. Nesse processo, primavase pela eufonia associada à exatidão de sentido, sem considerar qualquer critério etimológico. Como uma espécie de estenografia verbal, uma série de idéias era englobada em poucas sílabas, oferecendo um significado mais preciso.
Muitos termos pareciam meras abreviaturas; entretanto, seu teor ideológico derivava de sua estrutura e não de seu significado. Eram palavras curtas, sem equivocidade, as quais podiam ser pronunciadas rapidamente, com a menor repercussão na mente do falante. Visava-se à alteração do significado, eliminado associações relacionadas à palavra, de modo que o falante a pronunciasse quase sem pensar, sem ser chamado a refletir. Sem sinonímia, com pouquíssimos vocábulos para se escolher, cada redução era um ganho, pois menor era a tentação de refletir quanto mais exígua fosse a área de escolha. Diante disto, Comintern sugere apenas uma doutrina bem definida, enquanto Internacional Comunista, ao contrário, evoca fraternidade humana, Karl Marx, Comuna de Paris.
Os vocábulos tinham seus significados atenuados por eufemismos e significavam exatamente o oposto daquilo que aparentemente diziam. Havia nos nomes dos ministérios uma deliberada subversão dos fatos: o Minipax, Ministério da Paz, fazia a guerra; o Partido minava sistematicamente a solidariedade da família, ao passo que chamava seu chefe por um nome que fazia apelo direto ao sentimento de lealdade familiar, o Grande Irmão.
A Revolução completar-se-ia quando a língua se tornasse perfeita, isto é, quando fosse impossível cogitar formas de pensamento divergentes de seu princípio, tornando qualquer pensamento herético impensável. Destarte, o que não tem palavras não pode ser concebido. Não haveria então pensamento, pois ortodoxia significava não precisar pensar. Sua utilização para fins literários ou discussões filosóficas era impossível. Uma opinião heterodoxa só podia ser expressa superficialmente, como blasfêmia, mas nunca ser sustentada por uma argumentação justificada, porque não havia as palavras necessárias. Apareciam de forma vaga, em termos muito amplos, os quais condensavam todos os tipos de heresia sem defini-los.
Com o número de palavras cada vez mais reduzido, seus significados cada vez mais restritos e a possibilidade de usar impropriamente uma palavra cada vez menor, para uma pessoa que crescesse com a novilíngua, haveria crimes que estariam além da capacidade dos homens de cometê-los, pois se não tinham nome, eram inimagináveis e, portanto, não podiam existir. Por causa do corte de palavras, haveria uma intraduzibilidade e uma ininteligibilidade da literatura, a qual poderia ter apenas uma tradução ideológica, o que significava uma alteração de sentido e de linguagem – por esta forma, um texto de Jefferson significaria um elogio ao absolutismo.
A novilíngua buscava, portanto, apagar o trabalho do sujeito e elidir a enunciação. Visava-se a voz unificada das consignas do Grande Irmão, cujo objetivo final era sua repetição. A palavra virava pura prática fonatória desumanizada, de uso simplesmente operatório. Submetia-se voluntariamente a enunciados apresentados como livres da enunciação. Não é difícil aproximarmos essas características de outras com as quais nos confrontamos na atualidade. Hoje, podemos afirmar que nos vemos frente a um falar para não dizer, no qual a falsificação da verdade é um instrumento natural – quase sempre assistimos a modificações da língua, exemplos rápidos nos mostram como, para abordar a demissão de empregados, com tudo o que traz de angústia, a expressão reengenharia é preferível. Da mesma forma, fala-se em crescimento negativo para designar diminuição. Pode-se produzir uma fala consistente e não se engajar, mantendo-se em uma exterioridade serena em relação ao que possa vir a relatar. Trata-se de uma série de palavras e conceitos, os quais fizeram desaparecer o fato de que foram produzidos por alguém.
Voltando a 1984, os proles eram livres porque não tinham idéias gerais, concentravam-se em reivindicações específicas irrisórias e ignoravam os males maiores. Como o cidadão ideal do regime totalitário, apontado por Arendt: “o homem para quem a distinção entre fato e ficção e a distinção entre verdadeiro e falso não existem mais” (Lebrun, 2004, p. 71). Era aos incapazes de compreendê-lo que o ponto de vista do Partido impunha-se com maior êxito, aceitando flagrantes violações da realidade.
Interessava ao Partido matar o desejo sexual, e se não fosse possível, distorcê-lo, posto que “executado com êxito, o ato sexual era rebelião. O desejo era crimidéia” (Orwell, 2005, p. 69). O Partido sabia que sobre o ato sexual não se controla onde vai dar. O encontro com Júlia despertou o sujeito adormecido, o desejo invocou Winston. Deparar-se com o sexual interrompeu para ele a engrenagem gelificante do logro e o fez se lançar no ato. Podiam desnudar tudo o que tivesse feito e pensado, acreditava ele, mas não alterar aquilo que o próprio sujeito não consegue, mesmo que queira, pois o funcionamento do âmago do coração é um mistério para a própria pessoa e, portanto, inexpugnável.
O Partido não diferençava pensamento de ato. O sujeito era convocado a responder por seus atos – principalmente os inconscientes. Nesse sentido, mesmo que fosse para destruí-lo, reconhecia aí o sujeito. Assim, lutava-se não com um inimigo externo, mas consigo mesmo, já que a crimidéia era algo insidioso, pois podia ocorrer sem que se percebesse. O aterrorizante era o ato ser inconsciente, o mais perigoso era falar dormindo, pois contra isso não se podia proteger. O’Brien declarava a inadmissibilidade de um pensamento errôneo, ainda que inerme. Tal desvio não era aceitável nem mesmo no instante da morte. Ele chamou Winston à responsabilidade por ter se voltado contra o Partido, dizendo-lhe que estava tudo colocado desde seu primeiro ato. Ele explicou a Winston que o Partido não se interessava pelos atos físicos, mas pelos pensamentos; não se destruía o inimigo, mas se o modificava, esmagando-o até o ponto de deixá-lo oco, matando sua subjetividade, para então preenchê-lo.
Isso era feito com o inimigo na sala 101. Lá estava a pior coisa do mundo, a qual variava de indivíduo para indivíduo. No caso de Winston, a pior coisa do mundo eram os ratos. Ele sempre tivera um pesadelo cíclico, no qual estava parado diante de uma muralha de trevas e do outro lado havia algo insuportável e horrível de se fazer face. Sabia o que era, mas não ousava trazê-lo à luz: ratos. Ele foi capaz de resistir à dor, mas para todos há algo aterrorizante, o qual não pode ser contemplado. Ele não cedera de seu amor por Júlia até seu encontro com o insuportável na sala 101. Os ratos estavam em uma gaiola adaptada a uma máscara em seu rosto. O único jeito de se salvar, pensou, era interpor o corpo de Júlia diante da gaiola: “faça com Júlia, comigo não!” (p. 273) Ao contrário do que dissera a ela, puderam sim penetrar nele, com os ratos. Deixaram-no vazio, obrigaram-no a acreditar, enchendo-o de amor pelo Grande Irmão. No parágrafo final, a morte do sujeito: “agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão” (p. 285).
O apagamento da identidade
Winston não foi assassinado antes de sua morte subjetiva. O’Brien tirou sua identidade; sem ela, ele circulava tranqüilamente. Ele estava, então, livre – e sem lugar. Dessa posição, não representava mais ameaça alguma para o sistema. Isso remete-nos ao relato de Rousset, um ex-prisioneiro dos nazistas, citado por Arendt:
O triunfo da SS exige que a vítima torturada permita ser levada à ratoeira sem protestar, que ela renuncie e se abandone a ponto de deixar de afirmar sua identidade. E não é por nada. Não é gratuitamente, nem por mero sadismo, que os homens da SS desejam sua derrota. Eles sabem que o sistema que consegue destruir suas vítimas antes que elas subam ao cadafalso é incomparavelmente melhor para manter todo um povo em escravidão. Em submissão. Nada é mais terrível do que essas procissões de seres humanos marchando para a morte (2004, p. 22).
Arendt pergunta-se por que os judeus, por meio de seus líderes, colaboraram com sua própria destruição, como cordeiros marchando para o matadouro. Ela lembra os que atacaram a polícia nazista em Amsterdã e foram literalmente torturados até morrerem. Há coisas piores do que a morte, e a SS cuidava de mantê-las presentes na mente de suas vítimas – como fazia o Partido em relação à sala 101, em 1984. O heroísmo dos que resistiram e reagiram estava na recusa da morte fácil, no fuzilamento ou na câmara de gás, oferecida pelos nazistas, decidindo não irem pacificamente para o sacrifício.
Bach-Zelewski, antigo general e comandante superior da SS e da polícia, foi o único de sua categoria que se denunciou publicamente pelos assassinatos em massa e prestou testemunho em Nuremberg. Ele sofreu um colapso nervoso depois dos assassinatos em massa e tentou proteger os judeus dos Einsatzgruppen2. Recebeu das cortes alemãs, para os padrões do pós-guerra, uma sentença excepcionalmente dura – a prisão perpétua – pelo assassinato de seis comunistas alemães. Porém, nunca foi processado pelos assassinatos em massa. O povo alemão não se incomodava com assassinos à solta no país, que não matariam por sua própria vontade.
Arendt indica a cumplicidade quase ubíqua dos funcionários e autoridades alemães na Solução Final, a qual se estendeu muito além das alas dos membros do Partido. Os cúmplices desses crimes eram doutores, advogados, universitários, banqueiros, os quais nunca decidiram o extermínio dos judeus; no entanto, somente se reuniram para planejar as execuções das ordens de Hitler. Todavia, embora não os tenham planejado, não são menos responsáveis por seus atos.
A posição de Winston, na ficção, pode aproximar-se da de Bach-Zelewski na vida real, único general que se denunciou publicamente. Este não recuou ante os assassinatos em massa. Ao contrário de Eichmann, o qual em momento algum responsabilizou-se, Bach-Zelewski apresentou-se frente às autoridades para denunciar-se por seus crimes e responder por eles. Responsabilizou-se pelo que fez e agiu a partir disso ao se arriscar para proteger os judeus dos Einsatzgruppen e testemunhar.
Já Eichmann dizia-se “inocente no sentido da acusação” (p. 36) durante todo seu julgamento. Ele confirmou ter agido sempre conscientemente, e apenas ficar com a consciência pesada se não fizesse o que lhe ordenavam: com meticuloso cuidado e aplicação, mandar para a morte milhões de pessoas. Segundo os psiquiatras, sua relação familiar era mais do que normal, era desejável. Ele não era um fanático anti-semita; pelo contrário, não tinha nada contra os judeus. Arendt enfatiza o maior desafio moral do caso: admitir que um homem normal (mediano, nem doutrinado nem ignorante) fosse incapaz de distinguir o certo do errado. Ele era normal pois não era exceção no regime nazista. O dilema, não resolvido pelos juízes, é que nesse regime só as exceções agiam normalmente.
Com a derrota da Alemanha, Eichmann percebeu que viveria sem ser membro de algo:
Senti que teria de viver uma vida individual difícil e sem liderança, não receberia diretivas de ninguém, nenhuma ordem, nem comando me seriam mais dados, não haveria mais nenhum regulamento pertinente para consultar – em resumo, havia diante de mim uma vida desconhecida (Eichmann apud Arendt, 2004, p. 43-4).
Sobre sua entrada para o Partido, afirmou ter acontecido repentinamente e sem decisão prévia; jamais conheceu seu programa, não tinha tempo nem vontade, nunca leu Mein Kampf3. Eichmann era um fracassado aos olhos da sociedade, de sua família; fracassado a seus próprios olhos. Ele não gostava do que tinha de fazer, não pensou que acabaria mal; entretanto, não queria a vida discreta e normal de vendedor viajante da Companhia de Óleo a Vácuo. Todavia, não é de uma hora para outra que se alcança o que ele atingiu – ele trilhou seu caminho pouco a pouco, embora talvez não pudesse saber exatamente onde isso ia dar. Ele recusou a alternativa, da qual jamais se esqueceu, de viver a vida normal, e nunca se responsabilizou pelos desdobramentos desse fato.
O crime de Eichmann foi renunciar à sua capacidade de discernimento e abdicar de sua enunciação. A esse propósito, Lebrun (2004) aponta o a-sujeito do totalitarismo, o qual abriu mão de sua faculdade de julgar e, portanto, de sua posição de sujeito. Ele não é maléfico, mas totalmente submetido ao sistema que o comanda, não se autoriza a pensar, demite-se de sua enunciação, resignando-se à concordância com os enunciados aos quais se subjuga.
O autor postula uma congruência entre o pensamento sem suplemento de pensar, próprio da ciência, e o totalitarismo, marcando um condicionamento do quadro no qual se exerce o pensamento. Essa convergência entre totalitarismo e demissão do sujeito de sua enunciação baseia-se na possibilidade deste de se remeter exclusivamente aos enunciados, aliviando-se assim do mal-estar da incerteza intrínseca ao fato de pensar e de sustentar seu desejo. Há uma impotência em pensar correlativa a uma incapacidade de sofrer experiências. Tem-se a emancipação do pensamento com relação a si próprio, uma saída da condição humana, ao preço da perda da faculdade de julgar – como notou Arendt (2004).
Lebrun pergunta-se sobre o papel desempenhado pela ciência no nazismo, e indaga o que terá permitido a massiva participação dos médicos no Partido. A ideologia nazista pretendia justificar seu programa na ciência, especialmente na biologia racial. Passou-se de um racismo visceral para um cientificamente justificado, de uma purificação biológica da causa do mal social. Ele nota a proliferação do vocabulário médico nas exortações de Hitler com relação aos judeus – contaminação, eliminação do pus, envenenamento do sangue, infecção pestilenta, tuberculose. Segundo ele, a presença dos médicos relaciona-se com as especificidades do método científico e os efeitos que ele instaura no social. Os enunciados da ciência permitem desconhecer a dimensão da enunciação, e foi a promoção de um enunciado cuja enunciação fora apagada o que possibilitou aos nazistas se servirem da ciência racial, legitimando que um enunciado assassino fosse inocentemente levado a cabo em nome de um programa científico de bem-estar social – isso se aproxima, como vimos, dos objetivos da novilíngua.
O texto na atualidade
A meta da novilíngua, podemos dizer, segue o que consideramos o ideal do sistema paranóico, o qual seria a abolição da diferença, em uma linguagem purificada de qualquer equívoco (Melman, 2005b, p. 38). Voltando ao uso da linguagem no cotidiano atual, a respeito da supressão da equivocidade, Czermak (2004b, p. 191) destaca documentos cuja linguagem administrativa elimina as leis da palavra, como uma tentativa de fazer desaparecer a dimensão do Outro, a qual possibilita justamente o endereçamento do sujeito ao semelhante, respeitado como um outro e protegido da devoração – única alternativa dada pelo dual. Segundo Melman (2005a, p. 15), quando essa dimensão é excluída, sobrevém a paranóia, uma vez que a relação dual é organizada pela alternativa disjuntiva do será ou a minha pele ou a tua.
Deparamo-nos com a proliferação de textos regulamentares, os quais sinalizam o fracasso de uma lei simbólica que assegure ao sujeito uma relação pacífica com o outro, e o recrudescimento das segregações, cujo objetivo é unir as pessoas em torno de uma identidade, a qual se afirma logicamente por uma exclusão – como no caso apontado por Arendt relativo aos judeus. Nos procedimentos administrativos regulados, temos modos bem instalados na vida pública, que permitem a cada um o alívio da responsabilidade do ato próprio. É como se fosse possível uma transparência generalizada, como se não houvesse para ninguém um lugar de opacidade. Se somos todos parceiros, transparentes uns aos outros, substituíveis e inespecíficos, não nos preocupamos com a questão do ato. Seria a inequivocidade da regulação administrativa perfeita, a qual não tolera o advento do sujeito, produzindo o a-sujeito, nos termos de Lebrun, como Eichmann. Enquanto Winston, conforme vimos, lutou para não sucumbir ao conforto da desresponsabilização.
Czermak (2004a, p. 209) pergunta-se quem é o amo que fala, nessa voz pura que vem não se sabe de onde, como fluxos anônimos e acéfalos, e diz amo você e estou a seu serviço, mas você tem que obedecer às minhas ordens, tal qual a voz do Grande Irmão. No totalitarismo, o dirigente apóia-se nas massas, e simultaneamente organiza uma sociedade sem classes. Suprime-se a divisão entre o chefe e os outros, e com ela, a representação. Ele não é mais um porta-voz: é a voz direta e injuntiva do Grande Irmão/Grande Outro, a qual invade todos os domínios da existência, difundindo a palavra de ordem.
Fica-se sob o jugo de textos que não foram feitos para serem entendidos, mas obedecidos como uma ordem, em uma transferência forçada sobre o sujeito, o qual não tem como se defender, pois eles são imperativos e sem endereçamento, valem para todos igualmente. Entretanto, devem ser cumpridos de maneira absoluta, porque toda a vida social é regulada por essa obrigação. Parece servir, ao panorama previsto por Orwell, à observação de Czermak sobre o ideal de um grande texto universal, o qual regularia um gozo planetariamente idêntico e fraternamente repartido. Seguindo a lógica dual, organizada sobre uma alternativa disjuntiva, ele adverte que entre grupos humanos se um goza mais que o outro, tem que morrer. Como conseqüência disso, podemos pensar nos movimentos totalitários e nos fanatismos, bastante atuais.
Czermak (2004a, p. 218) ressalta um imperativo social, validado pela força do Estado, de se ser um sujeito puro e livre do Outro, no que ele chama “o totalitarismo soft no qual vivemos”. Este é quase imperceptível, parecido com alguns regimes, nos quais as crianças recebiam medalhas por cumprirem a obrigação de denunciar os pais contrários ao governo. Segundo ele, com a horizontalização das relações, promovida pela inflação dos direitos da criança, não estamos muito longe disso. Essa é a perspectiva em 1984, em que os pais tinham medo dos próprios filhos. Estes eram ensinados a espionar e denunciar seus desvios à Polícia do Pensamento, da qual a família era uma extensão, com delatores que conheciam intimamente o acusado. Isso era motivo de orgulho, como disse Parsons a Winston na prisão, lisonjeado pelo fato de sua filha tê-lo delatado.
Com o apagamento da dissimetria de lugares e sua substituição por uma paridade, na qual cada um se considera como o parceiro do vizinho, reaparece inexoravelmente uma disparidade. Isso é um fenômeno automático. Fica-se proibido de responder de seu lugar legítimo, pois é o lugar Outro que está posto de lado, substituído por outro lugar. A autoridade da decisão é suposta valer para todos igualmente. O apagamento da heterogeneidade dos lugares, com o afrouxamento do simbólico que o garantia, vai ao encontro do ideal higienizante de acesso direto ao saber total e sem opacidade.
De certa forma, esse é o panorama descrito em 1984. São todos iguais, sem laços, sem pertencimento a uma cadeia geracional, sem alteridade, mas sob a autoridade do comando da voz do Grande Irmão, a qual não se sabe de onde vem, porém deve ser obedecida. O imperativo é tão eficaz que as regras não precisam sequer serem escritas: não há mais leis, todavia, sabe-se bem o que leva à pena de morte. O’Brien instala-se no lugar de falsificação identificatória, decidindo em nome do bem da prole, dispensada do trabalho da reflexão.
Sem entrar no mérito do conteúdo, o formal permite certas operações. O formal não é inócuo, ele tem implicações. Sua essência é poder descrever um número específico de relações. Assistimos, no vaticínio de Orwell, a um mundo drasticamente higienizado da diferença, a qual retorna violentamente na voz imperativa do Grande Irmão. A base dessa elisão da alteridade está nas construções da linguagem, que levadas ao extremo na novilíngua, vimos se tornarem realidade em nosso cotidiano. Essas construções restringem o número e a qualidade das relações que podem ser descritas, ou indo mais adiante, que podem existir. Trata-se da exclusão da dimensão da enunciação em prol de puros enunciados. Na radicalidade, restringindo-se o que pode ser dito, limita-se o pensamento: o que não é nomeado não existe.
Referências Bibliográficas
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CZERMAK, M. A psicanálise é um trabalho de leitura. Tempo Freudiano: a clínica psicanalítica e as novas formas do gozo. (5): 205-222. ago/2004a.
CZERMAK, M. O fim do texto? In: Tempo Freudiano: a clínica psicanalítica e as novas formas do gozo. (5): 187-203. ago/2004b.
LEBRUN, J.-P. Um mundo sem limite. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
LACAN, J. (1959). Hamlet, por Lacan. In: LACAN, J. Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assírio e Alvim, 1989.
MELMAN, C. As paranóias. In: Tempo Freudiano: a clínica da psicose: Lacan e a psiquiatria, vol. II: as paranóias. (4): 13-19, jan/2005a.
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Linguagem,
Literatura
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