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Welcome to the machine.
Pink Floyd
Um dos temas mais frequentes na literatura de ficção científica é sempre a previsão geralmente sombria de um futuro que se revelará distópico. Isso, na verdade, é tão comum que acabou se tornando um clichê cinematográfico e publicitário, como podemos ver nos celebrados comerciais da empresa de computadores Apple, em especial os que remetem a dois clássicos do gênero: o primeiro que cita o romance 1984 (1948), de George Orwell, e o segundo que homenageia explicitamente 2001 – Uma odisseia no espaço (1968), o filme enigmático de Stanley Kubrick.
Nas duas peças publicitárias que tinham como meta prática de vender um objeto que parecia ter saído do próprio futuro – o computador pessoal Macintosh –, o principal criador da Apple, o famoso e temperamental Steve Jobs, pediu explicitamente que os comerciais fossem inspirados no imaginário visual criado por diretores como Kubrick e Ridley Scott – chegando ao ponto de, no caso do spot que remetia a 1984, contratar o próprio Scott por um cachê milionário porque ele queria a qualquer custo ter o mesmo visual futurista de Blade Runner – O caçador de androides (1982), o cultque, por sua vez, era também baseado em um romance de Philip K.Dick, outro mestre da ficção científica.
Jobs sabia que o uso da iconografia já considerada célebre desse gênero literário e cinematográfico se devia ao fato de que, lá no fundo da nossa experiência em comum, o ser humano não consegue prever adequadamente o quão longe vai a nossa tendência de sermos perfeitos neste mundo – ou, para ser exato, de reconhecermos a nossa perfectibilidade em um universo que se apresentará a nossos olhos ora como sujo e perverso (caso do futuro imaginado por Ridley Scott), ora como asséptico, incapaz de erros, mas, mesmo assim, igualmente assustador (uma característica habitual em todos os filmes de Stanley Kubrick). O que a Apple se propunha nesses anúncios era que o verdadeiro futuro seria revelado com o lançamento do Macintosh – um futuro mais humano, que aproximasse as pessoas, sem a presença de um Big Brother que vigiasse cada um de nós em nossa privacidade, um futuro no qual seríamos capaz de prevermos imprevistos que não colocariam a civilização à beira de um colapso final. Em suma: a Apple seria nada mais nada menos a empresa que liquidaria com a possibilidade de surgirem as distopias futuristas.
Bem, sabemos hoje que Steve Jobs poderia ser considerado um visionário, mas não era um vidente, pois agora temos conhecimento de como os computadores pessoais sabem de cada detalhe de nossas vidas, graças ao programa Prism, da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos – tudo isso revelado e divulgado pelo Kim Philby de nosso tempo, Edward Snowden, sempre em conluio com uma imprensa que, apesar de se mostrar aterrorizada com essas notícias, também alimentou esse mesmo comportamento entre os anônimos e as celebridades (alguém ainda se lembra do que aconteceu com Diana Spencer e com os donos da Escola Base?).
Enfim, tudo leva a crer que, mesmo com as intenções mais otimistas, já vivemos no futuro distópico imaginado por Orwell, Philip K. Dick, Kubrick e Scott. E o que seria uma distopia, essa palavra que todos julgam saber o que é, mas mal conseguem explicar a qualquer um?
As distopias são um gênero narrativo surgido no final do século XIX, mais especificamente na Inglaterra, em função do fato de que a visão de mundo utópica não tinha mais eficácia para capturar a imaginação da sociedade. Naquela época, a ideia de progresso, após ter sido alçada como um novo deus no Iluminismo francês e britânico, foi posta em dúvida devido à aceleração tecnológica promovida pela Revolução Industrial – e que desumanizou ainda mais os trabalhadores que já viviam em condições insalubres, miseráveis, próximas de serem vistas como uma nova escravidão. Além disso, o surgimento de duas Guerras Mundiais em um espaço de menos de trinta anos colaborou para o fortalecimento desse gênero na sensibilidade dos leitores, como mostra o sucesso de dois livros que marcaram o século XX: Admirável Mundo Novo (1931), de Aldous Huxley, e o já citado 1984, de Orwell.
Para muitos, a distopia parece ser o oposto da utopia, já que esta quer descrever um mundo ideal que ainda pode ser alcançado enquanto o primeiro prevê um mundo onde todos nós queremos evitar que exista. Não é bem assim: o criador do termo utopia, Sir Thomas More, já avisava aos amigos, quando publicou o livrinho que tinha o mesmo nome em 1516, que o mundo criado especificamente para o relato das aventuras do navegador ficcional Raphael Hitlodeu era, de fato, uma descrição do que poderia se tornar a Inglaterra do século XVI. Para quem ainda não sabe,utopia é um neologismo com o advérbio grego ou – “não” – e o substantivo topos – “lugar”. O som resultante dá a impressão de ser uma palavra latina, utopia / eutopia, que resulta em um outro trocadilho, desta vez significando lugar “feliz” ou “afortunado”. No próprio esboço inicial de More, a ilha se chamava Nusquama, outro trocadilho para “nenhures”.
Esta referência ambígua ao “estado de bem-aventurança” do mundo de Utopia como modelo de justiça para a Inglaterra é uma outra piscadela de More ao tratado de Santo Agostinho, A Cidade de Deus. Na lógica interna do seu texto, Utopia é a cidade divina que foi finalmente levada a cabo na Terra; contudo, o próprio nome da ilha indica que não existe em lugar nenhum e isto é a prova de que More sabia que a cidade de Deus, ordenada pelo amor Dei, jamais seria vislumbrada por qualquer criatura humana enquanto vivesse neste wretched world [mundo devastado]. A “cidade”, para Agostinho, existe em um sentido figurado, próximo do “místico”, que se divide em duas sociedades comandadas por dois tipos diferentes de amores. A primeira, como já foi dito, é o do amor de Deus que une todos os membros e os liga através de uma homonoia, uma comunhão; o segundo é o amor de si que chega ao desprezo de Deus, que Agostinho não hesita em identificar com o próprio Diabo. Em Utopia, a lógica é invertida – e More mantém o tempo todo a noção de que ela é uma sociedade das trevas, como mostra o nome de sua capital (Amaurot, capital da escuridão); a sua eutopia é uma distopia que, mais cedo ou mais tarde, será consumida pela entropia da morte. Desse último fato – a indesejada das gentes – ninguém escapará e tanto Agostinho como More tinham uma consciência aguda disso, mesmo se a cidade de Deus descesse dos céus.
A mesma noção trágica da existência humana ocupa a mente de Platão em sua A República– na verdade, o seu título é Politeia (algo como A Constituição ou O Paradigma), outra influência na obra de More. O desejo do aventureiro Hitlodeu de perdurar o “estado de bem-aventurança” de Utopia em outros países europeus é uma das referências moreanas ao diálogo platônico, em especial ao famoso conceito de que a cidade ideal imaginada por Sócrates e Glauco, em sua conversa sobre a justiça, não passa de um “modelo criado por pensamentos (logoi)”. Em grego, “pensamento” tem similaridade com “palavra” (logos) e também com “sentido”. Portanto, a república de Sócrates é uma sociedade que jamais existirá no mundo real porque seu “sentido” é formado apenas de “palavras” ou de “pensamentos”.
Aqui, Platão dá as mãos a Santo Agostinho – e, de certa forma, Thomas More concordava com eles por meio da criação em “palavras” de sua sátira utopiana. Para Platão, o paradigma da sociedade ideal sempre estará na tensão (metaxo) entre o que pode ser feito e o que deve ser feito, entre o ideal e o real, mas, sobretudo, entre a vida e a morte. Um bom estadista só terá domínio do seu “governo particular” se se espelhar no céu; mas, para isso, é necessário fazer como Sócrates: enfrentar a morte e o nada como condições primordiais de sua humanidade e descer às profundezas do Hades, do inferno e da destruição que habitam dentro de cada um de nós. Não por acaso, a palavra que abre A República é o verbo katebein, que, em grego, significa aproximadamente “desci”.
O que More acrescenta à tradição reflexiva de Platão e Agostinho sobre os rumos da sociedade ideal é a percepção aguçada da recusa deliberada da realidade. O filósofo grego e o santo africano aceitavam a morte como parte constituinte de nossas vidas; já More percebia uma nova tendência que depois seria a norma da modernidade, através da persona de Raphael Hitlodeu: o desejo de não aceitar a morte – mesmo que ela esteja presente em todos os lugares, principalmente naqueles que o mundo dos sonhos criou. E quando se imagina possível alcançar um mundo melhor através do caminho dos sonhos, a única coisa a se esperar é uma contínua exortação ao nada. Para quem não suporta a tensão implacável da existência, trata-se da escolha mais confortável, uma vez que suprime a vontade de reformar o cosmos e o substitui por um otimismo ou por um pessimismo que tenta imitar a negação do mundo. Assim, os sonhos podem ser voltados para um passado que já não existe mais ou então para um futuro que se insinua nos nossos anseios mais íntimos. Em ambos os casos, trata-se de uma nostalgia pelo paraíso que culminará na adoração por mundos imaginários – as utopias e as distopias literárias que contaminarão o nosso imaginário moderno.
Portanto, se a utopia era um reflexo distorcido do mundo real, podemos afirmar sem dúvida que, na verdade, o germe distópico sempre esteve presente no próprio gênero literário que supostamente se opunha a ele. A utopia é também uma distopia e vice-versa, mas, no caso desta última, ela leva ao extremo as consequências morais que implicam aceitar a perfectibilidade do homem não só como mera especulação ficcional, mas sobretudo levando em conta as verdadeiras implicações da mudança de eixo no modo como é analisada a natureza humana.
Com base nessas implicações, os escritores distópicos centram as suas críticas ao progresso perfectibilista em três pontos: (1) a impossibilidade na busca de uma linguagem perfeita que unifique a sociedade e que elimine as ambiguidades entre os relacionamentos (a novilingua de1984); (2) o perigo de ter todas as relações sociais matematizáveis completamente, expandindo-se em todos os estratos e castas (a eugenia de Admirável Mundo Novo); e (3) a manipulação tecnológica da vida íntima dos seres humanos, sempre tendo como desculpa a procura e a realização perpétua da felicidade (a razão principal para a destruição sistemática dos livros no Fahrenheit 451, de Ray Bradbury).
Esses três fatores convergem para a meta suprema que todos os distópicos reiteram quase obsessivamente: a busca pela perfeição humana enquanto nos encontramos nesse mundo precário e frágil, identificada tão somente com a perfeição técnica, excluindo outros estratos e outras complexidades da nossa própria natureza.
Agora, resta fazer a pergunta: mas tudo isso seria ruim para nós? Ninguém duvida de que o progresso tecnológico, se bem usado, traz benefícios a todos – é só vermos as vantagens da medicina no avanço de diagnósticos e tratamentos delicados e o próprio avanço nos meios de comunicação, seja a televisão, a Internet ou a telefonia celular, que possibilitam novas formas de interação e de rapidez na hora de transmitir qualquer espécie de informação. O problema é que a discussão sobre as benesses ou as desvantagens do progresso é, no fundo, uma discussão falsa porque, se insistirmos apenas nas vantagens evidentes de todo esse fenômeno que mal conseguimos explicar aos nossos contemporâneos, perderemos de vista de que o fundo do debate é algo intangível, quase impossível de ser visto por nossas sensibilidades materialistas. Trata-se da tensão que há entre aperfectibilidade e a maleabilidade do ser humano.
Como bem explica John Passmore em seu clássico A perfectibilidade do homem[1], nós podemos ser maleáveis, i.e., nos adaptarmos conforme certas circunstâncias exteriores, como históricas, sociais e biológicas, mas não podemos ser perfectíveis, ou seja, alterarmos aquilo que é a nossa “natureza humana”, o que nos caracteriza de forma estável e constante – os nossos “sentimentos morais”, segundo Adam Smith, nossas paixões, nossos vícios e nossas virtudes. A crença na ideia de progresso provoca uma confusão entre a maleabilidade e a perfectibilidade – e assim temos um vácuo ético alimentado em especial por cientistas e intelectuais que, geralmente atuando como “lacaios do poder”, pensam que podem nos educar como se fossemos “uma folha em branco”. Ao mesmo tempo, temos de tomar cuidado com a crítica ao progresso porque, por outro lado, ela é também uma espécie de perfectibilidade ao contrário, já que os distópicos não acreditam que o ser humano pode, de facto, adaptar-se às circunstâncias e alterar o seu destino que antes seria sombrio. O determinismo que nos paralisa a respeito de nossas próprias forças e fraquezas é também um reducionismo pueril que deve ser evitado a qualquer custo, até pela simples razão de que, segundo o alerta do escritor norte-americano Thomas Pynchon, a verdadeira eficácia de um profeta não é a validade de suas previsões, mas a sua capacidade de mergulhar e descobrir novas luzes no abismo da alma humana.
Dessa forma, não podemos manter a nossa ingenuidade em relação ao fascínio que temos com a ideia de progresso, seja em uma perspectiva positiva ou negativa. Esta fascinação foi dissecada brilhantemente por Marshall McLuhan em Understanding media: the extensions of man, livro que influenciou boa parte o estudo de tecnologia e cultura nos anos 1960 e 1970, mas que não foi bem compreendida por seus acólitos[2]. Para o canadense, os meios tecnológicos já afetavam a nossa vida, independente das intenções de cada um e provocavam o seguinte fenômeno – o do “Narciso como narcose” (Narcisius as narcosis), em que o objeto é uma extensão do homem que o detém justamente porque ele não percebe que se tornou o seu reflexo, vivendo naquele completo desconhecimento de si mesmo que René Girard chamaria de méconnaisance. Eles se tornaram um fato do qual não podemos mais retirá-los da realidade – e os meios tecnológicos alteraram a nossa percepção do real, justamente porque temos a maleabilidade necessária para isso acontecer sem sermos surpreendidos. Um exemplo disso é retratado por Nicholas Carr em seu best-seller Theshallows (2010), onde ele mostra detalhadamente como a Internet alterou a nossa forma de conhecer o mundo e o conhecimento em geral[3].
O resultado é que temos então uma idolatria da tecnologia, na qual o ser humano fica completamente dependente da Máquina (sim, assim mesmo, com M maiúsculo), descolando-se e distanciando-se da experiência concreta do real. No conto The Machine Stops (1923), de E.M. Forster, temos a descrição de como a História foi alterada para boa parte da população de um futuro distópico quando esta conhece o que aconteceu na Revolução Francesa a partir tão somente dos relatos de estudiosos que interpretaram o fato, nunca de depoimentos originais de pessoas que o vivenciaram no meio do turbilhão. O admirável mundo novo criado por Forster é um cosmionfechado, um pequeno mundo completamente mediado apenas por objetos e pessoas que se comportam como artífices, em que a Máquina – o nome dado para o misterioso sistema que organiza a vida de todos – força as pessoas a viverem em um lugar, conforme diz um dos personagens, onde a luz uniformiza as saudáveis habitações do subterrâneo e onde eles simplesmente perderam a noção do espaço como uma forma de se diferenciar do próprio corpo[4].
O comentário acima explicita algo que McLuhan afirmava que já existia no presente que vivemos: o de que, com o surgimento da eletricidade (talvez o meio tecnológico mais evidente e, ao mesmo tempo, mais próximo do ordinário – tanto até que só sentimos falta dele quando ele para de funcionar), a luz permitiu que não soubéssemos mais o que é o dia e o que é a noite. Vivemos em plena indiferenciação, em uma “aldeia global” onde, graças à “luz que brilha nas trevas”, aparentemente estamos em uma era repleta de inovação e de racionalidade, mas na verdade voltamos à época do mito, da tribo, do primitivismo que não se importa mais com a causa e com o efeito – e sim com o todo que podemos apreender por meio dos nossos sentidos, mas não conseguimos compreender por meio das nossas faculdades suprarracionais, entre elas a intuição, transformando a Era da Tecnologia em que estamos em uma pseudo-religião travestida de racionalismo, incapaz de compreender os corações e as mentes de todos nós.
Conseguiremos escapar desse impasse da indiferenciação, no qual todos são iguais a todos e que, em breve, provocará o início da “guerra de todos contra todos”? De acordo com Marshall McLuhan, a resposta é afirmativa – e quem pode nos ajudar a sair desse pântano seria o artista, aquele que, inspirado pelo poeta Wyndham Lewis, “está sempre empenhado em escrever a minuciosa história do futuro porque ele é a única pessoa consciente da natureza do presente”. McLuhan não hesita em afirmar que, em um mundo onde a violência tecnológica é cada vez mais sutil, disfarçada em uma espécie de servidão voluntária para cada um de nós, e que prova que o curso da História não passa nada além de “uma longa série de diretos no queixo” da raça humana, o artista é “o homem da consciência integral”. Ele é extremamente necessário para a sobrevivência humana, é o sujeito “que, em qualquer campo, científico ou humanístico, percebe as implicações de suas ações e do novo conhecimento de seu tempo”, corrige “as relações entre os sentidos antes que o golpe da nova tecnologia adormeça os procedimentos conscientes”, antes que se manifestam “o entorpecimento, o tateio subliminar e a reação”. O artista ensina a sociedade, se esta o compreender corretamente, a como se deve “desviar do golpe”, já que, no nosso presente repleto de racionalidade, a arte deve ser vista pelo o que é – a “informação exata para reordenação das mentes”, sempre pronta para antecipar o próximo golpe que a História nos dará e que será vibrado para “as nossas faculdades projetadas para fora”.
Todavia, nem sempre conseguimos escapar do “direto no queixo” – e, muitas vezes, quem faz isso para nós é justamente o mesmo artista que deveria nos ajudar a sair do impasse de sermos iguais em absolutamente tudo. Se insistirmos na importância da arte, em detrimento do princípio ético que fundamenta nossas ações, corremos cair no risco de uma nova distopia que se torna cada vez mais real: a da tirania do artista – e, com isso, vivermos integralmente em uma Segunda Realidade.
Porque quem se dedica ao daimon da arte vive o perigo de criar uma Segunda Realidade que substitua a Primeira Realidade, fundamentada no senso comum e na persuasão racional, para que a sua atitude de recusa seja aceita como algo completamente normal e factível[5]. A princípio, pode-se entender tal atitude como uma brincadeira, um mero jogo da imaginação, mas as conseqüências podem ser desastrosas para a psique do indivíduo que insiste nesse real alternativo e que, pouco a pouco, começa a acreditar que é a única realidade existente. Eric Voegelin explica com clareza o movimento interior de quem começa a confiar demais no mundo dos sonhos e entra em conflito com a “indesejada”:
“Tal conflito pode ser rastreado a partir da discrepância dos conteúdos entre as realidades imaginadas e experimentadas, através do ato de projetar uma realidade imaginária, até o homem que se permite tal ato. Em primeiro lugar, sobre a questão dos conteúdos, uma realidade projetada pela imaginação pode deformar ou omitir algumas áreas da realidade experimentada; podemos dizer que a realidade projetada esconde ou eclipsa a Primeira Realidade. Partindo dos conteúdos para o ato, logo podemos distinguir a intenção do homem que eclipsa a realidade. Esta intenção pode se manifestar numa variedade ampla de formas, indo da mentira sobre um fato à uma mentira mais sutil ao arranjar um contexto de tal maneira que a omissão do fato nunca será percebida; ou então da construção de um sistema que, por sua forma, sugere uma visão parcial do todo da realidade na recusa de seu autor em discutir as premissas do sistema em relação à realidade experimentada. Finalmente, além do ato, alcançamos o ator, isto é, o homem que cometeu o ato de deformar a sua humanidade a um self e agora deixa que o self reduzido eclipse toda a sua própria realidade. Ele negará a sua humanidade em insistir que não é nada senão o seu self reduzido; negará sempre que experimentou a realidade da experiência em comum com outras pessoas; negará que qualquer um pode ter uma percepção mais completa da realidade a não ser aquela que seu self permitir; em resumo, terá o seu self contraído como um modelo único para si mesmo assim como para todos os outros. Além disso, a sua insistência em conformar os outros à sua realidade chegará próxima da agressão – e nela ele trai a ansiedade e a alienação do homem que perdeu qualquer contato com a realidade”[6].
A tirania do artista é apenas mais uma das maneiras estratégicas da Segunda Realidade, dominada por uma pneumopatologia, impor-se sobre a realidade da razão e dos sentidos concretos. Existem, claro, outras variações, como as das ideologias políticas, as dos narcóticos e até mesmo do divertimento inconsequente, que invadem também o nosso cotidiano e que também provocam outros fatos sem volta. São as desilusões que ocorrem quando as pessoas que acreditam em seus mundos paralelos vêem que estes não passam de castelos construídos sobre a areia. Novamente, é Voegelin quem faz uma análise acurada desse fenômeno e como isso afeta a nossa vida nos mínimos detalhes:
“A desilusão com esta ou aquela ideologia, a conversão escapista de uma para outra, ou um cinismo em relação a qualquer uma são todos fenômenos comuns. Se, por um lado, um homem divorcia-se da realidade através de ‘opiniões’ e de experiências que seu self contraído não consegue suportar, por outro ele não consegue voltar à existência na verdade, porque está habituado a viver na existência desordenada e isso se tornou tão forte que sua energia espiritual não pode quebrar; ou porque até mesmo o acesso ao conhecimento da verdade está barrado pela pressão social que o envolve na autoridade da ignorância institucionalizada nos estabelecimentos educacionais, nos meios de comunicação e na opinião pública. O resultado é que ele deve se voltar às origens de sua vitalidade animal se quiser recuperar uma forma de vida que possa ser experimentada como real. A sua vida assumirá então certas formas comportamentais como libertinagem, hedonismo, o culto da violência, auto-destruição, vandalismo e até mesmo a mais explícita criminalidade. Se a sua vitalidade animal falhar, este homem descerá ainda mais – por exemplo, ao estupor de assistir televisão – ou ele poderá ter que tomar drogas para “atiçá-lo” numa existência que foi eliminada além de qualquer esperança, ou então encontrará o seu caminho numa neurose clínica. Esse fenômeno vislumbrado, muito comum em nossos tempos, deve ser compreendido como uma forma extrema de desintegração existencial sob a pressão de um ambiente social onde a verdade da realidade foi substituída com sucesso pela autoridade da ignorância”[7].
Estas desintegrações da alma são evidências empíricas que talvez há muita razão quando ouvimos um Roger Kimball afirmar que as utopias e as distopias não passam de “experimentos contra a realidade”[8]. Todas as tentativas de amputar a tensão que existe no real, o metaxo do qual Platão falava na sua Politeia, definido como a busca erótica pela sabedoria, só resultaram em uma intoxicação da modernidade que eclipsou a consciência humana, com resultados terríveis para a história do Ocidente: os campos de concentração nazistas, os gulags soviéticos, as experiências genéticas inspiradas por uma eugenia utópica e, last but not least, a bomba atômica.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset tinha uma frase lapidar sobre essas atitudes: “A realidade é de um gênio tão atroz que não tolera o ideal nem mesmo quando ela própria é idealizada”. Queremos mudar o real porque desejamos evitar os “diretos no queixo”, mas isso nem sempre é possível. Por outro lado, ao criarmos nossas utopias e distopias, temos que ter plena consciência que estamos apenas fazendo nossas exortações ao nada ou dando boas vindas à uma máquina que nos triturará em um futuro próximo. Afinal, viver na verdade, no mundo concreto onde todos nós nos encontramos, é sempre muito mais interessante do que continuar no território da ficção – e este só tem validade quando este decide ser um reflexo elaborado do que acontece na nossa vida interior. Viver sob o efeito do nada pode ser divertido por algum tempo – mas saiba que, quando este tempo expira, a única coisa que nos resta é ver tudo sob a perspectiva de uma “escuridão visível” [darkness visible] da qual ninguém quer encarar no final da nossa trajetória.
[1] Cf. PASSMORE, John. A perfectibilidade do homem. Topbooks, RJ, 2007.
[2] McLUHAN, Marshall. Understanding media: the extensions of man, MIT Press, 1994.
[3] CARR, Nicholas. The Shallows, Norton Press, 2010.
[4] FORSTER, E.M. The machine stops, Penguin Books, 2012.
[5] Os termos Primeira e Segunda Realidades, inspirados em Robert Musil, foram expostos por Eric Voegelin em seu ciclo de palestras chamado Hitler e os Alemães, publicado pela É Realizações em 2008, trad. Elpídio Dantas da Fonseca. Cf. págs.311-333.
[6] VOEGELIN, Eric. “The Eclipse of Reality”, in: What is History and other late unpublished writings, University of Missouri Press, 2005, pág. 112. Aqui, Voegelin usa o termo self no sentido da consciência imanente que se retrai a partir do momento em que o homem não consegue suportar o choque da tensão do real.
[7] VOEGELIN, Eric. “The Eclipse of Reality”, in: What is History and other unpublished and late writings, Missouri Press, 2005, págs. 155-156.
[8] Cf. KIMBALL, Roger. Experiments against reality – the fate of culture in the postmodern age. Ivan R. Dee Publisher, 2002, 358 páginas.
[Este ensaio desenvolve vários temas já abordados em Crise e Utopia: O dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e que serão desenvolvidos, sob a perspectiva nacional, no meu próximo livro, A Poeira da Glória - Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Editora Record, com previsão de lançamento entre Setembro e Outubro deste ano). Ele foi publicado à parte na edição especial do livro Sob o Efeito do Nada, de Andy Nowicki, editado por Rodrigo Simonsen e publicado recentemente pela Editora Realejo]