sábado, 1 de março de 2014

O drama da sentença - Discussão da Pena de Morte em Dostoiévski



"Traga um soldado, coloque-o diante de um canhão em uma batalha e atire nele, ele ainda vai continuar tendo esperança, mas leia para esse mesmo soldado uma sentença como certeza, e ele vai enlouquecer ou começar a chorar"

Os autores geralmente costumam exorcizar suas ideias em seus livros, seja de forma explícita ou implícita através, por exemplo, em diálogos entre personagens.
Fiódor Dostoiévski é um autor muito comentado por seus personagens marcantes. Esses personagens, ora ou outra, se mostram como meios que o autor encontrou para opinar sobre a sociedade russa, os valores, a religião, a filosofia etc.
Também conseguimos notar temas bem específicos sendo discutido em sua obra como a pena de morte.
A ideia que Dostoiévski faz da pena de morte é, certamente, muito influenciada pela sua própria biografia.
Havia na Rússia um grupo de discussão literária formada por intelectuais progressistas chamado "Circulo Petrashevski", organizado por Mikhail Petrashevski, um seguidor de Charles Fourier, um socialista utópico francês da primeira parte do século XIX que tinha ideias anti-conservadoras.
Dostoiévski notoriamente fazia parte deste grupo.
O Círculo Petrashevski, apesar de não haver qualquer ponto de vista uniforme em política, a maior parte se opunham à autocracia do Tsar e ao sistema de semi-servidão que havia na Rússia.
Acusados pelo czar Nicolau I de atitudes subversivas e preocupado com a onda de revoluções que aconteciam na Europa, especialmente a Revolução de 1848, ou Primavera dos Povos (como é conhecida, um conjunto de revoluções, de caráter liberal, democrático e nacionalista, iniciado por uma crise econômica na França) os membros do grupo foram detidos e alguns foram fuzilados.
Dostoiévski foi detido e preso em 23 de abril de 1849. Passou oito meses na Fortaleza de Pedro e Paulo até que, em 22 de dezembro, a sentença de morte por fuzilamento foi anunciada. Em 23 de dezembro, os membros detidos junto com Dostoiévski foram levados ao lugar da execução, e três membros do grupo, inclusive o próprio Petrashevski, foram amarrados aos postes em frente ao pelotão. Dostoiévski era um dos próximos.
Felizmente antes da ordem para o fuzilamento, chegou uma ordem do Czar para que a pena fosse comutada para prisão com trabalhos forçados e exílio. Depois os membros souberam que a ordem havia sido assinada há dias, mas que o Czar exigira a falsa execução como uma punição a mais.
Essa experiência vai marcar para sempre a mente de Dostoiévski.

Em seu livro "O Idiota", romance escrito entre os anos de 1867 e 1868, se encontra muito desse elemento traumático. Dostoiévski busca em um dos diálogos proferidos pelo príncipe Míchkin (o personagem central do livro) suas ideias sobre a pena de morte.

Segue abaixo um trecho que o príncipe descreve uma pena de morte por guilhotina:

"(...) O criminoso era um homem inteligente, destemido, forte, já entrado em anos, Legrot era seu sobrenome. Pois bem, como estou lhe contando, acredite o senhor ou não, quando subiu ao patíbulo começou a chorar, branco como uma folha de papel. Pode uma coisa dessas? Por acaso não é um horror? E quem é que chora de pavor? Eu nem pensava que pudesse chorar de pavor que não é criança, um homem que nunca havia chorado, um homem de quarenta e cinco anos. O que acontece com a alma nesse instante, a que convulsões ela é levada? É uma profanação da alma e nada mais! Está escrito: "Não matarás", então porque ele matou vão matá-lo também? Não, isso não pode. Pois bem, já faz um mês que assisti àquilo, mas até agora é como se estivesse diante dos meus olhos. Já sonhei umas cinco vezes. (...)"

Em outra parte o príncipe (ou o autor) começa a divagar sobre o drama da sentença em uma reflexão muito interessante:

"(...) Essa mesma observação que o senhor fez todo mundo faz [A observação foi "Ainda bem que o sofrimento é pouco depois que cortam a cabeça"], e a máquina, a guilhotina, foi inventada com esse fim. Mas naquela ocasião me ocorreu uma ideia: e se isso for ainda pior? O senhor acha isso engraçado, até um pensamento como esse pode vir à cabeça. Reflita, por exemplo, se há tortura; neste caso há sofrimento e ferimentos, suplício físico e, portanto, tudo isso desvia do sofrimento moral, de tal forma que você só se atormenta com os ferimentos, até a hora da morte. E todavia a dor principal, a mais forte, pode não estar nos ferimentos e sim, veja, em você saber, com certeza, que dentro de uma hora, depois dentro de dez minutos, depois dentro de meio minuto, depois agora, neste instante - a alma irá voar do corpo, que você não vai ser mais uma pessoa, e que isso já é certeza; e o principal é essa certeza. Eis que você põe a cabeça debaixo da própria lâmina e a ouve deslizar sobre sua cabeça, pois esse quarto de segundo é o mais terrível de tudo. O senhor sabe que isso não é fantasia minha, que muitas pessoas disseram isso? Eu acredito tanto nisso que lhe digo francamente qual é a minha opinião. Matar por matar é um castigo desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam, que é esfaqueado à noite, em um bosque, ou de um jeito qualquer, ainda espera sem falta que se salvará, até o último instante. Há exemplos de que uma pessoa está com a garganta cortada, mas ainda tem esperança, ou foge, ou pede ajuda. Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com o qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com certeza, não se vai fugir a ela, reside todo terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo. Traga um soldado, coloque-o diante de um canhão em uma batalha e atire nele, ele ainda vai continuar tendo esperança, mas leia para esse mesmo soldado uma sentença como certeza, e ele vai enlouquecer ou começar a chorar. Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil? Pode ser que exista um homem a quem eram uma sentença, deixaram que sofresse, e depois disseram: "Vai embora, foste perdoado" [Observação: O próprio Dostoiévski passou exatamente por isso]. Pois bem, esse homem talvez conseguisse contar. Até Cristo falou desse tormento e desse pavor. Não, não se pode fazer isso com o homem!"

Concluíndo

Com uma forte experiência biográfica temos que Dostoiévski considera a pena de morte uma subversão tremendamente imoral até mesmo para um criminoso que tirou a vida de um inocente. O poder desconcertante da sentença é uma agressão desproporcionada e injusta pois violenta a alma e isso deve ser evidtado a todo custo.

Uma referência para Dostoiévski vem do próprio Cristo (uma figura essencial no universo do autor).
Jesus Cristo, o próprio Deus encarnado, viveu o seu pior drama não na via crucis mas na lamentação no jardim do Getsémami, onde parou para refletir o seu próprio destino:

"Então lhes disse: A minha alma está profundamente triste até à morte... Adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu pai, se possível, passa de mim este cálice! Todavia não seja como eu quero, e, sim como tu queres" (Mateus, cap.26, vv.38-9).

Se o próprio filho de Deus se contorceu em lágrimas aflitas, mesmo sabendo da sua ressurreição, nenhum outro homem seria capaz de suportar mesmo suplício.

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