Até que venha o tempo de mostrar-se;
Mas não deixes no mar as ilhas, onde
A natureza quis mais afamar-se;
Esta meia escondida, que responde
De longe à China, donde vem buscar-se,
É Japão, onde nasce a prata fina,
Que ilustrada será co’a Lei divina.
(Os Lusíadas, Canto X, CXXXI)
O sistema educacional brasileiro, refém da máfia dos cursinhos, se limita a explorar a História do Japão a partir do seu processo de industrialização na segunda metade do século XIX. Menciona a Restauração Meiji, os zaibatsus e o holocausto nuclear no final da Segunda Guerra, pois caso caia alguma questão sobre o país em algum vestibular, o assunto não fugirá desses três temas. Se alguém teve a felicidade de conhecer algo a mais, deve isso ao professor ou ao seu interesse particular. Por conta disso, ficamos com uma perspectiva não apenas pequena mas também antiquada da História do velho Yamato. É quase um consenso que o processo de ocidentalização do país se deu quando os Estados Unidos obrigaram o país a abrir suas fronteiras para o comércio exterior em 1853. Era até mesmo no Japão. A Historiografia, porém, está revolucionando alguns pontos nas últimas décadas e o Japão não está excluído desse onda. Estudos, ainda em execução, estão contrariando as verdades de ontem e evidenciando que o processo de ocidentalização não foi iniciado pelos americanos, foi por eles apenas corroborado e escancarado. A primeira semente de cunho ocidental (científica) teria sido plantada no arquipélago milenar pelos portugueses, mais especificamente pelos padres jesuítas, nos séculos XVI e XVII.
É fato conhecido que Portugal, até então dono do monopólio comercial marítimo, foi o primeiro país europeu a entrar em contato com o Japão ainda no século XVI com dois objetivos declarados, comerciais e religiosos, na ânsia de reverter o estrangulamento comercial do Mediterrâneo e cristianizar os novos mundos. Fluíram para o solo nipônico uma infinidade de mercadores lusitanos e missionários da Companhia de Jesus. Historiadores de prestígio, incluindo George Sansom, sempre afirmaram que apesar de Portugal, e posteriormente, Espanha, Holanda e Inglaterra, terem introduzido algumas inovações na sociedade japonesa, como a arma de fogo, a influência ocidental desse período seria um capítulo menor na multimilenar história japonesa, servindo como uma breve nota de rodapé sem expressão, principalmente pela repressão movida contra o Cristianismo no período Tokugawa (1603 - 1868). Essa visão está mudando.
Pretendo, com esse post, mostrar como se procedeu a presença lusitana no Japão, explicar a razão da expulsão dos ocidentais para, enfim, detalhar como os portugueses (e posteriormente os holandeses) deram o primeiro passo na ocidentalização do país. Aviso de antemão, o foco do texto é História, ele pode ficar truncado em alguns momentos e exigir um repertório mínimo do assunto para melhor compreensão. Farei o possível para tornar o texto mais fluido, mas não abrirei mão da carga informativa.
O Japão católico
Nossos irmãos da Europa tiveram uma sorte grande quando aportaram no Japão. Esse pequeno país insular e exótico, que conhecia e mantinha relações comerciais apenas com China, Coréia, Índia e algumas regiões do sudoeste asiático, estava numa crise interna muito significativa. Costurado por guerras feudais, em crise diplomática com China e Coréia, o caminho para novos parceiros de negócios estava aberto para os portugueses. Se o comércio de Lisboa foi muito bem vindo, o Cristianismo cunhado no outro lado da moeda portuguesa também foi inicialmente bem recebido. Calcula-se que no chamado Século Cristão, entre 800 mil a 1 milhão de japoneses se converteram ao catolicismo, quando a população do país era estimada em 20 milhões. Estão nessa gama inclusive muitos daimios, alguns apenas para agradar os portugueses, outros abraçando a fé cristã para valer.
Existem várias explicações para a adesão maciça de uma religião importada em um país asiático e milenar. Citarei as apresentadas pelo livro Choque luso no Japão dos séculos XVI e XVII de José Yamashiro. Os líderes militares do país estavam com problemas de relacionamento com os mosteiros budistas e usaram o Cristianismo como uma ferramenta de represália interna; os jesuítas eram intelectuais e defendiam bem o Evangelho em japonês, mantendo uma postura moral irrepreensível, fato que contrastou com a corrupção e acomodação moral dos bonzos budistas na época, onde o Xintoísmo local estava em decadência e o Confucionismo ainda não havia conhecido seus melhores momentos (O Cristianismo encontrou um hiato na religiosidade local); os japoneses são muito receptivos com as culturas alheias e assimilam sem maiores problemas manifestações estrangeiras; além, é claro, da necessidade de agradar os novos parceiros europeus que não se contentariam apenas com o comércio, sem a pregação da fé cristã. Essa fonte de renda era essencial para bancar as guerras feudais e a unificação do país.
A expulsão dos missionários; A perseguição aos cristãos
A sorte do Cristianismo começa a mudar nas mãos dos artífices da unificação japonesa. Se Oda Nobunaga foi benevolente com os jesuítas, pois o conhecimento de mundo necessariamente vinha da Companhia de Jesus, Hideyoshi Toyotomi mudou essa postura, decretando a expulsão dos missionários das terras japonesas.
Nesse ponto da História, o Japão já era cobiçado pelas quatro potências marítimas europeias da época. Hideyoshi já estava muito bem informado sobre as reais intenções da aproximação lusitana. Sabia da submissão da China, Índia, Java, Sião e outras regiões às feitorias dos europeus, tinha conhecimento das guerras religiosas em curso no Velho Continente e fora informado sobre a grandeza do Império Ibérico na América. Ele calculou muito bem os riscos de permitir a penetração cristã no país. Se alguns daimios convertidos se unissem às potências dos Bárbaros do Sul (como ficaram conhecidos os europeus), o país, machucado por suas crises internas, corria o sério risco de cair em mãos estrangeiras. Nagasaki já estava em mãos católicas, onde os portugueses gozavam de poder de extraterritorialidade.
Com a chegada dos espanhóis chegaram juntos os franciscanos, agostinianos e dominicanos, entrando em conflito com os jesuítas no território japonês. Mais do que isso, com a chegada dos ingleses e holandeses vieram também os anglicanos e protestantes, tecendo intrigas sobre os católicos com os chefes militares. Pior, navios mercantes da Holanda e Inglaterra vinham preparados para canhonear navegações ibéricas no Mar do Japão. Toyotomi, e posteriormente o clã Tokugawa, não gostaram nem um pouco dessa projeção dos problemas europeus nos seus domínios e exigiram a expulsão de todos os religiosos cristãos. Seu descontentamento com os lusitanos foi alimentada pela recusa portuguesa de fornecer navios para ajudar o Japão na campanha militar contra a Coréia. Nesse período os primeiros mártires foram mortos no arquipélago.
O regime da família Tokugawa intensifica a repressão aos ocidentais, principalmente nas mãos de filho e neto de Ieyasu. O país se fechou politicamente em 1639, proibindo a saída ou a volta de japoneses, a entrada de estrangeiros e mesmo o comércio externo, reduzido a uma feitoria holandesa (que nesse ponto já levava vantagem sobre os decadentes portugueses) por onde se dava também o ponto de contato com a China. Tudo o que tinha relação com o Cristianismo foi predadoramente destruído. Pessoas eram mortas, livros queimados, crianças batizadas eram passadas no fio da espada. Missionários que continuavam entrando clandestinamente no Japão para pregar a fé cristã, já sabendo do seu trágico destino, eram barbarizados, torturados e mortos. A repressão ao Cristianismo foi implacável, situação explorada pela saga filler do Rurouni Kenshin, a saga dos Cristãos de Shogo Amakusa.
Essa repressão bem sucedida ao Cristianismo criou a impressão de aniquilação da influência ocidental no Japão da época, principalmente porque a documentação do período foi destruída por ordem dos Tokugawa. Isso está mudando, pois muitos documentos jesuítas guardados no Vaticano, Lisboa e Madri estão vindo a tona nos últimos anos. Os portugueses não deixaram no Japão apenas vinho ou igrejas, mas a semente do pensamento ocidental.
O legado dos jesuítas
Os jesuitas eram intelectuais, a despeito da visão deturpada que temos da ciência nos tempos áureos de Igreja Católica (ainda que os enviados ao Japão fossem bem inferiores aos enviados para a China, esses sim, de primeiro escalão educados em Roma). De todos os melhores matemáticos que a humanidade já conheceu, 5% pertenceu à Companhia de Jesus (sendo que ela durou apenas pouco mais de dois séculos). Nas universidades europeias, as quais, muitas das melhores diretamente vinculadas ao Vaticano, se desenvolveu a ciência ocidental.
Esses padres pensadores, como deixa claro o livro de Yamashiro anteriormente citado, apresentaram aos japoneses a visão de mundo ocidental, como o racionalismo, o empirismo e o humanismo, que exerceram enorme influência no pensamento nipônico, ainda preso às visões de mundo tradicionais e míticas dos chineses e indianos. Os japoneses, através dos jesuitas, "encontraram, ainda, pela primeira vez, uma concepção sistemática da natureza como objeto definido do conhecimento humano". E essa postura científica é sim derivada da religião, pois o Cristianismo, como os gregos, crê num universo ordenado, passível de observação e mensuração pela lógica humana (afinal, seríamos feitos a imagem e semelhança de Deus). Para o economista e historiador Thomas Woods, essa concepção ajudaria a justificar o fato das brilhantes sociedades chinesa e islâmicas não terem acompanhado o desenvolvimento científico ocidental. Foram muito inventivos, é verdade, mas o ambiente religioso deles não era favorável para o desenvolvimento maior das ciências abstratas, como a Física. Os árabes, que por muito tempo estiveram na frente do Ocidente, simplesmente estacionaram seu progresso intelectual, enquanto os cristãos deram sequência ao seu labor, seja na Europa, na América ou na China (e quero deixar bem claro aqui que não sou católico, tampouco cristão).
Os japoneses aprenderam com os portugueses - e posteriormente com os livros holandeses - o estágio técnico-científico da Europa. Assimilaram a Física, Astronomia, Geografia (os portugueses dominavam esses assuntos, também pela famosa Escola de Sagres), Medicina, Cosmogonia, além da Arte da Guerra e as Belas Artes da Renascença.
"Não há paralelo, passado ou presente, em qualquer país, para o conhecimento que a Europa tem de astronomia" (Yamagata Banko)
Shuntaro Ito, professor da Universidade de Tóquio, está entre os que defendem essa assimilação da ciência européia, das noções de empirismo, como a justificativa para o imediato desenvolvimento do Japão após a abertura dos portos forçada pelo Comodoro Perry da Marinha Americana. Isso justificaria a supremacia japonesa na Ásia. Seus intelectuais e homens da ciência já estavam habituados com as noções técnico-científicas que levaram a Europa ocidental e os Estados Unidos para o topo do mundo. Eles conseguiram assimilar as novidades do século XIX com uma velocidade inédita, não perderam tempo com divagações confucionistas. Em poucas décadas de extenuante dedicação para alcançar o Ocidente, atingiram o ponto de potência colonialista do continente e deram uma surra no Império Russo, fato que espantou o mundo. O poderio econômico e tecnológico do Japão dos nossos dias deve, muito mais do que se suporia, à corte de Lisboa e aos padres lusitanos do século XVI (não apenas, pois tinham italianos e espanhóis também entre os representantes da Companhia de Jesus no Japão).
Vejam o depoimento de Nishikawa Joken em 1712 - muito após a expulsão dos ocidentais, e muito antes da abertura política - na obra Discussões sobre os princípios da Astronomia. A semente, definitivamente, estava plantada:
"Os portugueses e holandeses são mestres na arte da navegação. A sua técnica é superior à da China. Embora nós não naveguemos nos oceanos ou até muito longe, temos que admitir que a geografia é um ramo da astronomia, e que por meio da geografia podemos medir e provar muitas coisas em astronomia, por exemplo, o meridiano, o equador, a eclíptica, as estações, as durações da noite e do dia, e que todas estão apoiadas em medidas geográficas."
Os jesuítas presentes no Japão criaram escolas, construíram Santas Casas, onde tratavam os pacientes (incluindo leprosos) ao modo ocidental, inseriram a cirurgia, ensinando as práticas aos que mostravam interesse. Frequentemente organizavam debates de argumentação lógica com os bonzos e intelectuais japoneses, justamente ao modo de São Tomás de Aquino (profundo conhecedor da Filosofia Grega), um dos maiores intelectuais que esse mundo conheceu. E ensinam nas escolas que a Igreja pregava a ignorância. O primeiro a defender a importância dos estudos jesuítas na ciência japonesa foi Mikami Yoshio, o mais prolífero historiador japonês da ciência.
Palavras oriundas do português que são usadas no Japão:
Kappa = Capa; Shabon = Sabão; Koppu = Copo; Castera = bolo de Castela; Pan = Pão; Kabocha = Abóbora da Camboja; Tempura = Tempero
Gravuras
Fontes:
Choque Luso no Japão dos séculos XVI e XVII - José Yamashiro
O Kenkon Bensetsu e a Recepção da Cosmologia Ocidental no Japão do séc. XVII - Henrique Leitão e José Miguel Pinto dos Santos
The Introduction of Western Cosmology in Seventeenth-Century Japan: The Case of Christovao Ferreira - Shuntaro Ito
Postagem original: http://otakismo.blogspot.com/2011/08/ocidentalizacao-do-japao-uma-semeadura.html
Imagens: http://www.theapricity.com/forum/showthread.php?t=22809