sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O governo do homem vulgar


O novo fato social que aqui se analisa é este: a história européia parece, pela primeira vez, entregue à decisão do homem vulgar como tal. Ou dito em voz ativa: o homem vulgar, antes dirigido, resolveu governar o mundo. Esta resolução de avançar para o primeiro plano social produziu-se nele, automaticamente, mal chegou a amadurecer o novo tipo de homem que ele representa. Se atendendo aos defeitos da vida pública, estuda-se a estrutura psicológica deste novo tipo de homem-massa, encontra-se o seguinte: uma impressão nativa e radical de que a vida é fácil, abastada, sem limitações trágicas; portanto, cada indivíduo médio encontra em si uma sensação de domínio e triunfo que o convida a afirmar-se a si mesmo tal qual é, a considerar bom e completo seu haver moral e intelectual. Este contentamento consigo o leva a fechar-se em si mesmo para toda instância exterior, a não ouvir, a não pôr em tela de juízo suas opiniões e a não contar com os demais.

Sua sensação íntima de domínio o incita constantemente a exercer predomínio. Atuará, pois, como se somente ele e seus congêneres existissem no mundo; portanto, intervirá em tudo impondo sua vulgar opinião, sem considerações, contemplações, trâmites nem reservas; quer dizer, segundo um regime de "ação direta".

Este repertório de feições fez com que pensássemos em certos modos deficientes de ser homem, como o "menino mimado" e o primitivo rebelde; quer dizer, o bárbaro. (O primitivo normal, pelo contrário, é o homem mais dócil a instâncias superiores que jamais existiu - religião, tabus, tradição social, costumes). Não é necessário estranhar que eu acumule dictérios sob esta figura de ser humano. O presente ensaio não é mais que um primeiro ensaio de ataque a esse
homem triunfante, e o anúncio de que uns quantos europeus vão reagir energicamente contra sua pretensão de tirania.

Por enquanto trata-se de um ensaio de ataque: o ataque a fundo virá depois, talvez muito breve, em forma muito diferente da que este ensaio reveste, o ataque a fundo tem de vir de maneira que o homem-massa não se possa precaver contra ele, que o veja diante de si e não suspeite que aquilo, precisamente aquilo, é o ataque a fundo.

Este personagem, que agora anda por toda a parte e onde quer impor sua barbárie íntima, é, com efeito, o garoto mimado da história humana. O garoto mimado é o herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora a herança é a civilização - as comodidades, a segurança; em suma, as vantagens da civilização.

Como vimos, só dentro da folga social que esta fabricou no mundo, pode surgir um homem constituído por aquele repertório de feições, inspirado por tal caráter. É uma de tantas deformações como o luxo produz na matéria humana. Tenderíamos ilusoriamente a crer que uma vida nascida em um mundo abastado seria melhor, mais vida e de superior qualidade à que consiste, precisamente, em lutar com a escassez. Mas não é verdade. Por razões muito rigorosas e arquifundamentais que agora não é oportuno enunciar. Agora, em vez dessas razões, basta recordar o fato sempre repetido que constitui a tragédia de toda a aristocracia hereditária. O aristocrata herda, quer dizer, encontra atribuídas a sua pessoa umas condições de vida que ele não criou, portanto, que não se produzem organicamente unidas a sua vida pessoal e própria. Acha-se ao nascer instalado, de repente e sem saber como, em meio de sua riqueza e de suas prerrogativas. Ele não tem, intimamente, nada que ver com elas, porque não vêm dele. São a carapaça gigantesca de outra pessoa, de outro ser vivente, seu antepassado. E tem de viver como herdeiro, isto é, tem de usar a carapaça de outra vida. Em que ficamos? Que vida vai viver o "aristocrata" de herança, a sua ou a do prócer inicial? Nem uma nem outra. Está condenado a representar o outro, portanto, a não ser nem o outro nem ele mesmo. Sua vida perde inexoravelmente autenticidade, e converte-se em pura representação ou ficção de outra vida. A abundância de meios que está obrigado a manejar não o deixa viver seu próprio e pessoal destino, atrofia sua vida. Toda vida é luta, esforço por ser ela mesma.

As dificuldades com que tropeço para realizar minha vida são, precisamente, o que desperta e mobiliza minhas atividades, minhas capacidades. Se meu corpo não me pesasse eu não poderia andar. Se a atmosfera não me oprimisse, sentiria meu corpo como uma coisa vaga, fofa, fantasmática. Assim, no "aristocrata" herdeiro toda a sua pessoa vai se desvanecendo, por falta de uso e esforço vital. O resultado é essa específica parvoíce das velhas nobrezas, que não se assemelha a nada e que, a rigor, ninguém descreveu ainda em seu interno e trágico mecanismo - o interno e trágico mecanismo que conduz toda a aristocracia hereditária à sua irremediável degeneração.


A Rebelião das Massas - Jose Ortega y Gasset

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