domingo, 28 de dezembro de 2014

Filosofia do Estado em São Tomás - A Igreja e o Estado

De acordo com o mestre Del Vecchio, "com a filosofia escolástica verifica-se parcial regresso à filosofia clássica." Na verdade, verificou-se naquele contexto o que se poderia chamar de "redescobrimento", mais especialmente da filosofia grega, a qual, até então, mantivera-se desconhecida ou simplesmente ignorada. Tal "redescobrimento" angariou adeptos, fazendo com que retornasse esta filosofia a um lugar de destaque no meio filosófico. No entanto, seu estudo deu-se no sentido de compatibilizá-las com os dogmas religiosos : Esse é o seu caráter fundamental.

Neste contexto, passa Aristóteles a ser o grande mestre. Entretanto, dada a tendência dos escolásticos no sentido de adaptar seus ensinamentos aos dogmas religiosos, o que, diga-se de passagem, nem sempre foi tarefa fácil, muito perdeu em matéria de autenticidade.

Com esta retomada ao pensamento clássico, buscavam igualmente os escolásticos desenvolver os dogmas religiosos por meio de análises racionais, sem ultrapassar o limite devidamente imposto pela fé.

Considerado o grande sintetizador do pensamento cristão da Idade Média, Santo Tomás de Aquino foi o principal representante da Escolástica. Sua obra mais representativa, a Summa Theologiae, tradução maior do saber do seu tempo alçou-lhe ao posto de Mestre e Chefe doutrinal do catolicismo. Além dessa, escreveu outras obras, dentre as quais podemos citar o tratado De regimine principum, o qual, ao que parece, apenas o primeiro livro foi efetivamente de sua autoria, donde se vem deduzindo que os restantes foram autorados por um discípulo seu chamado Tolomeu de Lucca. ( Ptolemaeus Lucenis).

Acerca ainda dessa obra, faremos um apanhado mais detido no decorrer dessa dissertação, eis que se trata de obra atinente ao modelo estatal por ele defendido e das relações a ele inerentes.

Inobstante a já citada excepcional capacidade sintetizante de Sto.Tomás, tal não foi, contudo, seu único mérito. Santo Tomás é ainda o extraordinário realizador do consórcio entre a ciência, a filosofia e a religião. Necessário ponderar que, obviamente, tal realização não consistiu numa obra de sua exclusiva autoria, inobstante sua imensa contribuição. Com efeito, trata-se de obra lapidada pelos séculos, conquista de toda uma cultura milenar, que teve seu princípio já no Evangelho de São João (João, 1,1) onde percebe-se o aparecimento de uma série de termos e noções filosóficas inegáveis, a começar pela de logos, ou verbo. Dessa maneira é que João se volta para os filósofos para lhes dizer que aquilo que eles chamam de logos é o Cristo.

Na Patrística, vamos encontrar Santo Agostinho alcançar a fé por meio do idealismo platônico e explicá-la filosoficamente. Posteriormente, o contrato gradativo que os pensadores medievais passaram a tomar com a filosofia grega/arábe (Averróis, Avicena, e outros) foi ainda mais estreitando as relações entre filosofia e religião. Apenas com Santo Tomás de Aquino, todavia, é que se alcança a plenitude desse congraçamento, através de suas obras, mais especialmente da Summa contra gentiles e da Suma Teológica.

O esquema básico da doutrina social de Santo Tomás de Aquino é encontrada especialmente na segunda parte da Suma Teológica. Com efeito, ao tratar na segunda parte da maneira pela qual o homem deve voltar a Deus, que entende ser através da lei, é que se pode delimitar as linhas fundamentais do seu pensamento social.

Em consonância com a teoria tomista, a lei humana deveria ser obedecida ainda mesmo que contrariasse o bem comum, no intuito de manutenção da ordem. Contudo, não deveria ser obedecida se implicasse a violação da lei divina.

Nesse sentido, ao indagar se a lei se ordena sempre ao bem comum, assim leciona o Santo Doutor, verbis:

"Sendo o fim último da vida humana a felicidade ou a beatitude (cujo objeto é o sumo bem, soberano e infinito - Q.2, art.VIII), há de por força, a lei dizer respeito, em máximo grau, à ordem da beatitude.

Demais a parte ordenando-se para o todo, como o imperfeito para o perfeito; e sendo cada homem parte da comunidade perfeita, necessária e propriamente, há de a lei dizer respeito à ordem para a felicidade comum."

A referida idéia do homem como parte, estar subordinado ao todo social é expressa em termos bastante semelhantes por Aristóteles. A subordinação moral do indivíduo à sociedade, a superioridade metafísica e moral do corpo social sobre o individual, do bem comum ao bem particular é perfeitamente fundamentada, eis que "a sociedade desfruta, pois, de uma superioridade ontológica sobre o indivíduo. É graças a ela, com efeito, que o homem pode conservar-se, e expandir as fontes de sua natureza; o homem necessita do concurso da sociedade para ser plenamente homem. É graças a ela ainda que o homem pode desenvolver suas qualidades especiais e individuais como artesão, patrão, magistrado, homem político. Em uma palavra, a sociedade, na sua complexidade, realiza a perfeição máxima da espécie. Ela tem, pois, valor em si e por si; ‘Ela é soberanamente digna de ser amada’, e seu bem, sendo o bem da espécie, a coloca acima do bem dos indivíduos (1ª, Q. 50, IV, ad 3 um)"(Somme théologique; la justice, t.1, p. 222-3) in Delos, Notas. Santo Tomás. Tratado da justiça.

Neste contexto, o principal mérito de Santo Tomás consistiu no fato de não incidir no erro filosófico e experimental da diluição da pessoa dentro do contexto social. A superioridade do todo social só existe na medida em que proporciona as partes condições de, em conjunto, perfazendo o próprio todo, alcançar esse fim do modo mais perfeito. Assim, à autoridade social, na qualidade de representante desse todo, não é lícito exigir das partes subordinação naquilo que contrarie a ordem natural das mesmas partes relativamente aos fins a que se destinam. Entende assim Santo Tomás que toda lei contrária à razão ("magis esset iniquitas quam lex") é mais uma iniquidade que uma lei e, em tese, não obriga no foro da consciência. Assim:

"As leis injustas podem sê-lo de dois modos. Um modo, por contrariedade ao bem humano... e o podem ser: pelo fim, como quando um chefe impõe leis onerosas aos súditos...; ou também pelo autor, quando impõe leis que ultrapassam o poder que lhe foi concedido; ou ainda pela forma, p. ex., quando impõe desigualdade, ônus ao povo...E estas são, antes, violências que leis, pois como diz Santo Agostinho, não se considera lei o que não for justo.

Por onde tais leis não obrigam no foro da consciência, salvo, talvez, para evitar escândalo ou perturbações...(naturalmente, entendemos nós, quando isso venha a constituir um mal maior). De outro modo, as leis podem ser injustas por contrariedade com o bem divino...E tais leis de modo algum devem ser observadas, porque, como diz a Escritura, importa obedecer antes a Deus que aos homens."( 1ª, 2æ, Q. 96, IV, Resp.)

Dos muitos intérpretes da obra do Santo Doutor, talvez o que melhor compreendeu o alcance de seu pensamento no tocante à questão das relações entre o todo social e as pessoas que lhe são partes, é certamente Louis Lachance in L’humanisme politique de Saint Thomas, V.2, Parte 4, Cap. 19, onde conclui que o todo ali referido tratava-se do todo do tipo prático, que se realiza em função de um fim, em virtude da consecução de um bem. Na verdade, seria um conjunto de forças individuais, particulares, que se articulam e se unem sob uma ordem comum, no viso de produzir um fim transcendente, superior a todas as energias particulares das quais ela é produto. Na verdade, seria a junção das partes, que se unem sob uma direção comum, formando um todo, visando uma realização coletiva. Assim, cada pessoa, sem renunciar à procura do seu próprio bem, contribui com a sua força, fornece parte da sua energia, submetendo-se consciente e voluntariamente ao conjunto e à sua finalidade.

Ainda nesse sentido, coletamos a opinião abalizada de Olgiati, in Il concetto di giuridicitá in San Tomasso D’Aquino, que a esse respeito assim esclarece, verbis:

"A sociedade não é o Conde Ugolino que devora os seus filhos, nem pode transformar em escravos e brutos os seres racionais e livres. Do mesmo modo que não é próprio o caso de imolar o Estado no altar do arbítrio dos indivíduos e de uma falsa liberté, assim também não é lícito atirar os indivíduos às fauces do Leviathan. A razão é evidentíssima. Como, de fato, se explica a sociedade? Explica-se mediante as pessoas, que aceitam conscientemente um fim comum; e persiste por sua continuada adesão a esse fim. Se se tolhem as pessoas e a sua atividade humana, a sociedade perde a razão de ser, pois, subestimando a dignidade da pessoa , atinge a causa do seu próprio ser, se sua própria vida, negando-se e golpeando-se a si própria."

Parafraseando Aristóteles, Santo Tomás entende o homem, por natureza, animal social, pensamento que aflora literalmente na obra Regimine Principum conforme se verifica do abaixo transcrito, verbis:

"É todavia, o homem, por natureza, animal social e político, vivendo em multidão , ainda mais que todos os animais, o que se evidencia pela natural necessidade.

Realmente, às mais animálias preparou a natureza o alimento, a vestimenta dos pêlos, a defesa, tal como os dentes, os chifres, as unhas, ou pelo menos a velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem criado sem preparação de nada disso pela (própria) natureza, e, em lugar de tudo coube-lhe a razão, pela qual pudesse granjear, com as próprias mãos, todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja causa, não poderia um homem levar suficientemente a vida por si. Logo, é natural ao homem viver na sociedade de muitos. (...) Ora, não é possível abarcar um só homem todas essas coisas pela sua razão. Por onde é necessário ao homem viver em sociedade para que um seja ajudado por outro e pesquisem nas diversas matérias, a saber uns na medicina, outro nisto, aqueloutro noutra coisa."

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