domingo, 28 de dezembro de 2014
O Governo para São Tomas de Aquino
DA NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DO GOVERNO E DO MELHOR REGIME A SER ADOTADO
Sendo natural para Santo Tomás que o homem viva em coletividade, por ser de sua natureza a sociabilidade, necessário ainda lhe parece que "haja, entre os homens, alguém por quem seja governada a multidão," já que a fazer cada qual o que melhor lhe conviesse dispersar-se-ia a multidão pela diversidade de interesses, argumento para o qual cita como fundamento palavra de Salomão em Provérbios XI, 14, onde diz: "Onde não há governante, dispersar-se-á o povo." Assim, entendia Sto.Tomás que em tudo que se achasse ordenado a um todo, cumpria existir algo que o direcionasse. Comparava inclusive aos membros do corpo, onde havia um, o principal, que a todos movia, como o coração ou a cabeça. Necessário, portanto, que em cada povo houvesse um regente. Seria, portanto, o Estado, neste contexto, um produto natural derivado da índole social do homem, com a finalidade precípua de assegurar o bem comum.
No tocante às relações do Estado com a Igreja, entendia Santo Tomás estar ela dotada de fins sobrenaturais, de tal forma que inexistiria portanto uma subordinação do Estado à Igreja no sentido desta como "Estado superior". Tal subordinação se daria apenas e tão-somente nos limites da subordinação do "natural" ao "sobrenatural", tendo em vista que esta aperfeiçoaria àquela. Tal harmonização buscada entre o poder temporal e espiritual guarda similaridade com as harmonizações buscadas igualmente entre razão e fé, bem como entre teologia e filosofia.
Nesse sentido, transcrevemos abaixo, a título meramente elucidativo, trecho da obra Diccionario de Filosofia, de José Ferrater Moura, que assim esclarece, verbis:
"(...) y que la Iglesia es una institución que tiene fins sobrenaturales, de suerte que el Estado no debe subordinarse a la Iglesia como a un "Estado superior" pero sí subordinarse a ella en tanto que el orden natural está subordinado al orden sobrenatural y en tanto también que el orden sobrenatural perfecciona el orden natural."
Inobstante tais considerações, o ilustre Mestre Del Vecchio, em sua festejada obra "Lições de Filosofia do Direito", pág. 81, assim conclui, ipsis litteris :
"Mas a teoria tomista, mais do que por razões de ordem doutrinal, por motivos políticos concretos, veio a conhecer forte oposição. De facto, a intenção que nela se abrigava, era a de fazer da Igreja o único poder absoluto, sacrificando-lhe todas as restantes autoridades. Nesse sacrifício estava incluída a soberania do Estado."
No aspecto pertinente ao regime de governo, bem como às relações daí decorrentes, encontramos grandes subsídios no tratado já anteriormente referido, denominado De regimine principum, onde o Santo Doutor tecia inúmeras considerações acerca do governo, de sua necessidade, da melhor forma a ser adotada, das relações entre os soberanos e os súditos e primordialmente da finalidade a que este, o governo, se destinava.
Entendia Sto.Tomás que, como tudo destinado a um fim, sucedia um bom ou mau termo, da mesma forma, se dava com o governo: ser reto ou não-reto. Seria reto, quando se destinasse ao fim conveniente, que no entender do ilustre doctor angelicus seria o bem comum do povo. Destinado o governo a pretender somente o bem privado do regente, injusto e perverso seria tal governo. Governar, no dizer de Santo Tomás, "é conduzir convenientemente ao devido fim a coisa governada."
1 - OS MAUS GOVERNOS
Nesse sentido, classificava Sto.Tomás como maus governos em ordem crescente de rejeição, a tirania, a oligarquia e a democracia. A tirania seria o regime injusto feito por um só, a buscar seu próprio interesse em detrimento do interesse do povo. Fazendo-se, entretanto, não só por um, mas por vários, ainda que poucos (que por terem riquezas, oprimem o povo) está a oligarquia, que difere do tirano apenas em número. Estando o regime iníquo a ser regido por muitos, depara-se com a democracia, cujo sentido aqui empregado à palavra obviamente não condiz com o sentido hodierno com que é empregada, assemelhando-se, nesse contexto, à demagogia. Seria, no caso, a opressão dos ricos, pelo poder da multidão, onde o povo assumia o papel de tirano.
2 - OS BONS GOVERNOS
No mesmo sentido, cumpria fosse feita a distinção tocantemente ao regime reto. Assim, se a administração do governo coubesse ao povo, dar-se-ia a politia. ( entenda-se aqui que o termo politia deriva do grego politeia). Se a administração coubesse a alguns virtuosos, denominar-se-ia aristocracia, isto é poder dos melhores, que por isso se chamavam optimates. Pertencesse o governo, porém, a um só, seria ele, propriamente, rei, no caso, aquele que "preside único e pastor que busca o bem comum e não o interesse próprio."
Comentando acerca da finalidade do governo, entende Sto. Tomás que o fim maior do governo é a "unidade da paz." Entende ainda que mais apto estará o governo a preservar a unidade da paz almejada quanto menor for o número dos que compõem tal governo. Daí sua opção assumida pelo governo de um só , o qual pressupõe mais capacidade de promover a unidade da paz em vista da impossibilidade de dissensões que o governo unitário oferece, argumento que baseia na experiência vivida por províncias e cidades "que laboram em dissensões e flutuam sem paz" se não governam por um só."
Repetindo Aristóteles no tocante à necessidade da conservação do corpo social, lembra que a sua existência é proporcional à sua unidade, unidade que nenhum governo alcançaria mais perfeita e simplesmente que o governo de um só.
Assim, defendia Sto.Tomás que quanto mais uno fosse o governo, mais justo e útil para a comunidade ele seria, já que "a virtude é mais eficaz para realizar o efeito que dispersa ou dividida." No governo injusto, entretanto, o inverso certamente se daria: quanto mais uma fosse a chefia, tanto mais nociva haveria de ser. Decorria disto que, entre os governos injustos, mais nociva era a tirania que a oligarquia e esta que a "democracia".
Entendia que na monarquia concentravam-se o melhor e o pior dos governos. Na sua forma justa, era a mais indicada. Na sua forma injusta a mais repelente, qual seja a tirania. Exibindo o exemplo dos romanos que - no desejo de o governo de um rei, resvalaram para as mãos de tiranos, onde Tarquinio, o soberbo, ojerizou os romanos contra os monarcas - instituíram para si cônsules e outros magistrados, transformando a realeza em aristocracia.
No entanto, inobstante ostentava a opinião de que, ainda decaída, a monarquia era a melhor opção, já que da monarquia que em tirania se converte, "segue-se menor mal do que do governo de muitos optimates ao se corromper." Ainda, muitos mais perigos decorrem de um governo de muitos do que do governo de um só. Bastava o desvio de um só dos componentes do governo da intenção final do bem comum e a ameaça do perigo de dissensão paira sobre os súditos, enquanto que, quando um sob a presidência de um só geralmente se olha pelo bem comum. Decorrência disto é a freqüência maior do desvio para a tirania do governo de muitos que do governo de um só, onde para tanto bastava uma dissidência para um superar os demais e dominar o povo. Prova disso maior apontada pelo filósofo foi a república romana que, administrada por longo tempo por magistrados, no despertar de ódios, dissidências e guerras civis, findou por cair nas mãos dos tiranos mais cruéis. Concluía portanto, Sto. Tomás, que observando-se a história presente e passada, muitos mais tiranos se verificaram nos países governados por muitos que por um só. Assim, entende ser mais conveniente e seguro viver sob o domínio de um só do que "sob o regimento de muitos."
Entendia, necessário também, para evitar a tendência para a tirania que o homem elevado à condição de rei não tendesse para tal prática, como também que a organização do Estado fosse tal que lhe subtraísse a ocasião de tirania, dificultando seu acesso. Seria, nesse ponto, o que nos parece uma defesa da coexistência no Estado dos três poderes, basicamente na qualidade de "freios" dos impulsos totalizantes dos demais. Tal seria para Santo Tomás o que ele denominou de "aperfeiçoar a realeza."
Um aspecto particularmente interessante desta obra diz respeito ao entendimento de Santo Tomás acerca da utilidade para o rei, governante, da afeição de seu povo. Entende Santo Tomás que, a tal sentimento, no caso, a amizade não subsiste sequer a crueldade tamanha de algum tirano. Destarte, conclui que a raiz da estabilidade de cada governo encontra-se portanto, na afeição, na amizade existente entre o governante e os governados, donde naturalmente também conclui que limitado e exíguo é o tempo de governo do tirano. "Não pode, em verdade, conservar-se por muito tempo o que aos votos de muitos repugna." A utilidade proclamada da afeição entre governantes e governados reflete até mesmo, no entender de Santo Tomás, nas finanças estatais, eis que sendo antipatizado pelos súditos, necessita o tirano de possuir muitos fiscais a vigiar o comportamento dos súditos, o que, por sua vez, constitui grande despesa. Ao contrário, o bom governante ao angariar para si a simpatia popular tem nos próprios súditos a sua fiscalização, sendo que, nas necessidades, dão "espontaneamente aos reis mais do que podem os tiranos extorquir." Sem falar que os bons reis, mesmo após a morte permanecem no louvor dos homens e subsistem na saudade.
Inobstante o pendor do Santo Doutor para a monarquia, como acima exaustivamente demonstrado, o seu pronunciamento definitivo e indubitável acerca da questão não se encontra na referida obra De regimine principum, mas antes na Suma (1ª, 2æ), Tratado das Leis, em cuja Q. 95, IV, Resp. onde encontramos o seguinte texto:
"...as leis humanas se distinguem conforme os diversos regimes da cidade. Dos quais um, segundo o filósofo, se chama reino, e é quando a cidade é governada por um só chefe. Ao qual correspondem as Constituições. Outro regime é o chamado aristocracia, que é o principado dos melhores ou optimates. E a estes correspondem as respostas dos prudentes, ou senatusconsultos. Outro é a oligarquia, e é o principado de poucos, ricos e poderosos, ao qual corresponde o direito pretoriano, também chamado honorário. Outro, ainda, é o regime do povo, chamado democracia (quod nominatur democratia), ao qual correspondem os plebiscitos. Outro por fim, é o tirânico, que é absolutamente corrupto e, por isso, nenhuma lei lhe corresponde. Mas há também um regime composto de todos esses que é o melhor. E a esse corresponde a ‘lei’, estabelecido simultaneamente pelos patrícios e pelos plebeus, como diz Isidoro."
Tal, no dizer de R. Limongi França, in Enciclopédia Saraiva do Direito, pág. 39, constitui a definição do regime democrático autêntico onde se vislumbra "a unidade garantida pelo chefe do Executivo, a aristocracia representada pelos parlamentares e ao mesmo tempo o governo do povo, porque o chefe do Executivo e os parlamentares seriam, como já são, designados pela vontade dos cidadãos ricos e pobres, distinguidos, ou humildes."
Por oportuno, necessária aqui se faz dois esclarecimentos notadamente essenciais:
A primeiro, inobstante a opinião de abalizados autores no tocante à denotada aceitação definitiva, por parte de Santo Tomás, do status quo, dentre os quais podemos citar Barnes e Becker, in Historia del pensamiento social, incorrem, contudo, em erro de interpretação. Com efeito, não visaram Tomás de Aquino, Agostinho, Paulo, nem mesmo Cristo, a um programa de "reforma social." Não há notícia ainda de que a Boa Nova do Carpinteiro de Belém tenha sido comunicada através de manifestos ou panfletos. O que se buscou sempre, mais do que qualquer "reforma social" ou mesmo "tomada de poder" foi no dizer já mencionado de R. Limongi França (op. cit. pág. 40) "a reforma do homem, a tomada do homem, a reivindicação do homem... para Deus."
Nesse aspecto é importante frisar que inobstante a ausência de qualquer reforma denominada "social", nenhuma outra ciência ou doutrina operou no mundo maiores reformas, em todos os campos, que o Cristianismo, conforme a história mesma pode comprovar. Tal circunstância é inegável.
Ainda a esse respeito, o fato de aconselhar o povo, na obra De regimine principum, a tolerar a tirania, quando branda, pro bono pacis, é unicamente uma questão de prudência, já que não raro era naqueles dias que, ao ser o tirano expelido do poder pela multidão, geralmente dirigida por alguém, este, temendo a si ocorrer o que fez ao expelido, oprime os subordinados em maior ainda opressão, como no caso de Dionísio, Tirano de Siracusa.
A segundo, encontramos o erro referente à alegada defesa, por parte de Santo Tomás, da supremacia do poder espiritual contra os governantes, inclinando-se, dessa maneira, para um ABSOLUTISMO TEOCRÁTICO. Tal entendimento denota, por certo, um conhecimento equivocado da obra e do pensamento de Santo Tomás, que é o mesmo do Novo Testamento, resumido nestes dois versículos: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus."(Mt. 22,21) e "Importa obedecer mais a Deus do que aos homens."(Atos, 5,30). Na verdade, Santo Tomás designa um terreno próprio e autônomo do Estado, referente aos assuntos temporais, como também à Igreja, um limite próprio e independente relativo aos assuntos espirituais, sendo que ambos os poderes estão relacionados com Deus, por dele derivarem. Gragman, in Filosofía Medieval, pág. 135, assim entende:
"Uma subordinação do Estado à Igreja só existe quando as coisas temporais se relacionam com a saúde das almas e é, portanto, uma subordinação para lograr uma ordenação entre os dois fins."
C - O PROBLEMA DA PROPRIEDADE, A USURA, O JUSTO PREÇO E O JUSTO SALÁRIO
Outro aspecto da doutrina social de Santo Tomás, com certeza um dos mais expressivos e conseqüentes, diz respeito ao direito de propriedade que é tratado no Capítulo 133 do Livro III da Summa contra gentiles e especialmente na Suma teológica, na Q. 66, da 2ª, 2æ. Na Summa contra gentiles, o tema é abordado indiretamente quando encarece o Santo Doutor o significado da necessidade do sustento próprio, "tão indispensável que nenhum bem o pode compensar."( R. Limongi França, op. cit. pág. 42). Aduzia ali Santo Tomás que nem a pobreza nem a riqueza são absolutamente boas ou más, tendendo para uma coisa ou outra conforme as circunstâncias atinentes. As riquezas seriam boas enquanto úteis fossem ao exercício das virtudes, ao sustento do corpo e ao auxílio ao próximo. As coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres. (VIII, Resp.) Mas se impedem o exercício das virtudes passam a categoria das coisas más. Santo Tomás endossa as palavras de Santo Ambrósio:
"É dos famintos o pão que tu reténs; as roupas que tu guardas são dos nus; e resgate e alívio dos miseráveis é o dinheiro que enterras no chão. Todo o excedente às nossas necessidades por violência é que obtivemos. Assim, servimo-nos de uma coisa alheia, manifesta ou ocultamente, em caso de extrema necessidade, não tem natureza de furto ou rapina, porque essa necessidade torna nosso o de que nos apoderamos para o sustento da nossa própria vida."
A pobreza, por seu turno, é louvável por, abstraindo o homem dos cuidados terrenos, o direciona mais ao cuidados das coisas espirituais e divinas, tendo seu limite, contudo, na capacidade de poder se alimentar de um modo digno. "per licitum modum sustentandi seipsum."
São Tomás de Aquino
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