domingo, 22 de junho de 2014

Ayn Rand: A Divnização do "Anthropos"

Lendo A Nascente de Ayn Rand eu comecei a pensar sobre a autora: como uma filosofa que defende ávidamente o conceito de "verdade objetiva" (o que dá o nome da sua filosofia, o Objetivismo), valores morais e éticos atemporais e faz, com isso, uma crítica feroz a todo relativismo moral e ético sem nenhum pudor de dizer o que é certo e o que é errado pode ser tão avessa a ideia de Deus.
Essa resposta ela dá logo na introdução do livro, onde ela antecipa a discussão e resume sua ideia, que não passa de uma divinização do "Anthropos".

Ayn Rand rejeita tudo que possa estar acima do homem, inclusive Deus. Ela troca a ideia de Deus pela de Homem (e ela faz questão de escrever "H" maiúsculo) atribuindo tudo a sua criação, imagem e semelhança sem conseguir conceber a ideia de nenhum "algo a mais".

Acho interessante que não existe nela nem a menor chance de "agnosticismo", seu ateísmo-gnóstico acaba, no final, não passando de uma nova religião, repleta de dogmas e verdades inquestionáveis tal como a velha religião que ela critica, um exemplo de dogma criado por ela é a sua afirmação "o homem é a única coisa que é um fim em si mesmo". Com que base racional é afirmado isso? O sentido de absoluto, de "coisa em si mesmo", só passou de Deus para o Homem na mente dela.

Apesar dela discordar ao longo do texto de Nietzsche ela é um reflexo nietzschiano típico. Nietzsche uma vez disse "Se existissem deuses, como eu iria admitir não ser um deles? Logo, não existem deuses.".

Toda essa discussão, tanto dela, quanto de Nietzsche é incrivelmente parecido com um dilema Luciferiano típico. Assim como Lúcifer é um imitador de Deus, que deseja governar o Universo no Seu lugar o Homem, para Ayn Rand, é o Ser Superior, emanador de todas as coisas, aquele que tem o direito de ser venerado.

A mimese da história de Lúcifer é incrivelmente similar ao universo de suas abstrações filosóficas. Não me admira que Ayn Rand influenciou (paralelamente e, sejamos honestos, a seu contragosto) o Satanismo de Anton LaVey e toda sua concepção religiosa e mística a respeito do indivíduo.

Enfim, apesar de achar ela equivocada, não serei injusto e deixarei ela mesma falar por si mesma. Abaixo trechos em que a própria diz sobre suas próprias ideias.

Gabriel Vince - Autor deste Blog


A ética foi, durante séculos, um monopólio quase absoluto da religião. Não o conteúdo específico da ética religiosa , mas a "ética" como abstração, o universo dos valores, o código do bem e do mal do Homem, com as conotações emocionais de elevação, enaltecimento, nobreza, reverência, grandiosidade que pertencem ao universo dos valores do Homens, mas dos quais a religião se apropriou.
O mesmo significado e as mesmas considerações estão intencionalmente presentes e são aplicáveis a outro trecho do livro [A Nascente], um diálogo curto entre Roark e Hopton Stoddard, que pode ser mal compreendido se isolado de seu contexto:
" - Você é um homem profundamente religioso, Sr. Roark... à sua própria maneira. Eu posso ver isso em seus prédios"
" - É verdade - disse Roark".
No contexto dessa cena, porém, o significado é claro: Stoddard está se referindo à dedicação profunda de Roark a valores, ao mais elevado e ao melhor, ao ideal (veja a sua explicação sobre a natureza do templo proposto). A construção do Templo Stoddard e o subsequente julgamento tratam da questão explicitamente.
Isso me leva a uma questão mais ampla que está presente em cada linha de "A Nascente" e que tem de ser entendida por quem quiser compreender as causas do interesse duradouro que ele desperta.
O monopólio da religião no campo da ética torna extremamente difícil comunicar o significado emocional e as conotações de uma visão de vida racional. Assim como a religião tomou conta do campo da ética, voltando a moralidade contra o Homem, ela também usurpou os conceitos morais mais elevados de nossa linguagem, posicionando-os fora da Terra e fora do alcance do Homem. A "exaltação" é normalmente entendida como um estado emocional evocado pela contemplação do sobrenatural. "Veneração" significa a experiência emocional de lealdade e dedicação a algo mais elevado que o Homem. "Reverência" significa a emoção de um respeito sagrado, que deve ser sentida de joelhos. "Sagrado" significa superior e separado de qualquer interesse do Homem nesta Terra. E assim por diante.
Mas esses conceitos realmente dão nome a emoções reais, mesmo que não exista nenhuma dimensão sobrenatural; e essas emoções são vivenciadas como enaltecedoras ou enobrecedoras, sem a autodegradação exigida pelas definições religiosas. Qual é, então, a fonte ou referência desses conceitos na realidade? É todo o universo das emoções que provêm da dedicação do Homem introduzidos pela religião, esse universo das emoções é deixado sem identificação, sem conceitos, palavras ou reconhecimentos.
É esse nível mais alto das emoções do Homem que precisa ser resgatado das trevas do misticismo e redirecionado ao seu objetivo apropriado: o Homem.
É nesse sentido, com esse significado e essa intenção, que eu identificaria o sentido de vida dramatizado em "A Nascente" como veneração pelo Homem.
É uma emoção que poucos - muito poucos - homens sentem constantemente; alguns a vivenciam em raras fagulhas que brilham e morrem sem consequências; outros não sabem do que estou falando; alguns poucos sabem e passam a vida como extintores de fagulhas frenéticos e virulentos.
Não confundam "veneração pelo Homem" com as várias tentativas não de resgatar a moralidade da religião e trazê-la para o campo da razão, mas de substituir os elementos mais profundamente irracionais da religião por um significado secular. Como exemplo, há todas as variantes do coletivismo moderno (comunista, fascista, nazista, etc.) que preservam a ética religiosa-altruísta na sua totalidade e apenas colocam a sociedade no lugar de Deus como beneficiária da autoimolação do Homem. Há as várias escolas modernas de filosofia que, rejeitando a lei da identidade, proclamam que a realidade é um fluxo indeterminado regido por milagres e modelados por caprichos - não os de Deus, mas os do Homem ou os "da sociedade". Esses neomísticos não têm veneração pelo Homem; eles são meramente os que secularizaram um ódio tão profundo pelo Homem quanto o ódio dos místicos assumidos que os precederam.
Uma variante mais crua do mesmo ódio é representada pelas mentalidades "estatísticas" e focadas em coisas concretas que - incapazes de entender o significado da vontade do Homem - declaram que o Homem não pode ser um objeto de veneração, pois nunca encontraram uma espécime humano que a merecesse.
Aqueles que veneram o Homem, no seu sentido do termo, são os que veem potencial mais elevado no Homem e esforçam-se para realizá-lo. Os que o odeiam são aqueles que o veem como uma criatura desamparada, depravada e desprezível - e lutam para jamais deixá-lo descobrir que não é assim. É importante lembrar aqui que o único conhecimento direto e introspectivo do Homem que qualquer um possui é o de si próprio.

Mais especificamente, a divisão essencial entre esses dois campos é: os dedicados à exaltação da autoestima do Homem e à santidade de sua felicidade na Terra - e aqueles determinados a não permitir que qualquer uma das duas possa existir. A maior parte da humanidade passa a vida e gasta sua energia psicológica no meio, balançando entre esses dois campos, lutando para não permitir que a questão receba um nome. Isso não muda a natureza da questão.
Talvez a melhor maneira de comunicar o sentido de vida de "A Nascente" seja por meio da citação que encabeçou meu manuscrito, mas que removi da versão final do livro que foi publicada. Com esta oportunidade de explicar esse fato, fico contente de trazê-la de volta.
Eu a removi por causa da minha profunda discordância com a filosofia do seu autor, Friedrich Nietzsche. Filosoficamente, Nietzsche é um místico e um irracionalista. Sua metafísica consiste de um universo "byroniano" e misticamente malévolo; sua epistemologia subordina a razão à "vontade", ou ao sentimento, ou ao sangue, ou às virtudes de caráter inatas. Mas, como poeta, ele projeta às vezes (não consistentemente) um sentimento magnífico pela grandeza do Homem, expresso em termos emocionais, não intelectuais.
Isso é especialmente verdadeiro no caso da citação que escolhi. Eu não poderia endossar seu significado literal - ela proclama um princípio indefensável: o do determinismo psicológico. Mas, se a consideramos uma projeção poética de uma experiência emocional (e se, intelectualmente, substituirmos o conceito de uma "certeza fundamental" inata pelo de uma "premissa básica" adquirida), a citação comunica um estado interior de autoestima exaltada -  e sintetiza as consequências emocionais para as quais A Nascente fornece a bas racional e filosófica:

Não são as obras mas crença que é aqui decisiva e determina a ordem de hierarquia - para empregar uma vez mais a fórmula religiosa antiga com um significado novo e mais profundo - , é uma certeza fundamental que a alma nobre tem sobre si mesma, algo que não é para ser procurado, não é para ser encontrado, e talvez, também, não seja para ser perdido - A alma nobre tem reverência por si mesma. (Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal)

Rara vezes essa visão do Homem foi expressa na história da humanidade. Hoje, ela é praticamente inexistente. Entretanto, essa é a visão com que - em vários graus de desejo, avidez, paixão e confusão agonizante - os melhores da juventude da humanidade começam a vida. Não chega nem a ser uma visão para a maioria deles, mas uma percepção indefinida, nebulosa, tateante, composta por uma dor crua e uma felicidade incomunicável. É um senso de enorme expectativa , a percepção de que nossa própria vida é importante, que grandes conquistas estão ao alcance da nossa própria capacidade, e que grandes coisas estão por vir.
Não é da natureza do Homem - nem de nenhuma entidade viva - começar já desistindo, cuspindo na própria cara e amaldiçoando a existência; isso requer um processo de corrupção cuja rapidez varia de homem para homem. Alguns desistem ao primeiro toque de pressão; se vendem; outros mais definham através de graus imperceptíveis e perdem sua chama, jamais sabendo quando ou como a perderam. E então todos eles desparecem no vasto pântano dos mais velhos, que lhes dizem persistentemente que a maturidade consiste em abandonar a própria mente; a segurança, em abandonar os próprios valores; a praticidade, em perder a autoestima. No entanto, alguns poucos resistem e seguem adiante, sabendo que a sua chama não deve ser traída, aprendendo a dar-lhe forma, propósito e realidade.
Mas qualquer que seja seu futuro, no nascer de suas vidas, as pessoas buscam uma visão nobre da natureza do Homem e do potencial da existência.
É dificil encontrar as poucas placas que indicam o caminho. A Nascente é uma delas.
Essa é uma das principais razões po

Ayn Rand
Nova York, maio de 1968.

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