quarta-feira, 6 de julho de 2011
Yukio Mishima - Harmonia entre Pena e da Espada
O escritor e dramaturgo Yukio Mishima (Kimitake Hiraoka - 1925-1970) é decerto um dos personagens japoneses mais icônicos do século XX por escancarar de modo excêntrico as contradições de um país milenar que avançava na estrada do progresso sem vislumbrar, um pouco que seja, a vista pelo retrovisor, nem mesmo o velocímetro.
Mishima, educado como um samurai, viveu e morreu como um, tendo entrado na escola enquanto o Japão militarista 'entrava' na China. Sem a atenção do pai, que o queria formado em engenharia a despeito de seu talento pelas artes, e cuidando de uma avó doente e possessiva, Kimitake refugiava-se na literatura para aguentar a opressão do dia-a-dia, e justamente por isso criou seu nome artístico, na intenção de esconder do pai suas atividades. Influenciado por obras como o Hagakure do século XVII ("o ventre de onde nasceu minha escrita"), sua produção ganha destaque imediatamente após o cessar da segunda guerra mundial, onde descreve a situação política e social do país, ocupado pelas forças americanas, com esmero literário.
Toda a sua obra é permeada por paradoxos. Beleza e morte, amor e rejeição, oriente e ocidente são alguns exemplos. Seu tema central era a dicotomia entre os valores tradicionais japoneses e a pobreza espiritual da vida contemporânea, que tornara o Japão moderno porém infértil. Homem híbrido, era o exemplo vivo do japonês no pós-guerra, que mesmo quando defende o retorno aos valores tradicionais, não o faz sem a onipresente influência ocidental. Mishima falava inglês fluentemente (até como forma de auxílio na tentativa de levar o prêmio Nobel), apreciava pensadores ocidentais como Oscar Wilde e mesmo seu estilo literário era temperado com pitadas de ocidente, caso de Mar Inquieto, onde muitos críticos vêem notória influência dos escritos gregos.
Criança anêmica, Mishima se sentia eternamente culpado por fingir uma tuberculose quando estava gripado, fato que fez o médico das forças armadas considerá-lo como inadequado ao exército, e que levou Yukio a se preparar para uma guerra que nunca veio, no papel de um legítimo samurai. Como homem, casou e virou pai de dois filhos para poder dar sequência à linhagem familiar apesar de homossexual. Como escritor, criticou o sedentarismo daqueles que viviam da pena, defendendo que palavras devem gerar ação. Como samurai, aperfeiçava corpo (mestre em kendô e karatê) e mente enquanto lutava para reunir seu povo e incitá-lo à rebelião contra o que estava sendo feito com o Japão.
"Japan will disappear, it will become inorganic, empty, neutral-tinted; it will grow wealthy and astute." Mishima
Como afirma Jordi Mas, pesquisador de Ásia Oriental de Barcelona, ele "temia que o progresso econômico se conseguisse em detrimento da própria cultura", enquanto o japonês, recentemente humilhado na guerra, era amparado pelos americanos e se embriagava com trabalho e bem-estar material. Mishima reclama o direito do povo japonês desfrutar de soberania e justiça social, conservando as tradições, sem alienar a adaptação do país à técnica industrial.
A cultura tradicional japonesa foi fortemente suprimida pela ocupação americana, que via nisso uma forma de jogar as últimas pás de terra nos valores nacionalistas e militar-expansionistas do Japão, assim como abrir espaço para valores pacifistas, liberais e progressistas (e ao American Way of Life, naturalmente). A censura americana, vinda da Seção de Informação e Educação Civil (ligada ao Comando Supremo de Forças Aliadas do general McArthur), reprimiu manifestações artísticas que remetiam ao passado feudal japonês, como o teatro Kabuki, além da proibição do ensino de artes marciais japonesas.
Enquanto muitos estavam ocupados demais assistindo aos filmes de Hollywood e desenhos de Hanna Barbera, alguns japoneses mostravam-se particularmente incomodados com a presença americana e sua censura. Entre os anos 50 e 70, houve um crescimento das manifestações culturais que remetiam ao nacionalismo de outrora. Nesse período se popularizaram os dramas de samurais produzidos pela Toei. Alguns exemplos de produção da época são o livro Requiem for Battleship Yamato de Mitsuru Yoshida e os filmes Os Sete Samurais de Akira Kurosawa e Japan's Longest Day de Kihachi Okamoto.
Não foram apenas os artistas e intelectuais, mas o próprio governo japonês fez o possível para revitalizar a cultura tradicional do país, imprimindo a arquitetura nas obras públicas, investindo em preservação de pontos históricos, trazendo de novo à luz os teatros No e Kabuki, bem como a cultura samurai, até hoje presente nas escolas e universidades japonesas. Em 1966, publicou o Program of forming desirable image of Japanese, onde fixou características do "japonês ideal", bastante influenciado pelo Bushido, código de conduta dos samurais ("caminho do guerreiro"). Citarei o conteúdo do programa quando falar sobre o sistema educacional japonês.
Mishima, no entanto, foi mentor da mais simbólica tentativa de restituir aquele Japão que não existia mais. Em 25 de Novembro de 1970, acompanhado de 4 membros do Tatenokai (milícia de estudantes patrióticos que estudavam artes marciais sob a tutela de Mishima), todos vestidos com os uniformes do Exército Imperial, renderam o comandante Masuda do quartel general das forças de Auto-defesa de Tóquio (mataram oito soldados resistentes na invasão). Mishima, então, fez um discurso patriótico para cerca de dois mil soldados, convocando-os a lutar contra a constituição japonesa, escrita por americanos, e a favor da restituição do poder imperial. Diante da indiferença dos militares, Mishima cometeu o Seppuku (suicídio ritual dos samurais) após gritar 3x: "Longa vida ao Imperador!".
"Perfect purity is possible if you turn your life into a line of poetry written with a splash of blood."Mishima.
Sua morte é considerada o protesto derradeiro contra a decadência da sociedade japonesa. É preciso entendê-lo para não cair no erro de acusá-lo de simples fanático. O membro Emílio da comunidade Literatura Japonesa no Orkut sintetizou isso corretamente: "Ao leitor desavisado, descontextualizado e globalizado o patriotismo soa anacrônico e panfletário. Mas vale lembrar que Mishima vivia no Japão militarmente ocupado pelos americanos.". Yukio teve sua cabeça moldada no auge do militarismo, não se deve esquecer.
Mishima dedicou sua vida à pátria e à nação. Lutou contra a materialização do espírito de um povo que deixou de ser soberano. Protestou "contra a inoperância, a apatia do amorfo Exército Japonês, que, como se sabe, não é mais que uma polícia, mais destinada a reprimir o povo, do que uma milícia capaz de salvaguardar a Nação.".
O ato radical do escritor invocou uma estranha apreensão em alguns japoneses. Apesar da consciência do extremismo no ato de Mishima, esses japoneses pararam para pensar sobre aonde estavam indo ao se preocuparem em produzir tanta riqueza enquanto se sentiam tão vazios e culturalmente desconectados das tradições do país que construiram a visão de si mesmos. A maioria dos japoneses, no auge da apologia ao consumo, viram no ato apenas mais uma das excentricidades de Mishima e um péssimo exemplo. A recepção no ocidente, carente de ídolos românticos, foi muito mais forte, descobrindo a força da obra completa de Mishima antes do próprio Japão, que apenas o reconheceu devidamente após revisitar seu legado nos anos 80, tentando entender o que os gaijins viam de importante nele.
"A morte é uma espécie de castigo eterno, infligido à materializada sociedade ocidental que vive afastada da natureza. Para nós não o é, de modo absoluto, uma vez que nos consideramos parte integrada da natureza. Devido a isso, a morte, aos olhos do meu povo, é um prêmio, algo assim como a transformação, a liberdade da matéria. Morrer é partir, não desaparecer. Outrora, o mundo cristão, creio, tinha igual ou semelhante filosofia. E foi então que logrou consolidar-se. Pois bem: nós queremos recuperar plenamente esse estilo de vida e aplicá-lo a uma grande política nacional e popular. O contrário seria o mesmo que aceitar a hibernação indefinidamente da alma japonesa." Yukio MIshima
"Sempre ouça seu espírito. É melhor estar errado que simplesmente seguir o convencional. Se você está errado, não importa, você aprendeu algo e crescerá mais forte. Se você tiver razão, você deu outro passo para uma vida superior." Trecho do Hagakure, obra que mais influenciou a escrita de Mishima.
FONTES:
Forming nationalistic mentality of Japanese youth by Japanese ruling circles with use of bushido ideology (Andrei Vasil’evich Golomsha)
Mishima: O hara-kiri do silêncio - Política», n.º 26, pág. 12, 31.01.1971
YUKIO MISHIMA: A 20th Century Samurai
Mishima, el último samurai - Anna Zaera
No país do sol nascente - Giovanna Bartucci
Os samurais - History Channel
http://www.culturajaponesa.com.br/htm/cinemajapones.html
Postagem original http://otakismo.blogspot.com/2011/03/yukio-mishima-e-crise-de-identidade.html
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