quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Augusto dos Anjos, o Poeta do Hediondo: Parte 2 - Faces do Feio



Predeterminação imprescritível 
Oriunda da infra-astral Substância calma 
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma 
Para cantar de preferência o Horrível!

Augusto dos Anjos, “Minha finalidade”


Dentre todas as peculiaridades que marcam a poesia de Augusto dos Anjos, certamente a que mais chocará o leitor desprecavido é o que poderíamos identificar, a princípio, como um certo “expressionismo” do fazer poético do paraibano. É impossível ler o Eu sem que saltem aos olhos as tonalidades enérgicas e as pinceladas violentas com que são pintadas suas estrofes, que, de fato, embora, em certo momento, evoquem “rembrandtescas telas várias” (ANJOS, Augusto dos. “Monólogo de uma Sombra”. In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa. 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 198.), lembram antes quadros de Max Kaus, Erich Heckel ou Ernst Ludwig Kirchner. São muitos os elementos responsáveis por esse efeito: desde a radicalização de expedientes consagrados pelo simbolismo, como as aliterações e a sobreposição de metáforas e adjetivos, até o uso idiossincrático do superlativo sintético e das proparoxítonas, somado ao emprego inusitado de termos filosóficos e científicos, do que resultam as mais surpreendentes rimas e imagens. Constantemente pautado por um naturalismo cru e pessimista, não obstante fortemente carregado de lirismo, os poemas engendram associações insólitas, das quais emana um sentimento intenso de estranheza e de tensão.

As vozes que nos falam no Eu parecem estar determinadas a nos fazer ver o mundo através das lentes corrosivas e barbarizantes com que elas próprias o enxergam, forçando- as, para isso, diante dos nossos olhos, com um vigor verbal e imagético capaz de distorcer o real até a caricatura mais mordaz. Não é difícil constatar o que a associação com o expressionismo já sugere: a decomposição desempenha papel capital na obra em estudo.1 Mais do que mera metáfora para procedimentos poéticos desta, contudo, aquela se lhe impõe (sob a forma concreta da putrefação) como objeto mesmo de representação e emblema perfeito para os valores que a sustentam. O que acaba de ser dito (quer-se crer) constitui um elemento importante da poética de Augusto dos Anjos: o Tétrico, o Grotesco, o Bizarro, em suma, tudo o que resumimos aqui pela palavra “decomposição”, não se restringe, na verdade, ao prisma através do qual se vê, mas, extrapolando tal prisma, vai se situar no centro mesmo do que é visto. Trata-se de uma poética afeita a retratar o Horrível. Vemos, portanto, que é insuficiente falar de “expressionismo”, em se tratando dessa poética. Devemos antes reconhecer nela uma modalidade específica de Culto ao Feio, que se distingue por buscar a expressividade das coisas asquerosas e, em particular, da morte.

Dentro em pouco, em análise mais pormenorizada, refletiremos acerca do real sentido dessa característica, especialmente na forma específica, acima citada, como ela se manifesta na obra em estudo. Por enquanto, numa tentativa de traçar como que uma sua breve genealogia, procuremos esboçar ligeiramente a trajetória do Culto ao Feio na história recente da poesia ocidental. Alexei Bueno, em estudo sobre Augusto dos Anjos, afirma que ele é tão velho quanto a arte, identificando sua entrada na poesia moderna, entretanto, apenas a partir de Baudelaire. Quanto à sua inauguração no âmbito da poesia brasileira (e daí para a do poeta em estudo), o estudioso a atribui aos “nossos próprios ‘decadentistas’” (BUENO, Alexei. “Augusto dos Anjos: origens de uma poética”. In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 27.), propondo a “filiação simbolista do expressionismo de Augusto dos Anjos” (BUENO, Alexei. “Augusto dos Anjos: origens de uma poética”. In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 27.) e destacando a figura de Cruz e Sousa.

Ivan Teixeira, discorrendo sobre esse importante poeta simbolista, propõe o mesmo percurso: “Originária do satanismo de Baudelaire, tal postura viria a desembocar no lirismo escatológico de Augusto dos Anjos, sensivelmente influenciado por Broqueis.” (TEIXEIRA, Ivan. “Cem anos de Simbolismo: Broquéis e alguns fatores de sua modernidade”. In: SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. XXIV.).

O parentesco entre Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos, se quisermos ignorar a ostensividade com que se evidencia em inúmeras passagens do Eu, é o próprio Augusto quem o atesta, através da epígrafe que escolhe para seu soneto “O Riso” (“Ri, coração, tristíssimo palhaço.” SOUZA, Cruz e. apud ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 437.). Isso dito, detenhamo-nos, por um momento, no Feísmo do próprio Cruz.

Há, em Missais, primeira publicação de Cruz e Sousa, um poema em prosa que vem direto ao encontro das nossas intenções, fornecendo pistas valiosas para a “decifração” do gosto augustiano pelo Horrível. Chama-se “Psicologia do Feio”:

“Psicologia do Feio 
Peters, esse humorismo ao mesmo tempo alucinante e alado; o pessimismoparadoxal de Alphonse Karr e Gustavo Groz, tão semelhantes nas linhas gerais; todo aquele pungente, doloroso, estranho Livro de Lázaro, de Henri Heine, tudo isso, fundido numa cristalização de lágrimas e sangue, como a flamejante e espiritualizada epopéia do Amor, exprimiria bem, talvez, a noite de tua psicologia negra, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio.
Tu vens exata e diretamente do Darwin, da forma ancestral comum dos seres organizados: eu te vejo bem as saliências craneanas do Orango, o gesto lascivo, o ar animal e rapace do símio.
As tuas feições, duras, secas, quase imobilizadas em pedra, puxadas, arrepanhadas num momo, como a confluência interior dos desesperos e das torturas, abrem-se rebeladamente num sarcasmo, ao qual às vezes uma gesticulação epiléptica, nevrótiva, clownesca, faz impetuosa brotar a gargalhada das turbas, enquanto a tua voz coaxa e grasna, numa deprecação de morte, com ásperas e absurdas variabilidades ventríloquas de tons.
O teu horror não é deplorável só, não causa só piedade – mas é um obsceno horror – e as abas compridas e esfrangalhadas duma veste que te fica em rugas, em pregas encolhidas na largura neste teu corpo esquelético, e que parece a mortalha dalgum hirto cadáver que houvessem desenterrado – as esquisitas abas desta veste, sob o chicote elétrico do vento, alçam-se em vôo, deblateram para trás de ti, ansiosas, aflitas, puxando-te, num arrebatamento histérico, como se fossem fúrias tremendas que te quisessem arrojar pelos ares, num delírio de darem-te a morte.
Outras vezes, porém, lembram as asas de um grande morcego monstro, imensas e membranosas, causando asco nauseante e enchendo tudo duma sinistra treva lugubremente cortada de arrepios e esvoaçamentos medonhos.
Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros; vivos e iluminados vegetais em flor; campos verdes, afofados na verdura tenra, como estofos de veludos e sedas rutilosas e orientais, não são já para a tua alegria, recuada agora no fundo das nostálgicas neblinas da torturante desilusão de seres Feio.
Os perpétuos gelos do Volga e do Neva para sempre rolam, em densas camadas, sobre o teu coração; e, aí, tudo o que dele se aproxima, outros corações que te buscam, outros afetos que te procuram, perdem todo o calor, resfriam logo, inteiramente ficam gelados já diante da tangibilidade gwinplainesca da tua fealdade.
Só eu, numa suprema hora de spleen, de esgotamento de forças psíquicas, em que me falte extensamente o humor – essa bondade hilariante do Espírito – te idolatro e procuro, ó lascivo Feio! que da luxúria pantagruélica dos vermes devoras na treva os sonhos – porque não os podes alimentar, nem ver florir, nem crescer! Sem que a  diabólica verdade flagrante esteja a rir de teu amor e a pintar picarescamente caricaturas na quase apagada perspectiva da tua existência.
Só as artísticas sensibilidades nervosas, vibráteis, quase feminis, podem amar-te; enquanto que as individualidades ocas, estéreis, áridas, duras, sem vibração sensacional, sem cor, sem luz, sem som e sem aroma, fugirão para sempre de ti como à repelência asquerosa de um putrefato.
Entretanto, eu gosto de ti, ó Feio! porque és a escapelante ironia da Formosura, a sombra aurora da Carne, o luto da matéria doirada ao sol, a cal fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da beleza pintada. Gosto de ti porque negas a infalível, a absoluta correção das Formas perfeitas e consagradas, conquanto tenhas também, na tua hediondez, toda a correção perfeita – como o sapo, coaxando cá embaixo na lodosa argila, tem, no entanto, a repelente correção própria do sapo; - como a estrela, fulgindo, lá, em cima, no precioso Azul, tem a serena e etérea correção própria d’estrela.
Por uma espécie apenas de schopenhaurismo é que eu adoro-te, ó feio! e quereria bem rolar contigo nesse Nirvana de dúvida até à suprema aniquilação da morte, vendo surgir, como de lagos de quimeras, em estalagmites de neve, diante de mim, sombrios e álgidos, pesadelos de mulheres amadas; pálidas Ofélias, Margaridas loiras, Julietas tormentadas, visões, enfim, como nas tragédias de Mcbeth ou a nevoenta Visão germânica do Graal.
Numa seda negra d’Arte, vestidos de negro, à semelhança desse trágico Hamlet da Dinamarca, iríamos os dois, através dos largos e profundos cemitérios silenciosos, consultar as rígidas caveiras das virginais Ilusões que se foram, e que, à nossa aproximação, sorririam, talvez, felizes, como se lhes levássemos a palpitante matéria animada de nossos corpos para cobrir, fazer viver as suas galvanizadas carcaças frias.
Mas ah! eu quisera bem, por vezes, também, ter o rude materialismo analítico de Buchener, que, certamente, não sentiria por ti, ó Feio! esta extravagante, excêntrica, singular influência mórbida que nas funções de meu cérebro vem, contudo, como doença amarga, um tédio amarelo e pesado de chim que o ópio estuporou e enervou.
Não houvesse dentro em mim, através das Ilíadas do Amor, das Bacanais do Sonho, um sentimento melancólico ao qual o pensamento dá uma expressão de enfermidade psicológica, e eu não arrastaria a tua sombra, não andaria preso ao teu esqueleto, ó soturno, ó triste, ó desolado Feio!”
(SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 37-40.)

A exemplo do título, várias passagens do poema acima funcionam como testemunhos do vínculo entre Cruz e Souza e Augusto dos Anjos. Assim, ao longo da leitura, deparamo-nos com passagens como:
“Tu vens diretamente do Darwin, da forma ancestral comum dos seres organizados (...) gesticulação epiléptica, nevrótica (...) chicote elétrico do vento (...) luxúria pantagruélica dos vermes (...) repelência asquerosa de um putrefato (...) rude materialismo analítico de Büchner (...) singular influência mórbida que nas funções do meu cérebro vem (...)”
(SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 37-40.)

... dentre outras, menos ostensivas, que nos remetem inconfundivelmente ao léxico, à temática e a construções sintáticas típicas de Augusto dos Anjos.

“Psicologia do Feio” se compõe da seguinte forma: o eu lírico, dirigindo-se, na segunda pessoa, a um interlocutor mudo, designado unicamente pelo substantivo “Feio”, desdobra-se numa figura (claramente um alter ego) que parece permitir-lhe alguma superação, ainda que precária, do “obsceno horror” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 38.) que ele provoca em si mesmo. Tal personagem, cujo perfil vai se compondo ao longo do texto, encontra-se proscrito do mundo da beleza, que dele escarnece cruelmente.

Trata-se de um estereótipo caro ao simbolismo neo-romântico, como que um emblema da inadequação, que faz pensar em figuras como o monstro de Frankenstein, Quasímodo ou o Fantasma da Ópera. Vítima do sarcasmo e condenado ao rancor, os “perpétuos gelos do Volga e do Neva para sempre rolam, em densas camadas, sobre o (seu) coração” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 38.), e ele devora “na treva os sonhos - porque não os pode alimentar” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.). É possível aproximá-lo dos sonetos “Noli me Tangere” e “Aberração”, de Augusto dos Anjos:

Noli Me Tangere

A exaltação emocional do Gozo,
O Amor, a Glória, a Ciência, a Arte e a Beleza
Servem de combustíveis à ira acesa
Das tempestades do meu ser nervoso!

Eu sou, por conseqüência, um ser monstruoso!
Em minha arca encefálica indefesa
Choram as forças más da Natureza
Sem possibilidades de repouso!

Agregados anômalos malditos
Despedaçam-se, mordem-se, dão gritos
Nas minhas camas cerebrais funéreas...

Ai! Não toqueis em minhas faces verdes,
Sob pena, homens felizes, de sofrerdes
A sensação de todas as misérias!

(ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 337.)

Aberração

Na velhice automática e na infância, 
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era) 
Minha hibridez é a súmula sincera 
Das defectividades da Substância. 

Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia, 
Como Belerofonte com a Quimera 
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera 
E acho o odor de cadáver na fragância! 

Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto 
De anomalias lúgubres. Existo 
Como a cancro, a exigir que os sãos enfermem... 

Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o lodo 
E nas mudanças do Universo todo 
Deixo inscrita a memória do meu gérmen! 

(ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 339.)

Ressalta, dos poemas acima, a oposição radical entre os personagens que neles se descrevem e os “homens felizes” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 337.) e “sãos” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 339.), oposição que se instaura a partir da monstruosidade ou da anomalia que os eus líricos atribuem a si mesmos. Ressalta, sobretudo, uma intensa hostilidade pos parte destes em relação à “Beleza” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 337.), tema a que se volta mais adiante neste estudo.

Quanto ao Feio de Cruz e Souza, há ainda nele algo de poeta maldito, já que ele é aantítese da “correção das Formas perfeitas e consagradas” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39). Não é à toa que as “artísticas sensibilidades nervosas” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.) demonstram, para com ele, uma afinidade inesperada.

No entanto, o Feio parece ser mais do que um mero outsider. Sua fealdade simiesca, obscena, lasciva, é o fator que o isola de tudo o mais, apartando-o dos objetos de seu desejo e desterrando-o num refúgio sombrio. Provir diretamente da “forma ancestral comum dosseres organizados” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 37.) é como que um crime inato, que merece o exílio como castigo. O paralelo com o mito da Queda é, assim, evidente. Para ele aponta ainda a seguinte passagem:
“Árvores frondentes e undiflavadas de sol, onde os pássaros cantem; rios gorgolejantes de cristais sonoros; vivos e iluminados vergéis em flor; campos verdes afofados na verdura tenra, como estofos de veludos e sedas rutilosas e orientais, não são já para a (sua) alegria, recuada agora no fundo das nostálgicas neblinas da torturante desilusão de (ser) Feio.”
(SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 38. Grifos meus.)

O Belo, materializado numa série de maravilhas edênicas, não é retratado aqui como o antípoda absoluto do Feio, mas como algo que ele já não possui, capaz de suscitar nostalgia. É um certo sentimento de “paraíso perdido” o que se sugere. A referência à ancestralidade já indica: esse Feio é um herdeiro direto de Adão. Somente o artista é capaz de redimi-lo da sua miséria, transfigurando-o através de sua ótica, segundo a qual ele é:
“a escalpelante ironia da Formosura, a sombra da aurora da Carne, o luto da matéria doirada ao sol, a cal fulgurante da sátira sobre a ostentosa podridão da beleza pintada (...) conquanto tenhas também, na tua hediondez, toda a correção perfeita – como o sapo, coaxando cá embaixo na lodosa argila, tem, no entanto, a repelente correção própria de sapo; - como a estrela fulgindo, lá, em cima, no precioso Azul, tem a serena e sidéria correção própria d’estrela.”
 (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39. Grifo meu.)

O trecho acima citado faz com que o poema quase possa ser visto como um manifesto do Feísmo. Nele, o artista justifica porque, “numa hora de spleen, de esgotamento de forças psíquicas” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 38.), decide entregar-se à busca da “beleza particular do mal, o belo no horrível” (BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 67. Grifo meu.), como o chamou Baudelaire. Os termos grifados (“Carne”, “mal”, etc.) acusam o teor moralista de tal procedimento. O que tentamos demonstrar é, mais do que isso, que ele se fundamenta numa concepção essencialmente cristã da existência.

O Culto ao Feio na poesia, como aqui se apresenta, objetiva uma inversão de valores de cunho apocalíptico, a exemplo da que o cristianismo apregoa quando postula a supremacia do espírito sobre a carne, do Reino dos Céus sobre a Terra, dos últimos sobre os primeiros, do martírio sobre o prazer, da morte, enfim, sobre a vida. Não é de se espantar, portanto, que seja prática privilegiada entre as correntes literárias de tendência mística, como o Barroco e o Simbolismo. Tornado objeto de representação artística, função tradicionalmente reservada ao Belo, o Feio se investe de um poder carnavalizante inédito: denunciar a podridão que se oculta sob os véus da beleza mundana, servir de caricatura para o mundo material. Daí talvez a hostilidade ao Belo nos sonetos de Augusto dos Anjos citados acima.

Instrumentalizado dessa maneira, o Feio assume dois aspectos distintos, que apontam, contudo, para o mesmo objetivo. Por um lado, tem-se o que ocorre no chamado satanismo, “uma tentativa de adentrar a cristandade pela porta dos fundos” (ELIOT, T.S. apud JUNQUEIRA, Ivan. “A Arte de Baudelaire”. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.), como diz T.S. Eliot, discorrendo sobre Baudelaire. Aqui, o procedimento consiste em vasculhar, sem nojo, o antro do Mal e retratar, em cores fortes, o que quer que lá habite. O Feio surge, então, como corporização do pecado e do sofrimento que dele advém. Se o Mal é exaltado, sob a forma alegórica de Satã, isso não se dá sem um travo amargo de intensa auto-ironia.

Já numa segunda modalidade de Feísmo, a que parecem filiar-se os poemas em estudo, o Feio desempenha papel inverso. Agora, quem corporiza o pecado, com suas tentações e promessas ilusórias, é a beleza, identificada ao sensualismo e ao mundo físico. Em oposição a tudo isso, surge a figura do proscrito, fisicamente disforme embora nobre de espírito, freqüentemente rejeitado pela amada e\ou escarnecido pelas turbas, mas sempre em patente desarmonia com o mundo estabelecido. A tensão entre esses dois elementos (proscrito e mundo estabelecido) e a inversão de valores que dela advém são de natureza marcadamente apocalíptica e cristã. Elas se fundam em analogia às que conduziram Jesus Cristo à companhia dos leprosos, aleijados, prostitutas, miseráveis em geral e, em última instância, à cruz e ao sepulcro.

Embora desprezado por aqueles que o cercam, o Feio traz em si um elemento de superioridade em relação a eles, proporcional à sua falta de beleza. De fato, essa sua “correção perfeita” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.) e “repelente” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.), semelhante à do “sapo, coaxando cá em baixo na lodosa argila” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.), é a marca da inversão de valores que se opera através do Feio. Não surpreendentemente, ela se encontra associada à “serena e sidéria correção” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.) própria da “estrela, fulgindo, lá, em cima, no precioso Azul” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.). A peculiaridade do Feio, que o torna desprezível e proscrito, é análoga a qualquer coisa de sublime e elevado, algo que paira acima do mundo, assim como o Feio jaz abaixo dele. Pela lógica da inversão, tipicamente cristã, essas duas extremidades se identificam, reputando como ruim e 
intolerável aquilo que se encontra no nível intermediário. Tal predileção pelos extremos decorre do anseio cristão pela pureza, que identifica a mistura à contaminação. É através da “lodosa argila” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.), isto é, do aspectos “feios” da existência (miséria, sofrimento, morte), que se atingirá o “precioso Azul” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.) , ou seja, o Reino dos Céus.

Com efeito, a resolução do conflito Feio versus “mundo estabelecido” não pode se dar de outra forma senão pela derrota do primeiro, através da “suprema aniquilação da Morte” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.). Derrota esta que, como aconteceu com Cristo, converte-se em vitória através da lógica da inversão. A morte representa a depuração final, como no caso da “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens, que, não mais suportando a tensão da impureza inerente à vida, deixa de habitar aquele nível intermediário, quando sua alma sobe aos céus e seu corpo desce ao mar:
“No sonho em que se perdeu, Banhou-se toda em luar... Queria subir ao céu, Queria descer ao mar...(...) As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par... Sua alma subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar...”
(GUIMARAENS, Alphonsus de. Poemas. 2 ed. São Paulo: Global, 1993, p. 101.).

Vencido no mundo da matéria, o morto triunfa no que existe para além dele. Ao longo deste estudo, ficará demonstrado como essa noção é fundamental para a poética de Augusto dos Anjos. Veja-se, a esse propósito, o soneto que se inicia pelo verso “E o mar gemeu a funda melopéia”, no qual a morte de Déia (a Ismália de Augusto dos Anjos) é também o desfazer-se da mistura tensa entre carne e espírito:
“E o mar chamou-a para o fundo abismo! E o céu chamou-a para o Misticismo."
(ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 436.)

É curioso constatar que, do ponto de vista estético, a solução de Augusto é a mesma de Alphonsus: a disjunção entre corpo e alma é narrada em dois versos contíguos, cada um deles referindo-se a um dos elementos que se disjuntam, sendo que a oposição semântica entre esses elementos é ressaltada pelo paralelismo sintático entre os versos que a eles se  referem. Esse procedimento é recorrente em Augusto dos Anjos, como o exame de “Monólogo de uma Sombra” revelará no capítulo seguinte.

No protagonista de “A um epiléptico”, outro soneto de Augusto dos Anjos, realiza- se a mesma cisão sofrida por Ismália e Déia:

A um Epilético

Perguntarás quem sou?! - ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrenda, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!

Reclamada por negros magnetismos
Tua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!

Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,

Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!

(ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 342. Grifo meu.)

Enquanto submetido às leis que pautam a “tarefa animal dos organismos” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 342.), o epiléptico é vítima de suplícios variados. No entanto, tão logo tem seu corpo “reduzido” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 342.) pela morte a “excreções de sânie e lodo” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 342.), passa a constituir, agora “completamente puro” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 342.), parte íntima do divinizado “Grande Todo” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 342.).

Outro exemplo bastante cabível para o modelo de Feísmo aqui proposto, presente em Eu e outras poesias, é o morfético da sétima parte de “Os doentes” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, pp. 236-249.), cuja feiúra acintosa estraga o “sábado de infâmias” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 245.) da “energúmena grei dos ébrios da urbe” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 245.):
“O ar ambiente cheirava a ácido acético, Mas, de repente, com o ar de quem empesta,Apareceu, escorraçando a festa,A mandíbula inchada de um morfético!”
(Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 245.)

Esse incômodo conviva, tão deslocado no ambiente festivo onde subitamente se insinua, captura de imediato a atenção do eu lírico, cujo “olhar perspícuo” (Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 345.) de artista se detém nos detalhes grotescos da sua fisionomia. Enxergado através desse olhar, o morfético se converte na “negra eucaristia” (Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 246.) em que se materializam todas as dores do mundo. Com que poder moralizante a sua “mandíbula inchada” (Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 245.), ícone do lado feio da existência, não se atira à face daquele “povo de demônios” (Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 245.), que, excluindo-o das suas preocupações, festejava a “promiscuidade das adegas” (Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 245.), “como quem nada encontra que o perturbe” (Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 245.)!

Índice ainda mais patente, contudo, do vínculo entre Feísmo e cristianismo, encontramos num outro poema de Cruz e Sousa, intitulado “Sexta-feira santa”:

Lua absíntica, verde, feiticeira, 
Pasmada como um vício monstruoso... 
Um cão estranho fuça na esterqueira, 
Uivando para o espaço fabuloso. 

É esta a negra e santa sexta-feira! 

Cristo está morto como um vil leproso, 
Chagado e frio, na feroz cegueira 
Da Morte, o sangue roxo e tenebroso. 

A serpente do mal e do pecado 

Um sinistro veneno esverdeado 
Verte do morto na nudez serena. 

Mas da Sagrada Redenção do Cristo, 

Em vez do grande Amor, puro, imprevisto, 
Brotam fosforescências de gangrena!

(SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219. Grifos meus.)

Esse soneto sombrio, ao reencenar o drama cristão arquetípico, recusa-se a elaborarlhe uma imagem nova, recorrendo, em vez disso, à própria figura do Cristo. Jesus é aqui como que um avatar de si mesmo, portanto. O resultado, não obstante, não deixa de caracterizar uma reencenação (e mesmo uma releitura), já que esse Cristo de que se fala, incapaz de fazer brotar de si o “grande Amor, puro, imprevisto” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219.), de forma alguma coincide com o messias evangélico. Com o seu niilismo de cadáver em decomposição e a sua fragilidade, tão humana, diante da morte, poderia até ser visto como subversivo em relação ao original, dentro de uma perspectiva dogmática. Nem por isso é menos cristão.

O estudioso Chico Viana, discorrendo sobre as inclinações cristãs de Augusto dos Anjos, já advertia: tal tendência:

“nada tem a ver com a inserção numa prática institucional; diz respeito, e tão- somente, à figura mítica do Cristo. Não interessa ao eu lírico o credo, o sistema, (...) Interessa-lhe a imagem de um Cristo não-histórico, mítico”. (VIANA, Chico. O evangelho da podridão. João Pessoa: Editora Universitária, 1994, p.133.)
O mesmo pode ser dito a respeito do Feísmo na poesia: o cristianismo que lhe serve de suporte remete a um determinado conjunto de valores de múltiplos aspectos e sentidos, capaz de se amoldar e de se instrumentalizar de acordo com a perspectiva de quem dele se serve. Trata-se de algo que em tudo se afasta, portanto, da exegese unívoca das igrejas.

Em “Sexta-feira santa”, por exemplo, à expectativa de alguma apoteose final, responde apenas a visão crua do cadáver gangrenado, solução frontalmente oposta às doutrinas oficiais. A idéia de redenção, por outro lado, não está totalmente ausente do texto. Reparemos como a conjunção adversativa entre a 3ª e a 4ª estrofes, impondo uma quebra no plano do significado, impede que se forme um encadeamento homogêneo de idéias entre elas. Se, em vez disso, ali estivesse uma aditiva, o poema seria marcadamente anti-cristão. O “Mas”, ao contrário, cria uma oposição entre os dois tercetos, ou antes, denuncia uma dualidade que, de fato, estrutura o soneto.

A primeira quadra se inicia com uma evocação vaga da lua, bem ao gosto simbolista: um sintagma nominal desprovido de predicado, onde se acumulam adjetivos e um símile, concluído por reticências. A lua é descrita como “absíntica, verde” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219. Grifos meus.) e comparada a um “vício monstruoso” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219. Grifo meus). No primeiro terceto, perpetuam-se associações do mesmo tipo: o Mal e o Pecado se incorporam numa serpente, que verte um “veneno esverdeado” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219. Grifos meus.). Percebe-se, portanto, uma clara identificação entre a cor verde e o Pecado.

O processo se repetirá, ao inverso, nas estrofes restantes: à morte do Cristo, assim como à sua redenção, associa-se a cor roxa, através do “sangue roxo” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219.) e das “fosforescências de gangrena” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219.). É evidente que esses dois conjuntos de associações se opõem um ao outro: nas estrofes ímpares, onde se retrata o Pecado, predomina a cor verde; nas pares, que tematizam a Morte, prevalecem os tons roxos.

Através de uma simbologia cromática e aproveitando-se da estrutura dual própria do soneto, o poema contrapõe Pecado e Morte, projetando na última a redenção do primeiro. Eis a lógica da inversão, na qual Feísmo e cristianismo se encontram, comprovando seu parentesco. O mundo que aí está é o império da impureza e do pecado; morrer, uma derrota de acordo com a lógica da vida, representa uma vitória sobre esse mundo. Despojado dos limites carnais, o homem se vê livre do jugo daquela lógica, que, em sua essência, estava contaminada pelo pecado.

Assim, verificamos que, após a morte, a nudez do Cristo, “serena” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219.) como a de Adão fora outrora, imunizou-se contra o veneno da serpente, como que impermeabilizada pela gangrena. Ocorre que a morte se nos retrata aqui não sob a máscara de um eufemismo como “Vida Eterna”, mas ressaltada em sua concretude: feia, brutal, irreconciliável com a ordem da vida, pois que diametralmente antagônica a ela. Por isso, em sua “Sagrada Redenção” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219.) deparamo- nos com um Cristo “chagado e frio” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219.) como um “vil leproso” (SOUSA, Cruz e. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 219.), em vez de imaterial e esplendente; em putrefação, em vez de em ascensão. O Feísmo de “Sexta-feira santa” se encontra justamente aí.

Essa associação inusitada entre putrefação e redenção é das mais quintessenciais para a poesia de Augusto de Anjos. Também a encontraremos se investigarmos a obra que inaugurou a compreensão moderna das “possibilidades estéticas do horrível” (BUENO, Alexei. “Augusto dos Anjos: origens de uma poética”. In: ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 26.), segundo a expressão de Alexei Bueno. O poeta e estudioso, em acordo com o senso comum, atribui esse feito ao “Une charogne” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 173.), de Baudelaire. Contudo, no próprio As flores do mal, há um outro poema que parece mais adequado aos propósitos deste estudo. Trata-se de “Uma viagem a Citera” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 407-411.).

Na primeira estrofe desse poema, deparamo-nos com o eu lírico num estado de espírito enlevado, contemplando um céu sem nuvens, de um navio que flutua, suavemente, sobre o mar. Porém, já no primeiro verso da segunda estrofe, o tom ameno de idílio marítimo é rompido pela visão de uma ilha “triste e sombria” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 407.). É Citera, mítica ilha grega, célebre pelo seu templo de Afrodite, convertida, pela imaginação do eu lírico, numa espécie de Utopia das delícias pagãs. Contudo, frustrando tais expectativas e a despeito das lendas, Citera se revela um deserto sombrio e estéril, cenário de um espetáculo grotesco.

À aproximação do navio de suas costas, saúda-o não uma “jovem sacerdotisa” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 408.)., entreabrindo a túnica provocantemente, mas a visão tétrica de um cadáver, pendendo de uma “forca de três braços” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 409.)., despedaçado (e, sintomaticamente, castrado) por animais necrófagos. Diante de tal imagem, em cujos detalhes mais repugnantes o poema se detém por três estrofes, o eu lírico se
entrega a reflexões melancólicas, vítima de uma dolorosa identificação. O martírio do enforcado, que, insepulto e devorado por animais, expia seus “pecados” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 411.). e “infames cultos” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 411.)., desperta nele o eco de “velhas dores” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 411.)., sentimento comparado, não gratuitamente, à náusea. O poema se conclui com uma invocação ao Senhor, para quem o eu lírico pede forças, a fim de que finalmente consiga olhar para si mesmo sem nojo.

A cena descrita tem todas as características de uma alegoria; a natureza simbólica da forca de três braços é mesmo explicitada na última estrofe. Sobre essa forca, J.D. Hubert afirma (segundo Ivan Junqueira) que constitui um símbolo para a Cruz (HUBERT, J.D. apud JUNQUEIRA, Ivan. “A arte de Baudelaire”. In: BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 616.). Com efeito, não é difícil aproximar o enforcado de Citera do Crucificado. Como também o morfético de “Os doentes”, esse enforcado parece possuir propriedades eucarísticas. Recebendo em si a projeção da imagem do eu lírico, e com ele se irmanando pelo sofrimento, opera uma exteriorização de seu aspecto pecaminoso. Aquilo que faz com que o eu lírico sinta nojo por si mesmo (algo que lembra o “obsceno horror” (SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 38.) de “Psicologia do Feio”), materializado no citerano, é então punido e redimido através da morte na forca.

Estamos diante de um “cordeiro sacrificial”, um Redentor que tira os pecados do mundo e o purifica, incorporando-os e expiando-os pela morte. O Feísmo, de fundo cristão, de “Uma viagem a citera”, bem como o de “Sexta-feira santa”, está na descrição crua da morte, e na associação desta com a redenção. Assim, da 8ª à 11ª estrofes, o poema se ocupa com o suplício póstumo do “filho de Citera” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 411.), entregue a “bicos impuros” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 408.) que lhe devoram os olhos, rasgam-lhe o
ventre e arrancam-lhe fora o sexo. A propósito, se pensarmos no papel desempenhado pelo
sexo na concepção da existência e no imaginário cristãos, entenderemos como esse último detalhe reforça o caráter redentor de que, nesse poema, imbui-se o processo de decomposição. Morrer e putrefazer-se é despojar-se do pecado.

Como os bêbados hedonistas de “Os doentes”, o protagonista de “Uma viagem a Citera” seguia como que ébrio de beleza, até que um encontro inesperado com o Feio motiva uma reversão radical em sua perspectiva. É a lógica da inversão de que viemos falando até aqui, marca do cristianismo inerente ao Culto ao Feio. Dela dá testemunho a notável mudança de tom no discurso do eu lírico, perceptível entre as quatro primeiras estrofes e a penúltima do poema de Baudelaire. Assim, se, nas primeiras, seu coração, comparado a um pássaro e a um anjo, embriagava-se “de um sol radioso” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 407.), antegozando os encantos da natureza e do amor, na penúltima, encontramo-lo enclausurado “como num sudário espesso” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 410.), incapaz de se  comover com a paisagem bela: doravante, tudo lhe parecerá “escuro e solitário” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 411.).

Especialmente rica é essa imagem do “sudário espesso” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 410.). Após sua arrepiante epifania, que faz com que passe a olhar com horror o que antes lhe parecia belo, o eu lírico demonstra necessidade de refúgio, evasão pelo isolamento. Envolto na “estranha alegoria” (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad. Ivan Junqueira. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 410.) do enforcado, seu coração, como um eremita perturbado pelas dores do mundo, busca retirar-se sob essa sugestiva “espessura”, que talvez o preserve da impureza. Ele acaba de sofrer uma experiência religiosa. Num relance extático, vislumbrou a “ostentosa podridão” (SOUSA, Cruz e. “Psicologia do feio”. In: SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.) sob a superfície da “beleza pintada” (SOUSA, Cruz e. “Psicologia do feio”. In: SOUSA, Cruz e. Missal\Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 39.), como escreveu Cruz e Sousa. Jamais será o mesmo, pois compreendeu que todos os valores mundanos que outrora exaltava (o sol, o amor, a sensualidade, etc.) conspurcam-se com o pecado e com a dor. Dado o caráter vital de tais valores, nenhuma melhor ermida que a própria morte, novamente imbuída de poder redentor, donde o sudário.

O sentimento acima descrito constitui a gênese do desejo de claustro que acomete os ascetas, e refrata-se em inúmeras imagens nas obras de poetas feístas, dentre as quais o soneto cujo primeiro verso é “Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me”, de Augusto dos Anjos:

Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me 

Gênio das trevas lúgubres, acolhe-me, 
Leva-me o esp’rito dessa luz que mata, 
E a alma me ofusca e o peito me maltrata, 
E o viver calmo e sossegado tolhe-me! 

Leva-me, obumbra-me em teu seio, acolhe-me 
N’asa da Morte redentora, e à ingrata 
Luz deste mundo em breve me arrebata 
E num pallium de tênebras recolhe-me! 

Aqui há muita luz e muita aurora, 
Há perfumes d’amor – venenos d’alma – 
E eu busco a plaga onde o repouso mora, 

E as trevas moram, e onde d’água raso 
O olhar não trago, nem me turba a calma 
A aurora deste amor que é o meu ocaso!

(ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 408.).

Refugiando-se contra iniqüidades, desilusões amorosas ou o que quer que achem de errado com o mundo, os eus líricos vão se lamentar em cenários sombrios como pântanos, subterrâneos, furnas e cemitérios, instituindo a prática que se convencionou chamar de locus horrendus. O que tanto ofende suas ultra-sensibilidades são dados incontornáveis da vida e do mundo, e, em última análise, o que eles almejam é à descomplicação repousante e primitiva da morte. Por isso, o mais horrendus dos loci é o próprio sepulcro, para o qual todos os outros tendem.


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ESPECIFICAÇÕES
Formato: Livro
Idioma: PORTUGUES
Editora: HEDRA
Assunto: LITERATURA BRASILEIRA - POESIA
Número de páginas: 188

SINOPSE:
Publicado primeiramente em 1912, esta obra traz poemas que causaram enorme estranhamento no ambiente literário do início do século XX. Frutos de uma aliança entre tendências literárias e filosóficas do período, os poemas de 'Eu' são tributários do cientificismo positivista do século XIX, do formalismo parnasiano, do misticismo simbolista - vazado pelas doutrinas espirituais do Oriente, que o poeta empresta de Schopenhauer, junto do pessimismo a respeito das coisas humanas - e das ideias do Naturalismo, que reduzem o homem a seus aspectos biológicos e temperamentais.


Exemplo literal para a proposição acima, encontraremos em “Vozes de um túmulo” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 259.), de Augusto dos Anjos, como o próprio título deve deixar evidente. Nesse soneto, é o seio ancestral da “Terra - a mãe comum” (ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 259.) que serve como cenário às reflexões do eu lírico sobre a fugacidade da matéria, a vacuidade do orgulho e o infinito assombroso da morte:

Vozes do Túmulo

Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho
Destes meus olhos apagou!… Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta…
Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que arenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!

(ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 259.)

De fato, a atitude feísta, tal como tem sido descrita neste trabalho, encontra-se no cerne da poética de Augusto dos Anjos, como testemunho de sua concepção essencialmente cristã da existência. É o que deve ficar demonstrado pela análise subseqüente de “Monólogo de uma Sombra”.


Créditos:
Rafael Soares de Oliveira
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários – Literatura Brasileira Orientadora: Profa. Dra.Silvana Maria Pessôa de Oliveira

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